Era uma menina bem pequena, deveria ter seis anos, quase sete. Ela dormia em um sótão repleto de móveis velhos para consertar. Tinha u...

Muito além daquela luz

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Era uma menina bem pequena, deveria ter seis anos, quase sete. Ela dormia em um sótão repleto de móveis velhos para consertar. Tinha uma cama, uma cadeira, roupas mais ou menos limpas e as suas — muito poucas — em uma malinha; outras, dependuradas em pregos.

Os dias silenciosos em meio ao vozerio, sem brinquedos. Sem abraços. Sem carinho. Com muitas palavras duras e nomes impróprios iam passando, enquanto ela cuidava da priminha rica de dois anos. Só cuidava. Em nada podia tocar, tampouco nas bonecas ou em outras coisas.

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GD'Art
Não tinha com quem falar, ou um ombro amigo em que colocasse a cabeça para se abrigar. Tudo que acontecia era ela. Apanhava até para comer. De quinze em quinze dias, sua mãe a visitava. Nada podia contar. Tudo era perfeito, mesmo que sua vida fosse como um beco no horizonte. O medo de ser castigada se espalhava por sua mente, por seu rosto. Só havia um ponto na sua vida: quando dormia — ou melhor, quando todos dormiam — e ela, sozinha, sentava-se sobre o telhado de um Rio de Janeiro de outras épocas. Ali ficava, às vezes, a noite inteira, contando estrelas e sonhando com o futuro. Naquela época, ela tinha um futuro.

Certo dia, já deitara na cama, como sempre fazia e, quando, pelo silêncio, percebeu que todos já haviam pegado no sono, ia levantar-se. No entanto, alguma coisa muito diferente roubou-lhe a atenção.

A cadeira perto da cama estava iluminada. Tão intensa que não poderia ser de uma lâmpada. Não era uma luz comum. Ela nunca saberá explicar aquele momento. Tinha medo de que percebessem e a castigassem por alguma coisa. Não era só a luz. Alguém lhe dizia:

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— Não tenhas medo, minha menina. Eu não pude fazer mais por você. Mas te amo tanto... Estou sempre pedindo a Deus por ti e que forças maiores te guiem e façam superar tudo isto.

Ela ouvia, e a voz continuava:

— Eu te dei adeus no hospital, minha criança. Dei-te um pacote de biscoito de maisena. Mas, perdoa, eu tinha que partir. Eu prometi à tua mãe que tudo faria por ti. Mas fiz outra promessa quando quase morreste com nove meses. Eu sei que não entendes. Só não tenhas medo. Eu te amo e amarei sempre. Terás momentos melhores do que agora na vida. Não chora. Eu sou teu pai... Como queria te abraçar. Porém, não posso.

A menina nada disse, tampouco contou a experiência. A luz foi embora aos poucos e, nessa noite, ela se encolheu sobre o telhado e ali ficou, sozinha. Olhos fechados. Queria ouvir de novo e de novo... as palavras. A manhã chegou e ela, sem dizer o porquê, estava alegre. Até seus tios perceberam:

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— Esse traste está alegre hoje. Será que viu passarinho verde? — era o que se dizia à época.

Muitos anos se passaram. Quando ela, já morando de novo com a mãe, completou dezoito anos, novamente aquela voz lhe falou:

— Estás com dezoito anos. Caminha pela vida, vais vencer.

Ela assim fez. Não obstante tenha percorrido tantos atalhos, ela venceu porque sempre acreditou no melhor e não no poder sedutor do dinheiro. Nunca perdeu o roteiro do bem.

Como em Provérbios: “A estrada em que caminham as pessoas direitas é como a luz da aurora, que brilha cada vez mais até ser dia claro.” (Provérbios 4:18).

Não importa que, hoje, esteja só, esquecida. Não está em um sótão. Ela pode chegar à varanda e ver, como agora, ao cair da tarde, os passarinhos que procuram seus lares e lhe contam todos os segredos do universo, como aquela luz. Isso basta.

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