A vida de Celso Furtado foi sem dúvida trepidante, pois até à guerra ele foi, no verdor de seus 24 anos de idade, com uma maturidade que hoje faz inveja a muitos marmanjos de 40 anos. Estamos falando de fins de 1944, quase final da Segunda Grande Guerra, quando o Brasil enviou à Itália mais de cinco mil homens, entre oficiais e praças, para ajudar no esforço dos países aliados na luta contra o nazifascismo.
Durante o período que Furtado passou na Itália, mais exatamente entre fevereiro e setembro de 1945, na condição de segundo-tenente atuando em missões na Toscana e em Nápoles, ele escreveu textos (contos, cartas e pequenos ensaios) sobre
Rosa Freire d'Aguiar Companhia das Letras
o seu cotidiano militar, os quais agora são dados a público em edição da Editora Companhia das Letras, organizada por sua viúva, a escritora e tradutora Rosa Freire D’Aguiar. É uma nova faceta do grande economista que é revelada àqueles que se interessam por esse brilhante brasileiro do século XX, nascido em Pombal, na |Paraíba, em 1920. Na realidade, trata-se de uma atualizada e ampliada reedição de De Nápoles a Paris, de 1946, com o título O Tenente – Cadernos de um Expedicionário na Segunda Guerra Mundial.
Por dominar o idioma inglês, Furtado foi designado como oficial de ligação junto aos militares aliados. Isso lhe proporcionou, digamos, uma posição menos exposta aos riscos próprios de um conflito armado e também a oportunidade de estabelecer relações com segmentos superiores dos aliados. Já aí se vê a diferença que a boa formação intelectual fez na vida do futuro economista. Falar inglês abriu-lhe portas no exército e, posteriormente, na vida acadêmica.
Calso Furtado (Italia, 1945) FEB
Participar da Força Expedicionária Brasileira foi uma decisão pessoal do jovem Celso, decisão que foi na contramão de muitos outros jovens de seu tempo, os quais procuraram, como puderam, fugir à convocação. Anos depois, ele comentou: “Fiquei muito satisfeito por ter sido convocado. Mesmo se houvesse a possibilidade de escapar, eu não teria escapado. Podia ter me aproximado de alguém, pedido uma intervenção… Muita gente fez isso”. Esse patriotismo juvenil, sabe-se, permaneceria no economista e homem público sempre preocupado com os destinos de seu país.
Desde o primeiro texto, “Dois cigarros”, observa-se um domínio da palavra escrita que revela ao leitor o literato que Celso Furtado pretendia ser e que terminou não sendo, já que a economia acabou por prevalecer em sua vida. Sobre uma refeição feita com companheiros de armas num vilarejo das redondezas de Módena, ele escreveu: “Calados, bebíamos metodicamente. Cada um sabia que os outros estavam a recordar a sua terra. Mas um pudor quase místico nos coibia de pronunciar sequer o nome daqueles lugares sagrados. Qualquer coisa ligava dentro de nós a pátria distante aos amigos mortos ali perto. E a precariedade do futuro dava ao passado uma significação e um valor que nunca lhe suspeitáramos”. Vê-se aí um estilo de escritor, não é mesmo? Na forma e no conteúdo.
Celso Furtado (à esquerda) na Riviera Italiana, em 1945 FEB
O economista sempre foi contido ao falar sobre si mesmo, do ponto de vista de sua intimidade. Seus “diários” mostram isso de forma muito clara. Entretanto, nessas narrativas da vida expedicionária ele foi menos rígido em sua notória reserva, talvez sob os impulsos de uma juventude que então se abria para a vida adulta, não sei. É o que observamos no texto “O Brasil em Capri”, no qual entra em cena, pelas mãos do autor, uma certa “morena quase tropical de olhos de pitonisa”, corista do Teatro São Carlos, de Nápoles. Ela é a companhia do jovem Celso em sua visita a Capri. Seu nome era Mimi, apropriadíssimo para uma corista italiana de meados do século XX, diga-se de passagem, e seus beijos eram doces, certamente. E o mais interessante é que não era a primeira conquista do galã brasileiro: é o que se conclui das próprias palavras do narrador quando escreve sobre sua chegada a Capri: “Eu desfrutava mais uma daquelas tochas que iluminaram a solidão do meu desterro. E, como sempre, não estava só. Tinha pelo braço uma corista do São Carlos de Nápoles”. Vejam só, quem diria. Esse “como sempre” diz tudo.
Teatro San Carlo, de Nápoles Diego Delso
O livro inclui também um texto, “Na Paraíba”, provavelmente referente a uma palestra que Furtado apresentou em João Pessoa, em outubro de 1945, logo após seu retorno à pátria. Trata-se de um breve relato sobre as impressões do palestrante a respeito da Itália e dos efeitos do fascismo e da guerra sobre o país. Este texto prova a permanência do vínculo afetivo entre o autor e a terra natal, vínculo este sempre afirmado e reafirmado por sua viúva.
Já o ensaio “O fascismo como ideologia”, escrito em 1947, em Paris, quando o autor tinha apenas 27 anos, além de revelar a extraordinária precocidade intelectual do ensaísta, mantém sua atualidade, nestes nossos tempos em que a extrema-direita tem conquistado espaço no cenário político de vários países.
Em sua detalhada apresentação, Rosa Freire D’Aguiar registra que “Celso não gostava de falar da guerra”. E explica esse silêncio como resultado da mágoa de Furtado - que retornara da Itália com duas medalhas – pelas perseguições sofridas logo depois do golpe militar de 1964 por parte de outro herói da FEB, o marechal Castelo Branco. Faz sentido. Agora, completados oitenta anos da experiência bélica daquele jovem de vinte e poucos anos, o público leitor tem acesso aos seus escritos de então, importantes para uma mais completa compreensão do homem que os produziu.
A publicação desse livro constitui mais um serviço prestado por Rosa Freire D’Aguiar à cultura brasileira em geral e aos estudos furtadianos em particular. Ela já nos ofertou, entre outros, os diários e a correspondência intelectual de Celso Furtado, abrindo-nos, nesta oportunidade, mais um ângulo de observação, a partir do qual o leitor contemporâneo poderá aumentar a admiração pelo paraibano de Pombal que conquistou o mundo.