O que faz a essência de uma língua é a sua estrutura, por dizer como ela é formada e como ela funciona. Conhecemos o modo como ela se ...

O português e o latim

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O que faz a essência de uma língua é a sua estrutura, por dizer como ela é formada e como ela funciona. Conhecemos o modo como ela se formou pela sua morfologia, e o seu funcionamento pela sua sintaxe. A morfologia é a anatomia de uma língua; a sintaxe, a sua fisiologia. O léxico é apenas a carnação, de modo que uma língua pode ter na sua composição lexical vocábulos de línguas diferentes daquela da sua estrutura.

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O legado linguístico dos romanos na península Ibérica. ▪ Fonte: Reddit
Por que se afirma que a língua portuguesa é proveniente do latim? Exatamente pela análise desses dois elementos de sua composição. Apesar de ter entrado em contato com diversas línguas, após sua chegada à Península Ibérica – celta, ibero, grego (o contato já era anterior), fenício (idem) – o latim predominou por causa da invasão que lhe concedeu o domínio da península por 8 séculos, do século III a. C. ao século V d.C. O poder bélico e econômico foi determinante para que as línguas ali existentes se misturassem à língua latina, mas sem deixar, necessariamente, marcas profundas. A estrutura da língua de Roma, a Caput Mundi, prevaleceu. O que restou do falisco, do osco e do úmbrio, depois que Roma se impôs na Península Itálica e que o latim engrossou o pescoço, tornando-se, a partir do século III a.C., uma língua com uma escrita literária?

Claro, não podemos omitir que o português nasceu na Galícia, de um pedaço de terra concedido como dote ao conde Henrique de Borgonha, no final do século XI, pelo rei D. Afonso VI, em virtude de seu casamento com D. Tareja,
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D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, neto do conde Henrique de Borgonha. ▪ Wikimedia
a filha bastarda do dito rei. Do nascimento do Condado portucalense, surgem Portugal e uma primeira língua, o galego ou galaico-português, cujo tecido vai, naturalmente, se esgarçando até se transformarem, por volta do século XIV, em duas línguas autônomas, embora muito próximas: o galego, em terras espanholas, e o português, na expansão que o Condado alcança com D. Afonso Henriques, filho de D. Henrique e de D. Tareja, após a vitória na batalha de Ourique, em 1139, data da fundação do reino; expansão em direção ao sul da península. Quem quiser uma explicação mais detalhada e sedutora de ler, recomendo o livro do linguista e filólogo recém-falecido, Fernando Venâncio, Assim nasceu uma língua: sobre as origens do português (Lisboa: Guerra e Paz, 2023).

Mas voltemos ao latim. Por que o português vem do latim? A resposta é simples: se tirarmos do português a estrutura proveniente do latim, sobram apenas as palavras de outros idiomas que, ao longo do século, foram incorporadas ao seu léxico: latim, germânico, árabe, inglês, francês, línguas africanas e, no caso específico do Brasil, as várias línguas indígenas.

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Quando analisamos a estrutura do português, percebemos que a sua flexão verbal, atestada por meio de inúmeros textos, de épocas variadas, do período arcaico ao período medieval, é muito semelhante à da língua latina. São seis pessoas verbais, cuja forma obedece ao padrão latino de Tema (Radical e Vogal Temática), Desinência ou Sufixo Modo-Temporal (quando houver necessidade) e Desinência Número-Pessoal. Em ambas as línguas, as conjugações verbais são igualmente conhecidas pelas suas respectivas vogais temáticas (há toda uma discussão, que pularemos, no sentido de afirmar se a terceira conjugação latina é constituída de uma vogal temática ou de uma vogal de ligação):

LATIMPORTUGUÊS
Primeira conjugação: ā, “a” longoamāre amar
Segunda conjugação: ē, “e” longo vidēre ver
Terceira conjugação: ĕ, “e” brevelegĕre ler
Quarta conjugação: ī, “i” longovenīre vir
A diferença, no que diz respeito à classificação das conjugações verbais, pode ser explicada pelas acomodações naturais de uma língua para outra. O latim tem quatro conjugações, o português tem três, pois fundiu a segunda, caracterizada pela vogal temática longa (ē), com a terceira de vogal temática breve (ĕ), tornando-se apenas uma, no caso, a segunda conjugação. O que era a quarta conjugação no latim, com a vogal temática longa (ī), tornou-se a terceira na língua portuguesa. Isso ocorreu devido ao processo de simplificação que existe na passagem de uma língua para outra, como é o caso da inexistência, no português, de declinações,
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o que implica na inexistência da concordância de caso, como ocorre em latim.

