Há vestígios da melancolia entre várias civilizações ao longo das eras. Algumas das mais primitivas descrições a respeito dos estados de alteração do humor podem ser encontradas nas escrituras bíblicas e na mitologia grega — na verdade, em várias mitologias de povos da Antiguidade. A mitologia grega, em especial, rica em personagens, reportava-se à Oizius (Ὀϊζύς), uma daimon (demônio), ou seja, um espírito que personificava a tristeza e a angústia,
mas também a miséria do mundo. E é curioso como tristeza, angústia e miséria estejam incorporadas a um mesmo ente. Hesíodo trata dessa genealogia em Teogonia (1995).
Mais que isso, Oizius também era irmã de Tânatos, que representa a morte (e seria o contrário de Eros), além de Geras (a velhice) e Apáte, associado ao engano, ao engodo. Talvez essa sua gênese tão devastadora para o homem tenha inspirado os romanos, que a convocavam como Tristitia, ou seja, tristeza e, certamente, melancolia em sua acepção mais arraigada. Oizius era filha de Nix (a noite) e do Caos, ainda conforme Hesíodo.
Até mesmo nos textos javistas, que inspiraram o Deuteronômio e a Torá de Moisés, fala-se da tristeza do homem perante a divindade, e talvez causada por ela mesma. Há registros indicando que, de um modo geral, babilônios, egípcios, gregos, hebreus e persas compartilhavam da impressão de que o adoecimento físico e mental era atribuído a uma entidade divina, e só cabia a ela curar. É o que mostram narrativas mais antigas, geralmente de ordem mítica e religiosa. Mas eram os deuses melancólicos? Não parece ser o caso.
Na mitologia grega, na maioria das vezes, os deuses causavam a tristeza e a dor dos humanos. O caso do titã Prometeu, por exemplo, que foi castigado por levar o fogo aos humanos e foi preso a uma rocha no Cáucaso, por ordem de Júpiter, enquanto as águias vinham bicar o seu fígado todos os dias, que se recuperava no dia seguinte (BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia).
E Pandora que, numa versão, teria sido enviada por Júpiter para tentar o também titã Epimeteu, irmão de Prometeu, conduzia uma caixa que continha toda a sorte de malefícios para os homens — uma vingança pessoal de Júpiter, após terem se assenhorado do fogo de Prometeu. Noutra versão, Pandora foi enviada como uma dádiva, para estabelecer um armistício com os homens. De qualquer sorte, nas duas versões, a caixa foi aberta por Pandora, e todo o seu conteúdo escapou, menos a esperança — o que não deixa de ser uma ironia divina: restou aquilo que se espera. Ou se tem em última instância.
Mas há um caso de perda entre os deuses gregos: Cronos. Com o temor da maldição de um oráculo, Cronos engolia os filhos ao nascer, porque a profecia previa que seria destronado por um deles. Até que, um dia, a esposa, Reia, conseguiu enganar o marido, salvando um de seus filhos, Zeus. Zeus cresceu e decidiu vingar-se do pai. Reia fez Cronos tomar, por engano, uma poção mística (heléboro?), que o fez vomitar todos os seus irmãos. Com isso, Zeus assumiu o Olimpo e desterrou Cronos para as profundezas, amarrado em grossas correntes. Cronos perdeu o poder e, certamente, chorou para sempre sua amargura. E sua tristeza (melancolia).
Entretanto, foi somente com a passagem da narrativa mítica para o discurso racional, especialmente com o advento da filosofia de Sócrates (469 a.C.–399 a.C.) e, ainda mais, Aristóteles (384–322 a.C.), que o entendimento das doenças mudou do âmbito do divino para uma organização da natureza. Isso se deu a partir do modo racional de enxergar o homem e o mundo ao seu redor. Ou seja, ao se inaugurar um modo científico de pensar sobre tudo e, especialmente, sobre as moléstias — as doenças da mente, em particular.
