Li, já há algum tempo, na imprensa on-line , que a Academia Brasileira de Letras decidiu não utilizar a linguagem neutra. Já estava no ...

''É uma motoboya, mamãe!''

linguagem neutra todes
Li, já há algum tempo, na imprensa on-line, que a Academia Brasileira de Letras decidiu não utilizar a linguagem neutra. Já estava no tempo de a nossa maior instituição tomar uma decisão clara a respeito do assunto. Nada contra quem utiliza a pretensa linguagem neutra. Cada um faz uso da língua como deseja, ninguém irá ser preso por causa disso. O que não pode acontecer é decidir-se, unilateralmente, que o uso será obrigatório,
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à revelia dos donos da língua, os usuários. E os motivos são vários.

Comecemos dizendo que a língua é imune a qualquer legislação por decreto. Língua é uso e a mudança pretendida não abrange todas as pessoas. A questão é que não se trata de fazer voltar o neutro, já previsto no sistema da língua. Na realidade, o que se quer é uma neutralização da língua. O neutro apenas se encontra em desuso, desde as modificações ocorridas no galego-português, atestadas e ratificadas pelo português, quando da gradativa separação dos dois idiomas, a partir do século XIII. O fato de o neutro ter caído em desuso não significa que ele não possa ser reativado. Mesmo em desuso, ele permanece no sistema da língua. Quem vai decidir sobre o seu retorno ou não são os usuários.

Este é o principal argumento para a decisão tomada pela Academia Brasileira de Letras: o uso atual está restrito a nichos, que não conseguem impactar uma massa significante dos falantes da Língua Portuguesa, que, esclareça-se, não se restringem ao Brasil. Em consequência, como o uso não vai ser adotado por quem tem a obrigação da preservação do idioma,
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professores não poderão exigi-lo de seus alunos. E, acrescentaria, também não podem ensinar, alegando que as línguas se modificam. Aos professores, sobretudo, cabe esclarecer o que é a língua e o seu sistema.

O argumento de que as línguas se modificam não se aplica à questão. As línguas se modificam numa velocidade independente de nossa vontade, sempre vinculada à quantidade dos falantes que a utilizam. Esta velocidade é maior quando se trata de aquisição lexical. Quando se trata de mudança na sua estrutura, há uma certa impermeabilidade, no que concerne a mudanças, principalmente, as ditadas por pequenos grupos ou por nichos, como bem o disse o presidente da Academia Brasileira de Letras. Para o neutro não ser utilizado por algumas línguas de origem latina, foi necessário um contato do latim com outros falares, longe do centro do império romano, o que gerou uma modificação ditada pelas necessidades de um grupo majoritário de falantes, cujo uso se afastava, cada vez mais, da língua imposta pelo dominador, em direção a uma língua vulgar (no sentido de comum), que dela se derivou. Para que se entenda melhor a minha argumentação, digo que é mais fácil entrar para a língua portuguesa o termo "motoboya" do que "todes".

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Aqui vai o que respalda a argumentação do parágrafo anterior e justifica o título deste artigo. Uma menininha foi, com sua mãe, receber a comida entregue em sua casa. Para espanto dela, não era um entregador, um motoboy, mas uma entregadora. Prontamente, ela disse à mãe: “É uma motoboya, mamãe!”. Imagine uma criança de 3 anos que nunca foi à escola, nunca estudou formalmente a língua portuguesa, mas é uma falante natural da língua, com a sua estrutura básica internalizada, e que vai aprendendo por aquisição a utilizar os mecanismos que a língua disponibilizou. Se ela vivencia, no dia a dia, a oposição gato/gata; tio/tia; sobrinho/sobrinha, filho/filha, ela automática e racionalmente faz uso da lógica interna do sistema e dispara um “motoboya”, como oposição a “motoboy”, termo este já dicionarizado, sendo um passo a mais para que o seu par opositor venha a existir, ainda que o dicionário diga que o feminino é “motogirl”. E o dicionário, perdoem-me, está errado. O feminino, pelo sistema da língua portuguesa, quando permite a existência de um par opositor, é “motoboya” ou “motoboia”, forma que tenderia à simplificação, o mesmo valendo para motoboy > motoboi. Por que o dicionário está errado? Pelas mesmas razões que utilizamos para bode e cabra. Bode é uma palavra masculina,
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cabra é palavra feminina, mas não o feminino de bode – que poderia ser boda. Entre essas palavras há uma relação semântica envolvendo o sexo dos animais, mas as palavras têm radicais diferentes, não havendo, portanto, uma flexão de gênero. No caso de motoboy/motogirl, o que existe é uma derivação e, insisto, quando se trata de gênero, o processo é flexional, não derivacional. Ponto para a garotinha, que, de uma só lapada, mostrando que existe uma lógica na língua, desmonta a afirmação do dicionário e os gramatiqueiros de plantão.

