É incontestável, entre outras coisas, a cultura literária de Victor Hugo. Quem quer que leia as suas obras notará que as referências literárias são sólidas, não são simples alusões. O Inferno de Dante, assunto a que, oportunamente, retornaremos, é refletido em Os miseráveis de uma maneira que só poderia ter sido feita por quem conhece com profundidade a Commedia. Fazemos essas considerações com a intenção de
tentar explicar o modo ambivalente como o romancista vê a Ilíada dentro de sua obra, a partir das circunstâncias e consoante a ação desempenhada pelos personagens.
M. Gillenormand, o avô de Marius, tem uma visão paródica do grande poema homérico, conforme se pode ver na Parte V do romance, Livro V, Capítulo 6 (p. 1065), objeto de um texto nosso anterior (Visões da Ilíada, em Os miseráveis). Como monarquista e antirrepublicano, o velho dá uma resposta sutil ao neto, Marius, um dos líderes dos insurretos, nas barricadas de junho de 1832 contra o rei Louis-Philippe.
A visão do narrador, no entanto, é outra, diferente daquela do personagem. Na Parte V de Os miseráveis, Jean Valjean, todo o Livro I, A guerra entre quatro muros, constituído de 24 capítulos, é uma continuidade do tema iniciado na Parte IV, O idílio da rua Plumet e a epopeia da rua Saint-Denis. É o momento em que se adensa a narrativa, concedendo um viés heroico à insurreição, cuja intenção era se tornar uma revolução, como ocorreu em 1830, contra o rei Charles X. O heroísmo está muito claro, sobretudo pelo
G. Brion, 1862
fato de que o parâmetro escolhido pelo narrador é aquele da Ilíada, evidente em um capítulo específico, intitulado “Os Heróis” (“Les Héros”, V, 1, 21, p. 980-983).
Comecemos aos poucos. Numa batalha grandiosa, há os grandes heróis, há a massa que constitui os guerreiros e, claro, há os anônimos que, muitas vezes, sequer lutam e são tragados pela força dos acontecimentos, não tendo como lutar contra eles. Veja-se, por exemplo, o porteiro morto, sem que estivesse, necessariamente, envolvido com a insurreição, cujo cadáver fica dependurado, como se fosse um espantalho, olhando para baixo, de tal modo que “dir-se-ia estar considerando os que iam morrer” (IV, 13, 3, p. 889). Os mais representativos dessa massa anônima, contudo, são os dois irmãos pequenos de Gavroche, cujos nomes desconhecemos. Eles aparecem, pela última vez, no Jardin du Luxembourg (V, 1, 16, p. 961-967), episódio a que nos referimos no ensaio "Com a linha da paródia e da ironia".
Alugados e abandonados pelos pais, os Thénardier, os meninos são simplesmente sugados pelo sorvedouro dos subterrâneos da miséria. Depois do episódio do Jardin du Luxembourg, nada mais se saberá a respeito deles.
G. Brion, 1862
Simplesmente desaparecem, sem direito à bela morte dos irmãos: a morte heroica de Gavroche, catando cartuchos para municiar os republicanos (V, 1, 15, p. 959-961); a lírico-trágica de Éponine, salvando Marius (IV, 14, 6, p. 899-902). Não nos parece à toa, portanto, o modo como Victor Hugo descreve o retorno dos meninos, quando trazidos, pela última vez, de volta à narrativa (V, 1, 16, p. 962):
“Filhos dos Thénardier, em aluguel na casa da Magnon, atribuídos a M. Gillenormand, e agora folhas tombadas de todos esses galhos sem raízes, e roladas sobre a terra pelo vento.”
O que temos aqui é semelhante à visão de Apolo a respeito dos mortais, quando Posídon o recrimina, acusando-o de favorecer os Troianos, descendentes de Laomedonte. No período em que os dois deuses foram expulsos do banquete olímpico por Zeus, aquele rei os fez construir a muralha de Troia, não lhes pagou o trabalho e os ameaçou de vender como escravos. Em resposta ao grande deus abalador da terra, Apolo diz que jamais, em sã consciência, seria seu opositor e favoreceria
G. Brion, 1862
os “mortais desprezíveis que, semelhantes a folhas, agora, se encontra em plenitude, fogosos, comendo os frutos dos campos, mas, de tempos em tempo, privados da vida, chegam a seu termo” (Ilíada, Canto XXI, v. 462-467).