São inúmeras as referências, em textos religiosos, às manifestações de estados que poderiam ser identificados como melancólicos, desde a Antiguidade, com registro importante, por exemplo, nas lamentações do profeta e poeta Jeremias (655–586 a.C.), registradas na Bíblia:
“Maldito o dia em que nasci; não seja bendito o dia em que minha mãe me deu à luz.
Maldito o homem que deu as novas a meu pai, dizendo: Nasceu-te um filho; alegrando-o com isso grandemente.
E seja esse homem como as cidades que o Senhor destruiu e não se arrependeu; e ouça clamor pela manhã, e ao tempo do meio-dia um alarido.
Por que não me matou na madre? Assim minha mãe teria sido a minha sepultura, e teria ficado grávida perpetuamente!
Por que saí da madre, para ver trabalho e tristeza, e para que os meus dias se consumam na vergonha?”
BÍBLIA, Jeremias 20:14–18
E também de Jó, que é um dos mais clássicos exemplos daquele que enfrenta o sofrimento, certamente imposto pela divindade:
“Agora esvai-se a minha vida; estou preso a dias de sofrimento. A noite penetra os meus ossos; minhas dores me corroem sem cessar.”
“Minha cítara está de luto e minha flauta acompanha o pranto.”
E não apenas textos bíblicos e da cultura judaica. Em outras culturas da Antiguidade, é possível identificar referências importantes, ainda que, em muitos casos, muito vagas, sobre a ocorrência de tais estados melancólicos, com destaque para os hindus, os chineses e, posteriormente, até mesmo entre os povos mais primitivos das Américas.
Nos textos de Os Vedas, as mais antigas escrituras hindus (2.000 a 1.000 anos a.C.), os sábios (rishis) falam como o desconhecimento em relação à verdadeira natureza do homem seria a causa maior de seu sofrimento e escravidão na
Arthur Schopenhauer (1788–1860), filósofo alemão, autor de O mundo como vontade e representação (1819). Influenciou a literatura, a psicologia e as artes com reflexões sobre vontade, sofrimento e busca de sentido. ▪ Arte: Angilbert Göbel, 1859 ▪ Galeria Nacional, Berlim.
Terra — conhecimento que só poderia se expressar através do Atman (ser verdadeiro) e do Brahman (infinita consciência), como vetores do desprendimento de todo o sofrimento e da escravidão do humano, para poder aspirar a um estado de imortalidade, paz e realização, ou a verdadeira libertação (mukti). O filósofo Arthur Schopenhauer reconhece, em grande parte de sua obra, a influência dos textos védicos. Ele pontua, em As dores do mundo (2014), um de seus livros capitais para entender o seu pensamento, como o sofrimento é a regra no vivenciar do humano. O amargurado filósofo do pessimismo procura demonstrar como o mundo é, na verdade, um lugar de expiação, e não de beatitude, e quanto a felicidade, o bem e a satisfação são apenas elementos transitórios da aventura de viver, porque perene mesmo seria a dor:
“Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra.”
SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo
Entre os chineses, textos que integram o clássico da poesia Shi jing (1.000 anos a.C.) tratam o sofrimento como consequência do desejo. Os textos (350 ao todo), que são as mais antigas coletâneas de poemas e canções chinesas, propõem que não se deve desejar nada, para não sofrer, no versejar de um sutra (aforismo): “Onde há desejo, só há sofrimento; onde não há desejo, só há alegria.” O Eros que leva ao Tânatos, num movimento cíclico — mas da ordem do humano, inevitável.
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O conselho seria estar de acordo com o Dharma (o caminho da razão) (BUENO, André. Cem textos de história chinesa).
Mas, como para o homem é impossível não ter desejo, a consequência será a sua permanente relação com o sofrimento. Um laço inelutável, um pacto prescrito para a existência humana — algo inescapável.