Sem se dar conta, o sistema linguístico de que somos dotados, para falar qualquer língua, atua na garotinha e nos diz que motoboya/motoboia é aquisição lexical. Mesmo que sua procedência seja inglesa, a flexão permitida a inclui no sistema da língua portuguesa.

No caso do pretenso neutro, a mudança afeta a estrutura da língua, por não estar prevista pelo sistema. Enquanto na nossa língua há um paradigma de gênero para incluir motoboia, o mesmo não existe, quando se trata, por exemplo, de "todes", "todxs" e "tod@s", tendo em vista que tais falsas desinências de gênero neutro (-e, -x, -@) não estão previstas no sistema da língua.
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Aliás, ouso prever que as duas últimas nunca serão adotadas, ao menos no português. Adotar uma delas – para haver uma lógica, as três não podem ser adotadas, pois a língua não trabalha com desordem –, constituiria uma mudança na estrutura da língua, que tem como padrão a ser seguido e previsto, desde o latim, a desinência de gênero -a, quando existe a oposição com o masculino, sendo o masculino, em português, como sabemos, não marcado. Em gato, o -o é vogal temática, como era no latim, em que -a e -o aglutinavam a informação desinencial de vogais temáticas da primeira e da segunda declinação, com o gênero da maioria absoluta de palavras femininas e masculinas dessas respectivas declinações. Com relação ao neutro, o latim previa as desinências -u (verbum), -us (corpus), -en (flumen), -e (facile), entre outras, para o singular, e -a (verba, corpora, flumina, facilia), para o plural, não havendo plural em -s, para o acusativo neutro, caso que gera as palavras para a língua portuguesa.

Faço apenas uma ressalva, no que diz respeito a ser o MEC, como afirmou o presidente da ABL, quem decide sobre questões de língua. Quem decide e sempre decidirá é a instituição que entende da língua e que, tradicionalmente, é a sua guardiã e das suas normas: a Academia Brasileira de Letras. Não será uma instituição burocrática como o MEC, que terá qualquer competência para descrever o que é um processo linguístico.

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  1. Perfeito, Milton. Seu texto é uma aula transparente e oportuna. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Sabe mais do que todes nós ... Ah ah ah. Esse todes é phodha mermo. Que doidera! Fico aperreado com essas coisas impostas por facções políticas. Agora aparecem municípios com sua moeda própria, partido mudando as palavras para incluir , afastando. O "gade" não aprende mesmo.
    G. G. CARSAN

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  3. Minha santa avó sempre repetia: a ignorância é uma bandeira desastrada. Quanto mais o tempo passa, mais confirmo a sabedoria de suas lições. Ainda bem que existem os professores, antídotos dessa “bandeira desastrada”. Parabéns por sua preciosa erudição, de que anda tão carente nossa contemporaneidade. Você coloca no lugar certo um assunto que não admite superficialidade. Infelizmente, existem cegos que preferem não ver e surdos que preferem não ouvir. Mas sua aula sábia “é espírito, é éter, é substância fluida”.

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