Leitor me escreve pedindo um comentário sobre o verbo “cismar”, que acha confuso. Não é apenas a ele que esse vocábulo intriga. “Cismar” sempre me impressionou. É um desses termos de sentido impreciso; por mais que a gente o defina, explique, conceitue, não consegue captar-lhe as sutilezas do significado.
Mas essa imprecisão é na verdade a sua maior riqueza. Os românticos usavam frequentemente “cismar” para sugerir uma espécie de tristeza contemplativa, como se vê em Gonçalves Dias. Na “Canção do Exílio”, por exemplo, o poeta escreve:
“Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.”
“Cismar” pode também ter uma conotação de suspeita, desconfiança, havendo quem interprete esse verbo como uma espécie de quebra-cabeça. Ele supõe a tentativa de encaixar as peças de algo que não se ajusta ao nosso entendimento. A cisma seria a ruminação de um pensamento que nos obsedia ou nos absorve até se tornar claro (ou não). Alguém em tal situação fica absorto
GD'Art
A cisma dos românticos é um misto de filosofia e religião. Aparece muitas vezes nos momentos de desencanto com a figura feminina, quando ao poeta não resta senão se refugiar na Natureza. Ou quando, em função do panteísmo, ele costuma se abismar na contemplação quase mística de rios e florestas. Ela é comumente noturna, como se vê também na “Canção do Exílio”:
"Em cismar, sozinho à noite,
Mais prazer encontro eu lá..."
Com Augusto dos Anjos, que tem um substrato romântico, a cisma adquire um tom lúgubre. Confunde-se com a tendência à meditação, própria dos temperamentos melancólicos. Em “Insânia de um Simples”, ele escreve:
Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;
Um sentido comum do verbo “cismar”, e por extensão do substantivo “cisma” (nesse caso mais usado no masculino, pois a palavra tem dois gêneros), é o de fazer com
Václav Brožík
Um cisma em uma amizade é não apenas um desentendimento, como também uma fissura profunda, que separa as pessoas e geralmente as leva a se digladiarem. Há também cisma nas instituições, de que é exemplo o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417); em função dele a Igreja Católica teve simultaneamente dois e depois três papas, que reuniam seus seguidores e disputavam o poder.
A palavra “cisma”, como se vê, nos leva ao confronto com as profundezas da mente humana e à percepção de fraturas sociais. Ela mostra que o pensamento, além de um espelho, pode ser um refúgio, uma prisão, o germe de um processo divisionista. Sugere o espanto, a meditação recriminatória, a dor de uma separação. Não surpreende que confunda o leitor que me escreveu; só espero que este texto não o deixe mais cismado.