O poema deve agradar ao leitor, não ao crítico. Se ele agrada ao crítico, tanto melhor. Vejo o poema como um relógio, cujo destino fi...

O poema e o relógio

O poema deve agradar ao leitor, não ao crítico. Se ele agrada ao crítico, tanto melhor. Vejo o poema como um relógio, cujo destino final é o usuário, não o relojoeiro. Ao usuário é suficiente que o relógio lhe forneça o que ele deseja: a exatidão na marcação das horas. Quanto mais o relógio atender à expectativa do usuário, maior será a sua satisfação. O usuário admira-se com a exatidão, com a marcação, dia após dia, dos segundos, minutos e horas.
Jean Louis Ernest Meissonie, S.XIX
Para ele, é inútil saber os segredos que se encontram no interior do relógio e dos ajustes finos que foram necessários para que as suas engrenagens funcionem com perfeição, resultando numa falsa ideia de simplicidade.

Refiro-me mais aos relógios tradicionais com ponteiros de segundos e minutos/horas, girando em torno do visor. Os relógios eletrônicos não são apreciáveis, embora possam dar uma precisão maior, mas não dão a beleza da sugestão de que o mundo gira em torno do braço do usuário, no itinerário dos ponteiros, ainda que analogicamente, como o mundo é.

A máquina pronta, sem qualquer indício de um trabalho refinado e sofisticado de precisão, foi entregue ao usuário, que se contenta em ter um objeto de utilidade prática no braço, aos que ainda usam o relógio analógico, ainda que possam optar por um mais refinado e de alto custo. Mas a essência é a mesma. Eu posso me encantar com o adorno, mas o que me move é a satisfação de ter o mundo girando em meu braço, por meio de seus ponteiros, movidos pela sua engrenagem. O usuário quer resultado.

Pompeo Massani, S.XIX ▪ Col. particular
O relojoeiro é diferente do usuário. Ele se agarra ao resultado, mas é obrigado a conhecer o mecanismo. Como relojoeiro, ele não se contenta com o fato de que o relógio move o mundo. Ele quer ver o seu interior, quer entender o processo que faz aquele pequeno utensílio mover o mundo; quer conhecer o segredo das engrenagens, diminutas, que o fazem trabalhar; quer saber como se montou o sistema e como ele se desmonta, tendo que remontá-lo, para que volte a funcionar e dar a satisfação a quem ele se destina: o usuário.

Se o relojoeiro sabe o segredo das engrenagens e se entrega apenas ao trabalho de consertá-las, quando se desgastam ou diante de qualquer outro problema, é um pobre relojoeiro, que não tem a possibilidade de admirar o mecanismo que tem nas mãos. Quando, além de saber o segredo de o relógio poder mover-se ad infinitum, ele reconhece a beleza poética dessa máquina, o relojoeiro deixa de ser um mero técnico de um objeto prático e objetivo, e passa a ser o apreciador de uma beleza subjetiva, procurando pagar esse deslumbramento, com a refinação de seu trabalho na remontagem da máquina. Ganha o usuário, também ganha o relojoeiro, por ter deixado de lado a banalidade da engrenagem, para vê-la como a mola que move a vida.

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Assim é com o poema. O poema é a coisa feita, a máquina entregue ao leitor, que pode ou não se encantar com o que lê, transformando a máquina fria em um algo que lhe traz um prazer mais do que a mecânica leitura de versos. É o momento em que o leitor sente que o poema se transformou em poesia. E isso é suficiente ao leitor. Em geral, ele não está interessado em saber dos processos porque o poema passou até chegar às suas mãos e aos seus olhos e ouvidos. Ouvir o resultado de todo um processo já é um prazer inigualável, que não o obriga a ir em busca de saber como foi o trabalho, qual o itinerário percorrido até chegar a ele.
Thomas Eakins, 1882 ▪ Metmuseum
Se ele, motivado pelo mistério da criação, busca saber, tanto melhor. Mas não há qualquer necessidade disso.

Já o crítico, ele tem a obrigação de saber de cada passo do processo. Se o poema o encantou e, já na leitura preliminar, se tornou poesia, quando ele for atrás dos passos de sua construção, o crítico o amará ainda mais. Ele sabe como se montou o processo, ele sabe como desmontá-lo, e deverá saber, ainda mais do que os passos anteriores, como remontá-lo, demonstrando o prazer que é percorrer cada instante de ver-se diante da criatura – o poema – e do instante da criação – a poesia –, para, assim, conhecer melhor o seu criador, o poeta, dando o retorno que ele merece e que espera.

O crítico que se enrola no tecnicismo e trata o poema como coisa morta é como o relojoeiro que vê no relógio apenas um conjunto de engrenagens e molas. Ambos são os técnicos limitados em ver apenas uma materialidade. Falta-lhes o lampejo de ver nessa materialidade morta, a chama viva da criação imorredoura.

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Augusto dos Anjos conseguiu as duas coisas: cativou os leitores e cativou os críticos, que nele viram além de um poeta com uma dicção esdrúxula; além da banalidade de ser considerado poeta da morte e da degradação.

Quando olhamos para além da forma, é difícil não nos encantarmos com os versos abaixo de Gemidos de Arte (estrofe 21, parte II, versos 81-84):

Um pássaro, alvo artífice da teia De um ninho, salta, no árdego trabalho, De árvore em árvore e de galho em galho, Com a rapidez duma semicolcheia.

O trabalho de construção da teia é o trabalho de construção da vida, e a vida pode ser construída de trabalho e poesia. Na duração do tempo musical, construindo a música, reflete-se a duração da construção da vida, pelo pássaro.
Jean Louis Ernest Meissonier, S.XIX
A rapidez do inocente pássaro combina com o conceito que se embute na semicolcheia, de um compasso mais rápido na música, o que se vê garantido pela ectlipse que vai existir na junção de “com” e “a”, resultando em “coa”. Constrói-se, assim, a ideia de que a vida é dura e incessante construção, cujas ações devem surgir com a mesma rapidez de uma nota musical. A vida teria duração breve como uma semicolcheia e nós, viventes, somos o inocente pássaro trabalhando arduamente para a construção de uma passagem efêmera. O ritmo da estrofe não deixa, por sua vez, de se construir nessa rapidez exigida, principalmente no que diz respeito ao verso 83 – “De árvore em árvore e de galho em galho” –, em que a conjunção aditiva faz a ligação necessária da continuidade, para que não haja a pausa indesejada da vírgula.

O mesmo se dá, quando se apura o ouvido para ouvir a aliteração sibilante, que ajuda a compor a metáfora do junco tornado chicote, na estrofe seguinte do mesmo poema (estrofe 22, parte II, versos 85-88):

Em grandes semicírculos aduncos, Entrançados, pelo ar, largando pelos, Voam à semelhança de cabelos Os chicotes finíssimos dos juncos.
Juncos no Lago ▪ Peder Monsted, 1901
Quod erat demonstrandum. Assim como o relojoeiro deve afinar o seu ouvido para compreender que o mecanismo é mais do que um amontoado de metais, o crítico deve afinar o seu ouvido para ver além do que está escrito. Como o poema foi feito para os ouvidos, não para os olhos, saber reconhecer a poesia na leitura tout court é voltar a ouvir o surdo tic-tac do relógio, que supera a sensaboria dos silêncios digitais, que apelam apenas aos olhos, nunca aos ouvidos.

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  1. Texto de refinado relojoeiro. Parabéns, Milton, e uma ótima viagem. Francisco Gil Messias.

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    1. Obrigado, Gil! Um abraço da Bahia para você.

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