Sobre os poemas de “A Chave selvagem do sonho” (Editora Tribuna, João Pessoa, 2020), de Anna Apolinário, faço minhas as palavras do poeta ...
Trouxeste a chave?
Tantas são as peripécias do eu lírico para enfrentar as tormentas, as borrascas, as procelas do dia a dia, que os poemas de “A Voz do vent...
A voz do ventríloquo, de Ademir Assunção
TODO OUVIDOS O eu lírico sofre de delírios esquizofrenoides: Ponge ouve coisas; Bilac ouve estrelas; Gullar, muitas vozes.
Livros crepitam no forno das estantes
O eu lírico sofre de delírios esquizofrenoides: Ponge ouve coisas; Bilac ouve estrelas; Gullar, muitas vozes.
Durante um certo período, a crônica foi considerada um gênero de quem jogava conversa fora. Pouco a pouco, porém, parte do público lei...
A crônica de Adhailton
Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, já advertia: “(...) a função do livro infantil é fazer compreender às crianças que a leitur...
Criança, poesia, livro, etc
Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões...
Mostruário Persa, de Letícia Palmeira
Eu não gosto da junção de palavras que, por força do uso, da repetição, dissemina o lugar-comum, o já lido e relido, os clichês, os chavões, o dejà vu. Antes, gosto dos paralelos insólitos, das palavras ou dos temas que só aparentemente se repelem. Enfim, gosto da poesia e da ficção que guardem uma certa semelhança com a loja de belchior do conto do “Bruxo de Cosme Velho”, onde convivem objetos heteróclitos, desencontrados, mas que se compõem e se complementam: panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, caixilhos, binóculos, um cão empalhado, dois cabides...*
Jovem ainda, Astier Basílio deixou de ser apenas uma promessa, uma revelação, para se firmar como um poeta que reservará boas surpresas ao ...
'Antimercadoria', de Astier Basílio
A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, p...
Flores de aço
A frase é meio batida, surrada até, mas foi a que me ocorreu quando da leitura do livro “Harpia”, de Aline Cardoso: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Seja ou não da autoria de Che Guevara, a mim apenas importa que poderia servir de epígrafe para o livro, uma vez que encerra, condensa, a atmosfera da maioria dos poemas que o compõem. Poemas fortes, incisivos, diria quase aforismáticos, e que aprofundam o conflito entre a “vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos?”
Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os qu...
Ângela: Um certo modo de ver
Ângela Bezerra de Castro não escreve com o propósito de demonstrar conhecimento, embora seja uma erudita sem “erudição”. Aliás, ela e os que verdadeiramente dominam as muitas vertentes da teoria literária, da história da literatura etc., evitam não só a utilização de termos absconsos, abstrusos, que dificultem a compreensão do leitor, como também disfarçam “o profundo conhecimento das teorias literárias, (...) para mostrar (...) o entendimento, a reflexão, o conhecimento amadurecido na leitura dos escritores da melhor cepa”.
Diria que Ângela é fruto da consorciação da crítica, da ensaísta e da professora, esta última uma das principais responsáveis pela inclusão do autor paraibano em sala de aula. E isso numa época em que os ensaístas da província somente se mostravam receptivos aos autores canônicos. Que o diga Juarez da Gama Batista, estudioso da obra de Gilberto Freyre, Jorge Amado, José Lins do Rego e outros.
Já outro ensaísta, Virgínius da Gama e Melo, só eventualmente escrevia sobre a produção literária paraibana, como o fez a respeito da Geração 59 e do poeta Jomar Moraes Souto, cujo prefácio da 1ª edição do livro “Itinerário lírico da cidade de João Pessoa”, foi de sua autoria. Mesmo assim, aqui e acolá, saudava os novos autores que surgiam, mostrando-se benevolente com os estreantes, talvez movido pela intenção de incentivá-los no enfrentamento dos caminhos sempre árduos da literatura.
Geraldo Carvalho, este era uma exceção, pois além de dirigir uma editora artesanal – “Caravela” –, responsável pela publicação dos então jovens autores José Leite Guerra, Maria José Limeira, Jurandy Moura e Archidy Picado, acompanhava passo a passo a produção literária da época, resenhando-a na coluna semanal “Pro-textos”, que mantinha no jornal “Correio da Paraíba”.
Virginius, pela sua condição de professor de Teoria da Literatura, bem que poderia ter adotado os autores paraibanos em sala de aula, mas não o fez. Geraldo, talvez o fizesse, mas não exercia o magistério.