Há outros exemplos que se articulam com a Ilíada, mas, como não pretendemos exaurir o texto, apresentaremos apenas dois, que revelam o estilo utilizado por Victor Hugo na tessitura do seu romance. Na descrição da morte do porteiro, por Cabuc, um dos insurretos, morte punida por Enjolras, por ter sido arbitrária e contra um civil inocente, vê-se o cru estilo homérico, na exposição um tanto expressionista da morte (IV, 12, 8, p. 878):
“O porteiro não acabou. O tiro de fuzil foi disparado; a bala lhe entrara sob o queixo e saíra pela nuca, após ter atravessado a jugular.”
Compare-se com a Ilíada (Canto V, v. 69-75):
E Meges matou Pedeu, filho de Antenor,
de nascença ilegítimo, mas sabiamente nutrido por Teano divina,
igual aos queridos filhos, para agradar ao esposo.
O Fileída, ínclito lanceiro, indo até ele, aproximou-se
jogou a lança afiada, sob a cabeça, no pescoço:
e o bronze cortou com precisão a língua debaixo dos dentes.
Tombou no pó e com os dentes mordeu o frio do bronze.
A morte de Gavroche se enquadra bem no estilo da Ilíada, para narrar a morte dos heróis (V, 1, 15, p. 961:
“Ele [Gavroche] nunca acabou [de cantar a canção irônica, enquanto, saltitando, catava as balas no chão para municiar os revoltosos]. Uma segunda bala do mesmo atirador o parou completamente. Dessa vez, ele bateu a face contra o calçamento e não se mexeu mais. Essa pequena alma acabava de se evolar.”
São exemplos que se associam à grande obra homérica e que, a um só tempo, refletem a visão de Victor Hugo de como se constrói uma obra monumental, afinal, “O olhar do drama deve estar presente em todos os lugares” (V, 1, 16, p. 961).
G. Brion, 1862
O heroísmo clássico começa com a comparação da resistência com os 300 de Esparta contra os persas, nessa “jornada espartana do 6 de junho” (V, 1, 2, p. 931), revelando a disposição de lutar até a morte: “Façamo-nos matar aqui até o último” (Faisons-nous tuer ici jusqu’au dernier, V, 1, 3, p. 934). A glória, no entanto, não pode ser um ato perdulário ou se torna gloríola. Devem ficar na barricada apenas os que não têm familiares que dependam de si, pois “a república não é suficientemente rica de homens para fazer gastos inúteis. A gloríola é um desperdício” (p. 935). Dos sessenta homens que esperavam sessenta mil (IV, 12, 7, p. 874), havia apenas quarenta. Para Enjolras, trinta eram suficientes, não sendo necessário sacrificar outros dez (V, 1, IV, p. 934). O perigo exige disciplina e o desespero é para os que não devem jamais recuar à missão. Assim como Eneias que, na Eneida, se joga em meio à batalha e diz que “a única salvação para os vencidos é não esperar qualquer salvação” (Una salus uictis nullam sperare salutem, II, v. 354), episódio aludido por Victor Hugo: “O desespero, última arma, que, às vezes, traz a vitória; Virgílio o disse” (V, 1, 7, p. 944).
Gravura de Os miseráveis, de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
O conceito grego da bela morte, parodiado por M. Gillenormand, é, agora, retomado pelo escritor, no seu sentido pleno, na idealização de um peruqueiro, ao conversar sobre guerras e ferimentos, com um veterano das campanhas napoleônicas, como se evocasse as odes heroicas de Píndaro (IV, 11, 3, p. 850):
“Como é bonito, exclamou o peruqueiro, com um acento pindárico, morrer no campo de batalha.”
Dois séculos antes do poeta Píndaro, já estava estabelecido, na Ilíada, o conceito da bela morte, nas palavras de Príamo, ao ver o filho Heitor esperar Aquiles para o combate singular diante das muralhas de Troia: para um guerreiro, nada mais heroico que morrer jovem, no campo de batalha, lamentando que, com a morte do filho, a sua velhice seria aviltada por uma morte indigna nas mãos do inimigo, que jogaria o seu corpo aos cães (Ilíada, Canto XXII, v. 38-76).
A morte de Príamo ▪ Arte: Johann Andreas Herrlein, c.1760 ▪ Museu Städel, Frankfurt, Alemanha.
