Mostrando postagens com marcador W. J. Solha. Mostrar todas as postagens

Sabemos que nossos olhos são sensíveis apenas à faixa estreita do espectro entre o infravermelho e o ultravioleta, que vemos um ângulo d...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana leonardo vinci mona lisa literatura pintura artes donald sassoon montaigne goethe mendelssohn shakespeare gioconda monalisa
Sabemos que nossos olhos são sensíveis apenas à faixa estreita do espectro entre o infravermelho e o ultravioleta, que vemos um ângulo dos objetos de cada vez, que nossos parâmetros do que é grande e pequeno são relativos. Sabemos que o resultado é que construímos um mundo fantasma em nossa mente, nada semelhante ao que se poderia chamar de real, distorção de que nos vamos dando conta aos poucos, através dos avanços da ciência e tecnologia, da nanomedicina, dos microscópios iônicos,

A mãe, nenê no ninho, olha, no espelho – com muito carinho – a bela boca nada neutra, pronta pr´outra. quem não vê, numa fábula de Esop...

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana waldemar jose solha livro vida aberta premi jabuti editora penalux poemas

A mãe, nenê no ninho, olha, no espelho – com muito carinho – a bela boca nada neutra, pronta pr´outra.

quem não vê, numa fábula de Esopo, a versão... virtual.. de um filme de animação?

Em 1705, Johann Sebastian Bach viajou 400 km, de Arnstadt a Lübeck, a pé, para conhecer seu ídolo Buxtehude, o que mostra que não sou tão ...

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana waldemar jose solha johann Sebastian Bach estacao espacial 2025 Von Braun Rotating Space Station Kubrick 2001 odisseia no espaco

Em 1705, Johann Sebastian Bach viajou 400 km, de Arnstadt a Lübeck, a pé, para conhecer seu ídolo Buxtehude, o que mostra que não sou tão doido, pois em 68 viajei mais do que ele (452 km), de Pombal, no alto sertão paraibano, onde morava, até o Recife, para ver o filme 2001 – a maior das várias obras-primas de Kubrick – mas no meu fusca.

Ao ler a série de contos de “Confissões de um Anjo da Guarda” (Bertrand Brasil, 2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes...

ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana waldemar jose solha tecnica da enumeracao machado de assis carlos trigueiro

Ao ler a série de contos de “Confissões de um Anjo da Guarda” (Bertrand Brasil, 2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes, como o “Livro dos Desmandamentos”, “O Clube dos Feios” e o “Livro dos Ciúmes”, voltei a me encantar com seu estilo denso, amargo, enxuto, sarcástico, e a me intrigar com o que acabei percebendo ser um de seus sestros de notável artífice da palavra: o uso recorrente da enumeração como forma de ampliação visual e conceitual dos relatos.

Enumeração:

ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana waldemar jose solha tecnica da enumeracao machado de assis carlos trigueiro
Tom Jobim
Acho que todo mundo conhece o poema “Isso é aquilo”, do livro “Lição das Coisas”, produto de Drummond já maduro, onde ele se limita a uma longa fila de versos que começa com “o fácil o fóssil / o míssil o físsil” e termina com “O cudelume Ulalume / o zunzum de Zeus / o bômbix / o ptyx”. Cada palavra colocada ali tem uma relação sonora com as demais, porém sempre com outro sentido, provocando, pelo acúmulo, um efeito poético extraordinário.

Em Águas de Março, Jobim segue a mesma trilha:

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira.

Trigueiro diz, de seu anjo Mahlaliel, que ele se viu obrigado a abrir mão de “trajes, acessórios, espaços, regalias, imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas”. Mais adiante, especifica: “Recolheram-me asas, vestes, halo, chancas, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate”.

Às vezes Trigueiro me passa a impressão de alguém que faz escrita automática, como a dos surrealistas e dadaístas, ou como o Kubitschek Pinheiro, em suas crônicas paraibanas. Sexo dos anjos? “Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo, anjo frígido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais”. A relação dos que Mahlaliel já custodiou?: “profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... e plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros”.

Para se disparar essa metralha vocabular, há que se ter imaginação fervilhante, claro. O recurso, além de abrir a narrativa para uma infinidade de roteiros colaterais, de repente, noutros pontos, dá a elas uma velocidade frenética. No segundo conto, por exemplo, “Miguel enviou o currículo para agências de empregos, head-hunters, consultorias, seguradoras, financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo resposta, fez promessas para os santos protetores de negócios, rezou, acendeu velas, jejuou, arquivou a libido”. ]

No conto “Obsessão”, o personagem Peterson, que é engenheiro, “se sentia realizado em canteiros de obras, regendo conjunto de bate-estacas, gruas, serras, tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor de operários, lidando com mestres-de-obras mais sabidos do que mestres”. Essa ironia, machadiana, é exemplar em “O Jornalista”:

“O Mercado é sensível a corrente de ar, vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitação públicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo...”