Por outro lado, na medida em que procurava descobrir as recorrências estilísticas e temáticas dos autores federais, estaduais e municipais, Ângela não fazia distinção entre eles, pois procedia de modo a demonstrar que Augusto dos Anjos, José Lins do Rêgo, Vanildo Brito, J. J. Torres, Natanael Alves, Juarez da Gama Batista, Eduardo Martins, Aurélio de Albuquerque, entre outros, eram autores de suas “afinidades eletivas”. Daí, com muita propriedade, Luiz Augusto Crispim ter observado que “Ângela Bezerra de Castro desencantou o escritor paraibano”.
Ainda com relação à Ângela, quando ela faz a leitura de um texto, só posteriormente o submete às muitas teorias das quais se abastece, escolhendo, numa etapa seguinte, a que melhor se presta à exegese do poema ou da prosa de ficção. Em suma, o seu tipo de abordagem é reivindicado pelo próprio texto, diferentemente dos críticos e ensaístas que, a reboque de teorias mal assimiladas, adotam, de maneira apriorística, os mesmíssimos modelos de análise aos quais submetem os mais diferentes mecanismos de criação.
Todo e qualquer crítico ou ensaísta, por mais aparelhado teoricamente que seja, contém a sua porção impressionista, embora o impressionismo seja demonizado por muitos que, obstinada e cegamente, não reconhecem os momentos de absoluto rigor reflexivo do pernambucano Álvaro Lins, um dos mais legítimos representantes dessa vertente crítica.
Em outras palavras, eu diria que o crítico não deve se munir apenas da teoria, mas também da “intuição”, espécie de impressionismo que longe de se originar de um insight ou de uma epifania, provém da experiência acumulada do leitor voraz e veraz que todo crítico que se preza o é, a exemplo de Ângela Bezerra de Castro, conforme ratificam a sua obra anterior e o seu livro mais recente, “Um Certo modo de ler”.
O leitor ávido por peripécias talvez conclua, equivocadamente, que “Liturgia do fim” tem palavras de mais em um enredo de menos. Mas o fato...
A Liturgia de Marília Arnaud
O leitor ávido por peripécias talvez conclua, equivocadamente, que “Liturgia do fim” tem palavras de mais em um enredo de menos. Mas o fato é que esse é um livro cujo principal protagonista é a linguagem, responsável pela condução de um enredo simples, frugal, mas que ganha em densidade na medida em que o narrador Inácio Boaventura mergulha de ponta-cabeça no seu universo psicológico.
Poemas soltos e livres, os de Vitória Lima. Por isso mesmo, podem dar a falsa impressão de que a autora procede com desleixo no que tange a...
Relendo Vitória Lima
Poemas soltos e livres, os de Vitória Lima. Por isso mesmo, podem dar a falsa impressão de que a autora procede com desleixo no que tange ao aspecto formal de cada um deles. Ledo engano, pois, fosse assim, Vitória não teria publicado apenas dois livros – “Anos bissextos” e “Fúcsia” –, ambos magrinhos, enxutos, esbeltos, como magrinhos, enxutos e esbeltos são a maioria quase absoluta dos poemas que os compõem. Quero dizer: a produção quase bissexta de Vitória já confirma e chancela o seu rigor e a sua disciplina na elaboração do poema.
antagonismo: máquina de fotografia/revólver a máquina é o revólver ao inverso: os objetos-bala não saem, eles entram, se internam.
A paisagem certa
a máquina
é o revólver ao inverso:
os objetos-bala não saem,
eles entram, se internam.
poema eis a fórmula ou a forma: a água fura a rocha e assim faço o meu poema. um poema-lâmina (contundente) que esmigalhe e esf...
Faces partidas ao meio
eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o meu poema.
um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.
não um poema
com o azul
da blue-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.
um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.
este será o seu ofício:
ser lâmina e penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.
repudio o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.
da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.
da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
de cimento, areia e cal.
O meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto cansa-me
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.
meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume,
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
partidas ao meio.
meu poema não é istmo,
isto nem aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e por isto provoca
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.
De como o magro é continuação do gordo A Stan Laurel e Oliver Hardy o magro no gordo existe como uma roupa existe no cabide.
Os dois jamais sorriam
De como o magro é continuação do gordo
o magro
no gordo existe
como uma roupa
existe no cabide.
Mal comparando, o meu livro “O Leitor que escreve” (Editora Arribaçã, Cajazeiras, Paraíba, 2020) guarda alguma semelhança com o centão, re...
'O leitor que escreve'
Mal comparando, o meu livro “O Leitor que escreve” (Editora Arribaçã, Cajazeiras, Paraíba, 2020) guarda alguma semelhança com o centão, recurso poético do qual se vale o autor para, extraindo versos de vários poemas de sua própria lavra, conceber um novo (?) poema, como o fez Manuel Bandeira com “Antologia”, cujo título, etimologicamente, significa recolho das melhores flores, ou, no caso, dos melhores poemas.