Avancemos em direção ao sistema verbal. O verbo é o oxigênio da língua; sem ele, o cérebro, que é a estrutura oracional, não funciona ou funciona de modo capenga. Analisando as desinências número-pessoais, vemos que todas as formas flexionadas nos diversos tempos e modos apresentam as mesmas dnp’s (1ps -o, -m; 2ps -s; 3ps -t; 1pp -mus; 2pp -tis; 3pp -nt), com exceção do presente do indicativo perfectum, que chamamos de pretérito perfeito do indicativo, que tem desinências próprias (1ps -i; 2ps -isti; 3ps -it; 1pp -imus; 2pp -istis; 3pp -erunt, ēre):

Alguém já se perguntou por que, em português, todas as formas de segunda pessoa do singular, no indicativo e no subjuntivo têm um -/s/ como desinência número-pessoal, e a segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo não tem? Exatamente porque herdou essa forma do latim: amavisti > amaste; vidisti > viste; legisti > leste; venisti > vieste. Com essa informação, não precisamos forçar, como muitos fazem, a hipercorreção gramatical para dizer tu amastes ou tu viestes...

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Com o acomodamento, na passagem do latim para o português, algumas dnp’s se mantiveram, com pequenas alterações, outras caíram, num processo fonético chamado de apócope, como é o caso da terceira pessoa do singular: amo/amo; amas/amas; amat/ama; amamus/amamos (metafonia); amatis/amais (síncope); amant/amam (apócope e transformação natural do /-n/ ápico-dental em /-m/ bilabial, ocasionando uma ditongação nasal, com a perda da função consonantal bilabial do /-m/ final: /amãw/).

Em alguns verbos, como ter e pôr, a segunda pessoa do plural tem uma dnp que muitos dizem ser uma exceção. Não é. A explicação para tendes e pondes requer o conhecimento de fonética histórica: tenetis > tenedes (sonorização e metafonia) > tendes (síncope). O mesmo se aplica a pondes: ponetis > ponedes > pondes.

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Caso interessante é o do imperativo afirmativo. Em latim, o imperativo presente só tem duas pessoas, a segunda singular e a segunda do plural: ama/amate. O português adotou as formas tiradas do presente do indicativo, sem as dnp’sama/amai –, porém, acrescentou mais três oriundas do presente do subjuntivo.

No tocante às desinências ou sufixo modo-temporais, o encaixe é perfeito: assim como no latim, o presente do indicativo e o pretérito perfeito do indicativo não possuem os smt’s, o que, pela ausência, já revela o tempo dessas duas formas verbais. O -va e o -ia do imperfeito do indicativo, no português, vêm do -ba e do -iba (smt -ba, com apoio seja de uma vogal temática, seja de uma vogal de ligação): amabamus > amávamos; videbamus > víamos; legebamus > líamos; ibamus > íamos.

Sabem qual é a smt das formas verbais do presente do imperativo, para os verbos da primeira conjugação, em latim? /-e/, como em português: ames/ames. Para os verbos da segunda e da terceira, acontece o mesmo, /-a/: videas/vejas; legas/leias; audias/ouças.

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Ainda permanecendo no sistema verbal, falemos um pouco da voz passiva. No latim, existem duas formas de voz passiva. Uma é desinencial, portanto sintética, aplicada no infectum, na qual as desinências número-pessoais da voz ativa são trocadas pelas desinências da passiva:

1ps-o, -m-or
2ps-s-ris (-re)
3ps-t-tur
1pp-mus-mur
2pp-tis-mini
3pp-nt-ntur
Para que se diga, em latim, “eu sou amado”, a forma seria “amor”; “eu sou visto”, “videor”.

