De repente, durante o curso sobre Os Miseráveis , surge a pergunta: Victor Hugo é um grande escritor, criador de sentenças e máximas, o...

Com a linha da paródia e da ironia

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De repente, durante o curso sobre Os Miseráveis, surge a pergunta: Victor Hugo é um grande escritor, criador de sentenças e máximas, ou é um mestre que influenciou outros grandes escritores? Respondi que ele foi as duas coisas. Mas foi, sobretudo, mais do que isso. Ele foi um gênio. Cada página de Victor Hugo exige grande reflexão
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G. Brion, 1862
e cobra de seus leitores um amplíssimo horizonte de expectativa, além da capacidade de ler o que as suas dobras metafóricas escondem.

Como dizer sem provar não é dizer, recorro a um capítulo do romance, que, com certeza, será lido às pressas, à vol d’oiseau, tendo em vista que parece deslocado do acontecimento em pauta, no início da Quinta parte, Jean Valjean; desdobramento da parte anterior, O idílio da rua Plumet e a epopeia da rua Saint-Denis, enfocando a insurreição popular, de caráter republicano, cujas barricadas se levantam, nos primeiros dias de junho de 1832, contra a monarquia de Luís-Filipe, último rei de França.

O capítulo em questão é o 16, intitulado “Como de irmão alguém se torna pai” (Comment de frère on devient père). Capítulo curto de seis páginas, que traz de retorno à narrativa os dois irmãos mais novos de Gavroche, emprestados pelos Thénardier a uma mãe bandida, de nome Magnon, mediante a quantia de dez francos por mês, para que eles se passem pelos filhos de M. Gillenormand, mortos durante a epidemia de cólera. Os dois garotos são os personagens do Livro 6, Le petit Gavroche, da Quarta parte de Os Miseráveis, junto com Gavroche, que nem sabe que
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G. Brion, 1862
eles são seus irmãos. O “empréstimo” dos Thénardier a Magnon, a mãe deles, se dá no capítulo 1, “Brincadeira malvada do vento” (p. 746). A quem não se der o trabalho de ler com atenção, o capítulo 16 entrará na conta dos que bem poderiam não estar ali. Para os apressados, o capítulo é uma excrescência, por, aparentemente, nada acrescentar ao texto. É exatamente aí que reside o engano.

Digamos, inicialmente, que se trata de um capítulo de contrastes, cuja tessitura é feita com a linha da paródia e da ironia. Victor Hugo escolhe, como ambiente, o Jardim do Luxemburgo, para reintroduzir os pequenos na narrativa. Não se trata de uma escolha aleatória, mas proposital, tendo em vista que o espaço já foi palco idílico do primeiro encontro entre Marius e Cosette, onde ocorrem as primeiras centelhas amorosas, lançadas pelos encontros de seus olhares. Agora, como contraponto, o Jardim é o palco da miséria, com os dois garotos perambulando por ele, de modo clandestino, pois, andrajosos como se encontravam, a sua entrada seria barrada por lei. São duas crianças, um com 7; outro com 5, sem nome, molhados da chuva e pálidos de fome (“O menor dizia: eu tenho muita fome”, p. 961), perdidos.

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Gravura do livro Os miseráveis, de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica.
O contraste se aprofunda quando Victor Hugo descreve a exuberância da natureza, em pleno fim de primavera, deixando antever a chegada do verão. A data é 06 de junho de 1832, a 15 dias da chegada do solstício de verão. Nessa exuberância, vê-se uma natureza em pleno funcionamento de sua cadeia alimentar. Todos os animais comem; comem-se uns aos outros, por vezes. Só as duas crianças permanecem famintas. Elas não participam desse ou de qualquer outro banquete (p. 964-965):

“A criação estava à mesa. [...] Deus servia o repasto universal. Comiam-se um pouco uns aos outros, o que é o mistério do mal misturado ao bem; mas nenhum animal tinha o estômago vazio. [...] Essas crianças pareciam não perceber os ruídos [da batalha, nos Halles]. O menor repetia de tempos em tempos, à meia voz: Estou com fome.”