O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. C...
Impressões
O autor Carlos Drummond de Andrade não era tão “gauche” quanto o eu lírico do “Poema de sete faces”: “Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida”. Com efeito, embora timidamente, por vias oblíquas, de acordo com o seu temperamento discreto, recatado, bem que ele cuidou, aplicadamente, da posteridade da sua poesia. Para tanto, lançou mão de um certo histrionismo para asfaltar o caminho de sua obra poética. Aliás, o simples fato de viver, durante um período, distante dos refletores, dos microfones da mídia, mais o expunha do que o escondia. Criou um tipo, como também o criaram J. D. Salinger e Dalton Trevisan, ambos reclusos num anonimato que tinha lá uma certa eficácia em termos de publicidade. E o que dizer do Jean Paul Sartre que recusou o Prêmio Nobel de Literatura? Que, não o aceitando, ganhou mais evidência, mais notoriedade.
A ARAPONGA A Sérgio Faraco carcereira, abre a lingueta da garganta e aperta-me o cerco: o canto que a liberta dos ferros
Oito poemas
A ARAPONGA
carcereira,
abre a lingueta
da garganta
e aperta-me o cerco:
o canto
que a liberta
dos ferros
Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços as...
Meu amigo Adler
Adler, o meu amigo e cunhado, foi um menino grande. Um grande menino. Gostava de frequentar mais os ambientes públicos do que os espaços asfixiantes das casas. Daí o seu jeito flâner, a predileção pelos feriados nacionais, pelas festas das padroeiras, a exemplo das de Nossas Senhoras das Neves e da Luz, sobretudo esta última, guarabirense de boa cepa que ele o foi.
comunhão livros crepitam no forno das estantes livros são pães ...
O leitor 'sozinho não tece uma manhã'
livros
crepitam
no forno
das estantes
livros
são pães
eucarísticos
crocantes
A boa leitura sempre consistiu, para mim, numa espécie de revolução silenciosa. Dela, sempre saí diferente de quando entrei. Ou seja, mal concluo a última frase de um romance ou o último verso de um poema, sinto-me com uma nova percepção da vida e do mundo. Pena que nem todos pensem assim e tratem o escritor, sobretudo o poeta, com um certo ar de mofa e de desdém. Isso sem falar que os editores e os livreiros discriminam a poesia, gênero literário que dificilmente é exposto nas vitrines das livrarias, mas, quase sempre, escondido nas últimas prateleiras, nos locais mais longínquos e ermos. Tanto que, quando encontro numa livraria alguém de joelhos, numa posição genuflexa, não tenho dúvida: esse alguém está à cata de um livro de poesia. É um leitor de poesia. E dos bons!
Sobre o livro, escreve João Cabral de Melo Neto: “(...) modesto: só se abre se alguém o abre”. Pois bem. Nestes meus 60 anos de vida, outra coisa não fiz senão abrir livros, devassá-los e gozar de sua intimidade. Não somente livros, mas tudo o que, feito de papel e tinta, me caísse às mãos: jornais, revistas, gibis, almanaques, e até mesmo um vetusto tomo de um médico alemão de cuja leitura o meu pai – jornalista, hipocondríaco e completamente leigo em medicina – extraía conclusões estapafúrdias para “diagnosticar” os achaques e as mazelas do filho único que eu sou e continuo sendo. O livro, que povoou a minha infância e parte da minha adolescência, denominava-se, salvo engano, O Conselheiro Médico do Lar.
os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”Li, e ainda hoje leio, bulas de remédios, receitas culinárias e “fórmulas de preparado para pele”, como o fez – no caso destas últimas – o poeta Manuel Bandeira para encontrar os caminhos tortuosos e íngremes do verso livre, segundo ele uma conquista difícil, pois, situando-se na confluência do parnasianismo com o simbolismo, habituara-se, naturalmente, quase sem esforço, ao ritmo metrificado e às formas fixas dessas duas correntes da lírica brasileira.
A minha primeira leitura foi um livro de crônicas do meu pai, cujo narrador – um menino na década de 1930 – discorria a propósito do conflito entre liberais e perrepistas. Eram crônicas lidas ao sabor de uma profunda nostalgia, sentimento estranho para uma criança que, ainda sem passado, sentia uma saudade atávica do menino antigo que fora o seu pai. Daí para também escrever as minhas “memórias” foi um passo, apenas com uma diferença: impossibilitado de explorar o tempo pretérito, de convertê-lo em matéria bruta do meu texto, não me restou alternativa senão inventá-lo. O que o fiz, inconscientemente, na esteira do verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Só que, nessa fase, eu não tinha uma vida inteira, como não a tenho até hoje, que a vida jamais se completa e é inteira, por mais larga e comprida que seja.