O que idealiza o peruqueiro, realiza o velho bibliófilo e botânico M. Mabeuf, fazendo o contrário do que expressa Príamo. Ele morre sobre a barricada, para ali fincar a bandeira dos revoltosos. Morte heroica complementada pela sua roupa ensanguentada, que se torna a nova bandeira (IV, 14, 2, p. 893-895). É uma nova subversão de Homero, mas não para rebaixá-lo, como o fez M. Gillenormand, mas para recriar uma possibilidade ausente do conceito de heroísmo clássico. Hugo se inspira em Homero, mas estabelece as distâncias entre ele e o poeta grego. É a recriação exigida pela poíesis, como preconizava Aristóteles.
Aquiles lamenta a morte de Pátrocles ▪ Arte: Gavin Hamilton, c.1760 ▪ Galeria Nacional da Escócia, Edimburgo.
O clímax do heroísmo clássico se encontra na Parte V, Livro I, A guerra entre quatro muros, Capítulo XXI, “Os Heróis” (p. 980-983). Quem não se lembra do assédio mortal dos Troianos contra os Argivos, principalmente entre os Cantos XI e XVII, quando a batalha vai para dentro do acampamento argivo, Pátrocles é morto (Canto XVI), há uma luta pela posse de seu corpo (Cantos XVI-XVII) e o resultado são muitos heróis argivos feridos: Menelau, Odisseu, Agamêmnon...? Há, sem dúvida, uma transposição desses episódios por Victor Hugo, de maneira sintética, para o auge da batalha na barricada (V, 1, 21, p. 982):
“Bossuet foi morto; Feuilly foi morto; Courfeyrac foi morto; Joly foi morto; Combeferre, atravessado por três golpes de baioneta no peito, no momento em que levantava um soldado ferido, nem teve tempo de olhar o céu, e expirou.
Marius, sempre combatendo, estava tão crivado de ferimentos, particularmente na cabeça, que seu rosto desaparecia no sangue e dir-se-ia que ele tinha a face coberta por um lenço vermelho.”
G. Brion, 1862
Victor Hugo, no entanto, não se contenta com aproximar o seu texto do de Homero. Ele cita, textualmente, o poeta grego, mostrando a fonte em que ele se alimentou, traduzindo em sete linhas, um verso do Canto XV (v. 518) e 24 versos do Canto VI da Ilíada (v. 12-36), momento em que brilha a glória de Diomedes, numa continuidade da Tideidomaquia, iniciada no Canto IV (Parte V, Livro 1, Capítulo 22, p. 982):
“Homero diz: ‘Diomedes corta a garganta de Axilo, filho de Teutranis [Teutrante], que habitava a feliz Arisba [Canto VI, versos 12-13]; Euríalo, filho de Mecisteu, extermina Dreso e Ofélcio, Esepo e Pédaso que a náiade Abarbarea concebeu do irreprochável Bucólion [v. 20-28]; Ulisses abateu Pidites de Percose [v. 30-31]; Antíloco, Ablero [v. 32]; Polipetes, Astíalo [v. 29]; Polidamante, Otos de Cilene [Canto XV, verso 518]; e Teucro, Aretáon [Canto VI, v. 31]. Megâncio [Melâncio] morre sob os golpes da lança de Eurípilo [v. 36]. Agamêmnon, rei dos heróis, matou Étatos [Élatos], nascido na cidade escarpada que o sonoro rio Satnoís banha’ [v. 33-34].”
Embora Victor Hugo troque alguns nomes, como se pode ver nos destaques acima, é a sua maneira de tornar grandiosa a luta por uma convicção ou por uma lealdade, no caso a convicção republicana com a sua lealdade ao bem maior que a República pode proporcionar – a liberdade, bem supremo e direito inalienável, como preconiza Courfeyrac: “O direito não é o direito senão por inteiro” (Le droit n’est le droit qu’entier, III, 4, 4, p. 531).
G. Brion, 1862
Nessa perspectiva, a luta pela convicção de uma sociedade republicana, libertária e igualitária, não poderia ter uma melhor representação, na junção de um jovem soldado e de um pálido jovem estudante de medicina; este lutando pelo seu ideal, aquele pela sua bandeira. Os dois, se imaginando combater pela pátria (V, 1, 21, p. 982-983), farão de seu esforço uma luta de titãs:
“A luta será colossal, e a sombra que eles farão, nesse grande campo épico em que se debate a humanidade, esse soldado e esse estudante, igualará a sombra que lança Megárion, rei da Lícia plena de tigres, estreitando em um corpo a corpo, o imenso Ajax, igual aos deuses.”