Leitor me escreve pedindo um comentário sobre o verbo “cismar”, que acha confuso. Não é apenas...

Cismas de um cronista

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Leitor me escreve pedindo um comentário sobre o verbo “cismar”, que acha confuso. Não é apenas a ele que esse vocábulo intriga. “Cismar” sempre me impressionou. É um desses termos de sentido impreciso; por mais que a gente o defina, explique, conceitue, não consegue captar-lhe as sutilezas do significado.

Mas essa imprecisão é na verdade a sua maior riqueza. Os românticos usavam frequentemente “cismar” para sugerir uma espécie de tristeza contemplativa, como se vê em Gonçalves Dias. Na “Canção do Exílio”, por exemplo, o poeta escreve:

“Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.”
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É uma cisma decorrente da saudade que o eu lírico, estando em Portugal, sente do Brasil. Um sentimento que retira a sua beleza da nostalgia, e não propriamente da melancolia – considerando-se que a melancolia é a saudade do que não se teve, enquanto que a nostalgia, pelo contrário, é a saudade do que se teve. O poeta morou em terras brasileiras, ou seja, ressente-se de algo que efetivamente vivenciou e perdeu, e não de algo que lhe falta (situação que caracteriza a melancolia, entendida como a perda de um ideal).

“Cismar” pode também ter uma conotação de suspeita, desconfiança, havendo quem interprete esse verbo como uma espécie de quebra-cabeça. Ele supõe a tentativa de encaixar as peças de algo que não se ajusta ao nosso entendimento. A cisma seria a ruminação de um pensamento que nos obsedia ou nos absorve até se tornar claro (ou não). Alguém em tal situação fica absorto
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GD'Art
(particípio irregular do verbo “absorver”), envolvido no enigma que procura solucionar. Nesse sentido, a cisma é um estado de espírito que nos consome, nos afasta do mundo exterior, nos empurra ao mergulho nas profundezas da alma.

A cisma dos românticos é um misto de filosofia e religião. Aparece muitas vezes nos momentos de desencanto com a figura feminina, quando ao poeta não resta senão se refugiar na Natureza. Ou quando, em função do panteísmo, ele costuma se abismar na contemplação quase mística de rios e florestas. Ela é comumente noturna, como se vê também na “Canção do Exílio”:

"Em cismar, sozinho à noite, Mais prazer encontro eu lá..."
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Lá onde? No Brasil, cujas palmeiras o poeta nostalgicamente evoca em seu exílio português.

Com Augusto dos Anjos, que tem um substrato romântico, a cisma adquire um tom lúgubre. Confunde-se com a tendência à meditação, própria dos temperamentos melancólicos. Em “Insânia de um Simples”, ele escreve:

Em cismas patológicas insanas, É-me grato adstringir-me, na hierarquia Das formas vivas, à categoria Das organizações liliputianas;
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Trata-se de uma autorreflexão em que o eu lírico se mostra “gratificado” por se confundir com o que há de ínfimo e pretérito na Natureza, numa espécie de autodepreciação purgativa na qual ecoa a “saudade da monera” (sua “mãe antiga”). Essa depreciação da sanidade revela o lado sombrio do eu lírico. Augusto acrescenta dois adjetivos à palavra “cismas”– ambos quase com o mesmo valor. O interessante é que, por meio dessa ligação com doença, ruptura, insanidade, ele reaproxima o vocábulo do seu sentido original. O termo “cisma” tem origem no grego "schísma" (σχίσμα), que significa separação, divisão ou fenda. O vocábulo vem do verbo "schízein" (σχίζειν), que quer dizer “rachar”, “dividir” ou “partir”. /

Um sentido comum do verbo “cismar”, e por extensão do substantivo “cisma” (nesse caso mais usado no masculino, pois a palavra tem dois gêneros), é o de fazer com
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Václav Brožík
certa intensidade algo que não se espera. “O menino agora cismou de não brincar mais com o amigo” – estranha a mãe, sem cogitar do motivo para o afastamento.

Um cisma em uma amizade é não apenas um desentendimento, como também uma fissura profunda, que separa as pessoas e geralmente as leva a se digladiarem. Há também cisma nas instituições, de que é exemplo o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417); em função dele a Igreja Católica teve simultaneamente dois e depois três papas, que reuniam seus seguidores e disputavam o poder.

A palavra “cisma”, como se vê, nos leva ao confronto com as profundezas da mente humana e à percepção de fraturas sociais. Ela mostra que o pensamento, além de um espelho, pode ser um refúgio, uma prisão, o germe de um processo divisionista. Sugere o espanto, a meditação recriminatória, a dor de uma separação. Não surpreende que confunda o leitor que me escreveu; só espero que este texto não o deixe mais cismado.

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  1. Anônimo2/9/25 09:00

    O cronista de escol transforma a aula em saborosa crônica. Parabéns, Chico. Francisco Gil Messias.

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