Aprendi, a partir de então, que uns mais, outros menos, os livros quase sempre encerram uma espécie de “invenção da verdade”. E que esta, mesmo de forma velada, sub-reptícia, denota o inconformismo do escritor diante do mundo, o conflito que se estabelece entre “a vida vivida e a vida pensada”, pois já não disse Oscar Wilde que, “para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos”? Cumpre-nos vivê-la, então, pela leitura. Mas, principalmente, disseminar a leitura, pois o leitor “sozinho não tece uma manhã”.
O fato é que, de leitura em leitura, terminei por me engajar nessa “guerra sem testemunhas” que é o ato de escrever, não obstante, mesmo se isolando no escritório e dentro de si mesmo, o escritor sempre disponha de aliados: os oficiais do mesmo ofício com os quais mantém “afinidades eletivas”. Que o diga João Cabral de Melo Neto, no poema “A Willy Levin morto”, do livro Museu de Tudo: “Se escrevemos pensando/ como nos está julgando/ alguém que em nosso ombro/ dobrado, imaginamos, / e é o primeiro que assiste/ ao enredado e incerto/ que é como no papel/ se vai nascendo o verso, / e testemunha o aceso/ de quem está no estado/ do arqueiro quando atira, / mais tenso que seu arco,/ foste ainda o fantasma/ que prelê o que faço,/ e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”.
Para lembrar Jorge Luis Borges, se há quem se jacte dos livros que escreveu, dou prazo aos céus pelos que li, embora tal circunstância não me iniba de transcrever o poema “Noturno leitor”, que julgo propício a esta ocasião em que presto um tributo ao livro e à leitura: Nocturne lecteur,/ mon semblable, mon frère: livros acendem luzes!/ Borges ou Baudelaire/ consome-nos energia. Custa uma fábula/ - em volts - / a leitura de p(Rosa) e de (Poe)sia.
Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se...
Bartolomeu, livros, cigarras
Chamava-se “Livraria do Bartolomeu”. Porém, mais do que do amigo Bartolomeu de Oliveira, a livraria pertencia a uma clientela que, se não era numerosa, era fiel. E melhor: escolhida a dedo. Ficava na Duque de Caxias, próxima à Praça Rio Branco, perto do edifício onde funcionava o Ministério da Fazenda, em que eu trabalhava como advogado da Delegacia do Serviço do Patrimônio da União.
Estou a vê-lo, vindo dos Correios, no sol a pino, carregando pacotes de livros. A calça, bem acima da cintura, diminuía ainda mais o tronco e encompridava as pernas. Mas, pernas mesmo, e de sete léguas, eram as dos livros que me permitiam, sem passaporte e muito menos vistos alfandegários, dar “a volta ao dia em oitenta mundos” com o menino impossível Jorge de Lima; com o alumbramento de Bandeira quando viu pela primeira vez uma moça nuinha em pelo; com a musicalidade de Cecilia Meireles ou com a sensibilíssima poesia racional de João Cabral de Melo Neto. E com as cigarras que, às cinco em ponto da tarde, nas árvores da Praça Rio Branco, recitavam o “Se”, de Kipling, fornecendo-me, nessas minhas idas e vindas entre o Ministério da Fazenda e a Livraria do Bartolomeu, o embrião da ideia que eu desenvolveria quase quarenta anos depois: “São guitarras trágicas. // Plugam-se/ se/ se/ se/ nas árvores/ Em dós sustenidos. // Kipling recitam a plenos pulmões. // Gargarejam/ vidros/ moídos. // O cristal dos verões”. (Poema “As Cigarras”, livro “Zoo imaginário”, Editora Escrituras, São Paulo, 2015).
Só eventualmente passo na Praça Rio Branco, mas, nessas poucas vezes, lembro alguns versos de “Elegia de Verão”, do poeta Manuel Bandeira: “O sol é grande. Ó coisas/ todas vãs, todas mudaves*./ (...) O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis, / Não sois as mesmas que eu ouvi menino. / Sois outras, não me interessais...// Deem-me as cigarras que eu ouvi menino”.
Já na casa dos setenta, faço coro com Manuel Bandeira: as cigarras que hoje zinem não são as mesmas que engarrafavam o canto e o explodiam – qual coquetel molotov – de encontro à tarde moída em vidro dos meus trinta e poucos anos. Ah, cigarras de hoje, deem-me as cigarras de antigamente, a Livraria do Bartolomeu e, sobretudo, o amigo Bartô, sobraçando/abraçando pacotes e mais pacotes de livros.
*Propositalmente, Bandeira emprega “mudaves” por “mudáveis”.
Sérgio de Castro Pinto é poeta e professor E-mail