O adensamento do contraste do texto se dá com a chegada de um pai e um filho, em passeio matinal ao jardim. O pai, tendo ouvido o barulho da batalha, percebe as duas crianças em farrapos, no jardim e comenta: “Eis o começo”, referindo-se às crianças, complementando com “a anarquia entra no jardim” (p. 966), ligando-as, portanto, às causas e aos desdobramentos da insurreição. O menino sente-se enfastiado e chora porque, não sentindo fome,
De modo sutil, como quem está interessado em desviar a atenção dos leitores da tensão das barricadas, mas permanecendo nela, Victor Hugo constrói uma página tocante que revela a indiferença humana diante da miséria.
não quer comer o grande brioche (“Le bonhomme de six ans tenait une grosse brioche”, p. 965), já mordido, que tem na mão. O pai lhe diz para jogar aos cisnes, no lago. O menino não vê razão em ceder o brioche aos cisnes, só porque ele não quer comer. O pai insiste e aconselha que ele “seja humano”, pois “é preciso ter piedade dos animais” (“Sois humain. Il faut avoir pitié des animaux”, p. 966). O pai termina por jogar o brioche no lago, mas os cisnes não se dão conta. É preciso que o pai mexa na água, atraindo a atenção das aves. Com os cisnes indo em direção ao brioche, a reação do pai é de felicidade, por sentir-se um homem espirituoso, ao criar o trocadilho – que só funciona cem por cento em francês –, “Os cisnes compreendem os sinais” (“Les cygnes comprennent les signes”, p. 966). O homem vai embora, com o aumento do barulho proveniente dos Halles, com medo de que a batalha se estenda até o Luxemburgo. Os meninos, então, disputam o brioche com os cisnes e vencem, podendo comer algo.

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G. Brion, 1862
De modo sutil, como quem está interessado em desviar a atenção dos leitores da tensão das barricadas, mas permanecendo nela, Victor Hugo constrói uma página tocante que revela a indiferença humana diante da miséria. O texto tem um fundo moral, à maneira de uma fábula. O homem percebe a miséria nas crianças e que pode ser o começo das insurreições. O incômodo que a miséria, no seu dizer, que a “anarquia” provoca é por tirá-lo do seu conforto, é por entender as revoltas e insurreições como simplesmente uma desordem. Se os cisnes compreendem os sinais, o homem não compreende o sinal que a miséria revela, pelo fato de ela apenas ameaçar a sua boa condição social, quando deveria inquietar o seu espírito.

O contraste se completa com a paródia da luta na barricada, nos Halles, transposta para o lago do Jardim do Luxemburgo. Nos Halles, o macrocosmo, os insurgentes, que representam o povo, lutam pela república, contra a monarquia de Luís-Filipe, sustentada pela burguesia. No Jardim do Luxemburgo, o microcosmos, os meninos lutam contra os cisnes, pelo brioche, numa metonímia paródica do que acontece na rue de la Chanvrerie. Ao menos, no microcosmo, o povo ganhou essa batalha. Para dar mais relevo à luta, o menino que pega o brioche no lago, se estende à sua borda, com o risco de cair dentro dele e ficar à mercê dos cisnes, expondo-se como o père Mabeuf,
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G. Brion, 1862
fincando a bandeira dos revoltosos sobre a barricada, à mercê das balas dos soldados.

O brioche resgatado estava molhado, mas serve assim mesmo para amainar a fome das duas crianças. O escritor não se furta a mais uma ironia: “O bolo estava molhado, mas eles tinham fome e sede” (“Le gâteau était mouillé; mais ils avaient faim et soif”, p. 967). O paralelo estabelecido pela ironia, daí o sentido paródico do capítulo, é perfeito: os meninos são o povo miserável e faminto, em luta contra a nobreza, simbolizada pelos cisnes, apoiada pela burguesia, cujo representante é a figura pai, inclusive vestido como tal (“o pai estava vestido como burguês, por causa da prudência”, p. 965).

Com fome e com sede, comendo os restos de um menino aborrecido e mimado, disputando a comida com os animais, as duas crianças são a simbologia da miséria, não importando qual seja a sociedade ou qual seja a época em que vivamos, não importando se a miséria deva ser representada no macrocosmo, com uma defesa heroica de insurgentes, buscando o seu fim, ou se ela é revelada na miudeza diária de crianças famintas, sem nome, sem lar, sem ter quem as defenda. Logo no início do texto, Victor Hugo entrega o mote: o olhar do drama tem que estar em todo lugar (“le regard du drame doit être présent partout”, p. 961).

Pode-se colocar em dúvida a genialidade de Victor Hugo?

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  1. Fina exegese em texto claro, eis o professor em grande momento. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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