Há, curiosamente, também indícios de melancolia nas Américas. Um estudo realizado pelo médico Jan G. R. Elferink revelou que, a despeito dos parcos registros sobre os incas em documentos pré-colombianos, sabe-se, a partir de alguns textos pesquisados no Peru, que uma tristeza melancólica “afetava não somente as pessoas comuns, mas também a família do imperador inca” (JURUENA, Mario F. e outros. Estudos latino-americanos sobre melancolia). Jan Elferink concluiu, a partir de suas pesquisas, que a Civilização Inca, pela sua forte religiosidade, considerava as enfermidades — dentre as quais a melancolia — como resultado de forças da esfera do sagrado, e procurava o tratamento a partir dessa perspectiva:
“Os incas consideravam todas as doenças como resultantes de relações perturbadas com forças sobrenaturais e tratavam os transtornos mentais com uma mistura de atos mágicos/religiosos e plantas medicinais.
A predominância da melancolia entre os incas separa-os das culturas espanhola e asteca, onde nenhum transtorno mental específico prevalecia.”
ELFERINK, Jan G. R. Mental disorder among the Incas in ancient Peru
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Não há muitas informações consistentes sobre os maias no período pré-clássico (1.000 a.C.–250 d.C.) ou mesmo quando a civilização atingiu seu ápice no chamado período clássico (250–900 d.C.), quando iniciou seu declínio, até serem completamente dominados pelos espanhóis (1517).
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Antes da invasão espanhola, os sacerdotes maias mandaram destruir os chamados códices. Mas restaram quatro livros que retratam um pouco da civilização maia: Anais de Caqchiqueles, Popol Vuh (espécie de Bíblia sagrada), Rabinal Achí e Chilam Balam.
No Chilam Balam (que traz vários textos sobre religião e costumes), é possível conferir o pensamento dos escribas maias quando se referem à tristeza (melancolia?), especialmente ante as seguidas invasões dos colonizadores, que culminaram com a dominação espanhola, quando todos foram subjugados pelo colonizador e submetidos a um novo regime econômico e, especialmente, religioso:
“Triste estrela decora o abismo da noite!
Paz no teu terror na Casa da Tristeza!
Trombeta misteriosa soa devidamente no átrio da Casa dos Nobres:
os Homens mortos não entendem.
Os vivos vão entender.”
CHUMAYEL. Los libros de Chilam Balam de Chumayel
Entre os maias, os homens do povo, quando adoeciam, atribuíam o mal aos deuses — como a tristeza que levava à incapacidade de trabalhar e arar a terra para produzir o milho. Somente os deuses podiam restaurar sua saúde. Assim, realizavam sacrifícios, muitas vezes humanos, para sensibilizar os deuses.
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Entre os sacerdotes e senhores do império, era costume atirar as próprias esposas em poços, com a recomendação de que deveriam procurar os deuses para pedir a cura, quando fosse o caso, ou outro pedido qualquer. “O próprio ciclo da vida e da morte, do dia e da noite, em sua alternância inexorável mas necessária” (GENTROP, Paul. A civilização maia).
Aqui caberia um parêntese para registrar o que o dramaturgo e poeta romano Públio Terêncio Afro (195/185–159 a.C.) escreveu em sua obra Heautontimorumenos (aquele que se pune a si próprio), uma de suas comédias mais referenciadas de seu conjunto criativo:
“Homo sum: nihil humani a me alienum puto”, ou simplesmente: “Sou um homem: nada do que é humano me é estranho”. Uma das citações mais lembradas por vários outros escritores, como, inclusive, Machado de Assis.
Mas a referência que Terêncio faz àquele que se pune a si próprio parece sugerir um estado de espírito em que, talvez, a relação com o desejo — e toda a carga de culpa que poderia advir — seria também um lastro para o surgimento da tristeza ou melancolia, como se queira. E a melancolia já era, então, um estado de espírito que há muito afetava e, certamente, não passaria despercebida por um dramaturgo da estatura de Terêncio. Ele, quem sabe, também um melancólico, conforme afirmou Robert Burton (1577–1640), que escreveu o maior tratado sobre o tema: A anatomia da melancolia.
