Lê-se “A cerimônia do adeus”, de Simone de Beauvoir, com um olho no texto e outro na realidade. É certo que, não sendo ficção, mas um ...

''A cerimônia do adeus''

Lê-se “A cerimônia do adeus”, de Simone de Beauvoir, com um olho no texto e outro na realidade. É certo que, não sendo ficção, mas um relato dos últimos dez anos de Sartre, a narrativa é realidade. Mas o leitor, que de uma forma ou de outra acompanhou a aventura intelectual do par famoso, não escapa ao impulso de bisbilhotar. Uma bisbilhotice superior e desculpável, cujo objetivo é surpreender contradições que revelem, por exemplo, a burla.

Simone e Sartre Willy Rizzo
Mesquinho? Não. Humano. Afinal de contas Sartre e Simone parecem ter marchado sempre à frente do seu tempo, conseguindo o que raríssimos casais conseguem – quando conseguem. Desprezando a chamada moral burguesa, parecem ter superado fraquezas humanas como o ciúme, e resolvido inteligentemente conflitos que, na maioria das pessoas, envolvem o ridículo ou o drama. Daí a curiosidade em torno desse livro de memórias. Onde a verdade, onde a mentira?

A narrativa é bela, tensa. Simone de Beauvoir foi muito criticada por expor a decadência física do filósofo do existencialismo – achaques, incontinência urinária, obnubilações –, dessa forma atingindo-lhe a imagem. Wilson Martins viu no livro uma “vingança psicanalítica” – designação que não deixa de ser paradoxal, pois o sentido que o crítico procura reforçar é o de uma vingança voluntária e, como tal, consciente.

Ora, penso que a autora foi motivada sobretudo pela paixão da verdade. Ela não procurou diminuir nem esconder a sua dor, deixando patente um débito que não foi apenas afetivo. Perpassam a narrativa os sinais de uma profunda admiração intelectual, efeito de influências certamente decisivas.

Simone de Beauvoir Nova Fronteira
Tocou-me particularmente o episódio do testamento de Sartre. Quem, tendo lido o filósofo na sua primeira fase, não se indignou com a entrevista produzida por Benny Lévy? Como era leviano ouvir Sartre dizer que “(falou) em desespero, mas foi uma impostura. Falei porque se falava, porque era moda: lia-se Kierkegaard”! Ou então, mais adiante: “Nunca senti angústia. Essas são noções-chave da filosofia de 1930 a 1940. Isso também vinha de Heidegger.” Parecia irresponsável que ele negasse alguns dos seus conceitos fundamentais, noções que influenciaram jovens de todo o mundo. Boa ou má, essa parecia a verdade da época, primeiro sentida e transmitida pela antena privilegiada que era o cérebro do filósofo.

Benny Lévy @aregledujeu.org
Simone de Beauvoir procura repor a verdade, desagravar o autor de “A náusea” perante seus discípulos e admiradores:

“Fiquei consternada; não se tratava em absoluto do pensamento plural que Sartre mencionava em ‘Obliques’. Victor (o outro nome de Benny Lévy) não exprimiu diretamente nenhuma de suas opiniões: fazia com que Sartre as endossasse...”.

E resume, adiante:

“(Os amigos) ficaram, como eu, aterrados com o conteúdo das declarações extorquidas a Sartre.”

Simone e Sartre Alice Schwarzer
A “impostura” de alguns conceitos e a angústia ante a falta de sentido seriam desmascaradas depois. Por influência da filosofia marxista, Sartre acabaria negando certas ideias-mestras do existencialismo. Mas era importante, obviamente, que elas correspondessem a uma verdade interior, efeito de uma disposição circunstancial, está certo, mas autêntica. O testamento comprometia a sinceridade do homem Sartre, deixava os seus leitores com o sentimento de terem sido logrados.

Devo dizer que sofri além do razoável com a náusea de Roquentin. Não adiantou dizerem que ela era produto de uma cultura decadente, nada tendo a ver com as necessidades e os valores de um país do Terceiro Mundo. Azar meu. Tive as naturais “quebradas de cabeça” de quem se metia a ler indiscriminadamente, ler o que aparecesse num Brasil (olhem aí o Terceiro Mundo!) que se descuidava – e ainda se descuida, e como! – da formação intelectual sistemática dos seus jovens.

Mas o tempo passou, estou escrevendo isto. Me salvei. E, por sobre ficções e equívocos, não posso deixar de enaltecer sinceridade de Simone – seu amor, mais até do que a Sartre, à verdade.

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  1. Texto instigante, Chico. Deu-me vontade de de voltar à "Cerimônia". Parabéns. Francisco Gil Messias.

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