A segunda forma da voz passiva, aplicada no perfectum, é perisfrástica, necessitando, portanto, de uma frase para se expressar. Essa forma é construída com a flexão do verbo sum (ser), em seus vários tempos no perfectum, mais o particípio passado do verbo
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que se quer conjugar. É óbvio que essa forma prevê não só a flexão no singular e plural, mas também no masculino, feminino e neutro. Para se dizer “eu fui amado”, diz-se amatus sum, o que leva os que desconhecem o sistema passivo latino ao engano de traduzir como se fosse “sou amado”, forma do infectum que, como já vimos, se diz “amor”. Para se dizer “elas foram amadas”, diz-se “amatae sunt”. Já, para se utilizar o neutro, na forma “algo foi amado”, diz-se “amatum est”.

Pela explicação do parágrafo anterior, o leitor já descobriu que a nossa voz passiva, por ser perifrástica, veio do sistema do perfectum, não do infectum, cujo sistema desinencial foi rejeitado, na passagem do latim para o português.

Se analisarmos a flexão nominal do português, veremos que as palavras do latim que foram incorporadas à nossa língua vieram pelo acusativo, chamado tecnicamente “caso lexicogênico”. Como o acusativo plural, à exceção do neutro, se forma com o acréscimo da desinência de gênero /-s/, a formação do nosso plural é da mesma maneira:

lupa > loba (nominativo singular)lupas > lobas (acusativo plural)
lupus > lobo (nominativo singular)lupos > lobos (acusativo plural)
Aproveitemos o exemplo acima e digamos que a nossa flexão de gênero, que já foi explicada em texto anterior (A sutileza morfossintática da língua portuguesa), também segue o sistema latino, a partir da diferença estabelecida pelas vogais temáticas /-a/ e /-o/. Esta caracteriza a segunda declinação, predominantemente, masculina; aquela, a primeira, predominantemente, feminina.

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É necessário, ainda, desfazer o conceito errôneo a respeito do latim vulgar. O termo “vulgar” (vulgaris, vulgare), em latim, tem o sentido de “comum”, não, necessariamente, o sentido pejorativo que lhe emprestamos. Trata-se, portanto, de um uso comum da língua, tendo em vista que o latim culto, a chamada norma culta, era usado por poucos, assim como, ainda atualmente, na nossa língua. Alguns termos considerados vulgares, como “verso” (versus) e “culto” (cultus), por exemplo, originaram-se no mundo agrário, designando, respectivamente, o sulco aberto pelo arado, o qual retornava fazendo novo sulco, e, após o plantio, o cuidado com a semeadura. Com o passar do tempo, passaram a compor o vocabulário culto, a ponto de se dizer que um homem culto é um homem versado...

Também não podemos confundir os registros vários da língua, quando transformada em linguagem. Ninguém deve achar que o latim de César, Virgílio e Horácio era o latim que as pessoas falavam. Além de culto, esse latim era literário. A língua do usuário é mais livre e nem por isso deixa de ser língua. O fato de o usuário de determinada língua usá-la de modo diferente da norma culta, buscando formas novas, porém previstas pelo sistema linguístico, não desabona a sua linguagem, tendo em vista que a gramática da língua, que é natural, é maior, muito maior que a gramática dos gramáticos, cujas escolhas como norma culta são uma orientação para o bom uso da língua, não leis inexoráveis que devem ser aplicadas a todo custo.

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Enfim, não há nada tão sedutor quanto o estudo da língua, sobretudo por se aprimorar e se tornar cada vez mais preciso, a partir da descoberta de novos documentos, levando a novas compreensões. Numa época em que se criou uma ciência seletiva, que funciona para umas coisas e para outras não, há quem deseje fazer revisões na história da língua, tendo como base um caráter puramente ideológico ou doutrinário, esquecendo que o sistema linguístico é uma ciência, cujos elementos falam per se.

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  1. Mais uma vez, o mestre em sua plena forma. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil!

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