Homero (século VIII a.C.) fala da tristeza e do dilaceramento emocional de Penélope enquanto espera pelo retorno de Ulisses, vê seu filho Telêmaco partir em segredo em busca do pai e é importunada pela corte impudente de seus pretendentes. Uma dor que se prolonga e infesta sua alma de incertezas. E tristeza. O próprio Ulisses canta sua tristeza de não poder voltar a Ítaca e enfrenta, angustiado, todas as vicissitudes de sua má sorte decretada pelos deuses, que insistem em punir o herói. Ulisses e seus companheiros de jornada
sofrem as penas do infortúnio, enfrentam a fúria dos deuses e suas artimanhas, confrontam as intempéries da natureza, mas não podem fugir de respeitar as regras impostas pelos mesmos deuses e pela natureza, para pugnar com o desconhecido — com o algoz íntimo também.
Nietzsche postula, em A filosofia na época trágica dos gregos, como o sofrimento é necessário, referindo-se à dor do filósofo Heráclito (século V a.C.), que é atingido por uma tristeza e um desencanto sem fim, clama contra sua sorte e chora sua desventura de humano nas ruas de Éfeso (cidade da Jônia). A dor como processo de devastação da alma, vista como destruição que é inerente ao processo de criar, ou como a destruição pode levar à produção da criação.
Homero retrata o herói grego Ájax, na Ilíada, como o mais belo e valente dos guerreiros gregos da Antiguidade. Entretanto, após perder as armas do amigo Aquiles para Ulisses, numa disputa que julgou injusta, desespera-se e, na sua hybris de vingança, passa a degolar os animais, afirmando serem soldados do exército adversário. Depois, ao reconhecer o erro, é tomado de uma imensa tristeza (melancolia?), foge da presença dos homens e termina por suicidar-se com a própria espada. Ájax, pela tradição, teria oscilado entre a melancolia e a loucura.
Ainda da Ilíada (Canto VI, versos 200–203) vem o registro de outro herói, Belerofonte, que foi condenado pelos deuses a vagar pela planície, submergido no desespero e na solidão:
“Belerofonte, já dos Céus malquisto,
Na alma comendo-se e evitando os homens,
Sozinho errava pelo campo Aleio.”
Aliás, também é do poeta Homero a sugestão do primeiro remédio para a tristeza: o phármakon, uma mistura de ervas, ministrada sob determinados rituais, para mitigar a dor produzida pela ação dos deuses (PERES, Urania Ourinho. Depressão e melancolia). Mas phármakon, pelo seu significado mais intrínseco, além de remédio, também encerra um veneno. Portanto, sua prescrição exigiria uma dose e uma liturgia própria, muitas vezes apenas cosmética — como a sinalizar que o remédio para a dor também poderia ser um veneno, ou apenas um placebo.
O desventurado jovem Werther irá ao encontro da morte por não suportar a paixão não correspondida de Lotte — talvez uma das manifestações mais eloquentes do mecanismo da melancolia, numa obra que se tornou o marco do romantismo alemão: Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe:
“Que desgraça, Wilhelm! As forças de minha alma se consomem em uma inquieta indolência; não posso ficar ocioso, mas ao mesmo tempo não consigo fazer nada. Não tenho a menor capacidade criadora...”
João Guimarães Rosa (1908–1967), escritor, médico e diplomata mineiro, autor de Sagarana (1946) e Grande sertão: veredas (1956). ▪ Fonte: Wikimedia
GOETHE, 2010
Os traços de melancolia também permeiam inúmeras obras literárias, como está, por exemplo, no escritor brasileiro João Guimarães Rosa, que vai ao paroxismo de sua inspiração para exibir uma dor de perda e suas consequentes manifestações mais sombrias, num cenário líquido, a exemplo do que expressa no conto A terceira margem do rio, na linguagem do filho que sofre com a ausência do pai:
“Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa?
Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio–rio–rio, o rio — pondo perpétuo.
Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento.
Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo.
E ele? Por quê? Devia de padecer demais.”