Ziraldo revelou, no livro autobiográfico O menino maluquinho , que seu caderno escolar era assim: um dever e um desenho. Não cheguei a...

Travessuras de uma menina desenhista

leitura infancia desenho infantil
Ziraldo revelou, no livro autobiográfico O menino maluquinho, que seu caderno escolar era assim: um dever e um desenho. Não cheguei ao exagero de Ziraldo, mas reservava a primeira página dos meus cadernos escolares para desenhar e pintar uma paisagem. Algumas colegas do antigo curso primário gostavam dos desenhos e me pediam para reproduzi-los nos seus cadernos. Era uma tarefa que me dava muito prazer, sentia-me importante.

Passei a primeira infância, adolescência e juventude na cidade de Campina Grande. A casa em que eu morava ficava situada na Rua Siqueira Campos, 840, nas proximidades da Avenida Getúlio Vargas, estudava no Colégio das Damas. Nessa época, anos 1950/1960, as pessoas geralmente moravam em casas, havia poucos prédios de apartamentos.

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Colégio das Damas (Campina Grande) IBGE
A Rua Siqueira Campos começava no bairro do Alto da Conceição, atravessava as ruas Ouro Branco, João Suassuna, João Pessoa, Borborema, Getúlio Vargas, Rio Branco, e terminava no bairro São José. Era uma rua longa, longa ...

O quarteirão em que morava ficava situado entre a Rua Borborema e Getúlio Vargas, era constituído de três casas e de um prédio antigo, uma fundição. Do lado direito, morava um casal sem filhos, era uma casa grande, de esquina, com um bonito jardim e uma fonte d´água cheia de plantas aquáticas. A minha ficava no meio, era a menor das três. Do lado esquerdo, morava um casal com três filhos – uma moça, um menino e uma menina da minha idade. Na esquina, vizinha à casa da minha amiga, ficava a fundição de uns alemães, um prédio velho, bem grande, com muro alto e pintado de branco.

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Tesouro da Juventude
A Garimpeira Livros
O vizinho do lado esquerdo era dono de uma movelaria, a maior e mais famosa da cidade. A dona da casa trabalhava com o marido na casa comercial e gostava de ler, além da coleção do Tesouro da Juventude havia outros livros de literatura no escritório, ali era meu local de refúgio para as leituras. Na minha casa, eu tinha apenas os livros escolares. Li alguns romances de José de Alencar, bem como os contos de fadas da coleção Tesouro da Juventude, na casa da vizinha. Encantava-me ver uma estante cheiinha de livros de literatura.

A mãe da minha amiga era uma senhora alta, gorda e muito educada, permitia que eu lesse os livros no escritório, não podia levá-los para minha casa, temia perdê-los, era zelosa com esses “objetos sagrados”. O marido era um senhor magro, bem menor do que a mulher, a moça e os meninos não chamavam a atenção em nenhum aspecto. Durante a tarde, deliciava-me lendo os romances de Alencar e os contos de fadas, à noite brincava na calçada com a menina que era minha amiga dileta e companheira das brincadeiras infantis.

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GD'Art
Uma noite tive uma ideia maluquinha – resolvi desenhar toda família da minha amiga com carvão na parede do muro da fundição. Fiz a dona da casa mais gorda e bem maior do que o marido que pareceu muito magro e menor do que era na realidade. Como gostava de usar chapéu, lá estava o dono da casa com seu costumeiro chapéu. A moça e os meninos seguiram os padrões normais. Coloquei o nome de cada um deles embaixo dos desenhos.

No outro dia, a vizinha teve a surpresa de ver sua família retratada com carvão no muro da fundição, certamente a filha, que tudo presenciara, contou quem tinha sido a autora da façanha. À tarde, recebi um recado da amiga: “mamãe quer falar com você, ela está em casa esperando”. A vizinha trabalhava na movelaria, passava o dia fora, só vinha para o almoço. Fiquei gelada, morrendo de medo, mas atendi ao chamado e me dirigi disposta a negar tudo que havia feito. Neguei três vezes como São Pedro, jurei que não tinha sido eu. À tarde veio um pintor e passou cal em todos os figurantes. Minha aventura de muralista de parede durou apenas algumas horas, teve uma duração menor do que a flor “Íris da praia”.

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Flor Íris da Praia @picturethis
Sou grata à vizinha porque nada contou à minha mãe, me livrei de levar um bom castigo. Aprendi a lição, não queria passar por outro vexame, nunca mais desenhei ninguém em via pública, restringi meus desenhos aos cadernos escolares. Figuras humanas nas paredes só para os muralistas mexicanos do passado: Diego Rivera, Orozco e Siqueiros. Mais recentemente, os brasileiros Kobra , Os Gêmeos e Panmela Castro.

Essa foi uma das muitas travessuras da minha infância quando ainda estava descobrindo o mundo, não tinha a noção de que vivia os felizes tempos para os quais o céu estrelado era o único mapa dos caminhos transitáveis e a luz das estrelas a única claridade dos caminhos, como bem disse Georg Lukács na Teoria do Romance.

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