Numa conversa a respeito de “Confissões de um Anjo da Guarda” que tive com o professor de literatura brasileira da UFPB – poeta Sérgio de Castro Pinto – perguntei-lhe o que lhe lembrava esta declaração do Carlos Trigueiro na estória “Clínica para Normais”:


“A distância custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de paciência”.

- Ora, Machado de Assis no capítulo XVII do “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:

“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.

Machadiano. Carlos Trigueiro é machadiano, claro. Observe estes trechos do capítulo XIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:

“... a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las.”

“Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.”

“Um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.”

“Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostras, barba raspada; vejo-te bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho.”

A coisa vai longe.

A marca de Carlos Trigueiro, porém, está na exasperação desse expediente. Na forma e no conteúdo. No capítulo 21 do “Livro dos Desmandamentos”, por exemplo, há um parágrafo antológico:

ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana waldemar jose solha tecnica da enumeracao machado de assis carlos trigueiro
Carlos Trigueiro
“Sob o império dos atos institucionais, qualquer vacilo, deslize ou equívoco no andar, falar, rezar, cantar, escrever, tocar, pensar, respirar podia acabar mal. Um gaguejo podia ser interpretado como linguagem subversiva codificada. Daí, vinte e dois mil, setecentos e quarenta e oito gagos desapareceram sem terminar o que iam dizer. Outra barbaridade sucedera àqueles que, por causa de um tique nervoso, piscaram na hora errada: nove mil, setecentos e setenta e sete ficaram caolhos.”

Veja-se este excerto do capítulo LXVII do mestre fluminense, em “Quincas Borba”:

“Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível.”

Agora veja ação semelhante, desenvolvida num conto de “Confissões de um Anjo da Guarda” – “Anjos Exterminadores” – cujo título, por evocar uma das obras-primas de Buñuel, trai a influência do cinema nessa exacerbação da técnica machadiana. Aí, “o menor C.P.F., vulgo Papelote, sem anjo da guarda”, sobe, depois desce o morro na mesma carreira de assaltante em fuga, e eu chamo a atenção para a velocidade da cena obtida pela enumeração, o... pinturesco de tudo que nela se menciona, a carga cinematográfica dessa disparada de fotogramas:

“Correu, correu, dobrou, direita, esquerda, correu, correu, subiu a escadaria do morro, subiu, saltou vala, pulou muro, mureta, atalhou daqui, dobrou dali, pulou barranco, bicicleta, macumba, chutou cachorro, lata de lixo, vazou birosca, barraco, derrubou porta, pulou janela, cerca, cercado”, etc, e, na página seguinte, a volta: “correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu....”

Genial

ambiente de leitura carlos romero cronica poesia literatura paraibana waldemar jose solha tecnica da enumeracao machado de assis carlos trigueiro
Em “Memórias da Liberdade”, criado por Trigueiro no “alvorecer dos anos 1980”, “em Madri”, e que saiu aqui pela 7letras, dei de novo com a técnica da enumeração, tão perfeita quanto antes:
- Passei por coisas, lugares, pessoas. Passei por vivos, mortos e mortos vivos. E fui passando. Passei por matas, águas e glebas. Passei por dunas, desertos, sertões. Passei por campinas, cerrados, montanhas. E fui passando. Passei por tumbas, palácios, pirâmides. Passei por santos, espectros, dragões. Passei por esfinges, aedos, gurus. E fui passando. Passei por nevadas, tormentas, procelas. Passei por nuvens, fumos, poeiras. E fui passando. Passei por legiões brancas, verdes, azuis. Passei por damas, valetes, coringas. Passei. E fui passando.

A enumeração volta na página 136, quando ele fala dos assuntos do Rio, “no último quarto dos anos cinquenta ou limiar dos sessenta:

- Bossa-nova, trocadilhos, Brigitte Bardot, sapato sem meia, aprender violão, rendez-vous, ´cinquenta anos em cinco´, seca no Nordeste, juventude transviada, jogo do bicho, bloco do Bafo da Onça, maconha, Sputnik, vestidos tubinho, rock´n roll, lambreta...

Aí arranjou emprego num sanatório, onde – nova enumeração - “era possível encontrar Napoleão, algum centurião romano, Robin Hood, líderes políticos e sindicais, advogados do diabo, fantasmas perambulantes, pacatos alienados aquém do tempo e além do espaço.(...) Paranóicos, catatônicos, psicópticos, maníacos, alcoólatras, oligofrênicos...”

Trigueiro/Machado. Lembra-me Rafael assumindo a musculatura dos personagens de Miguelângelo e o sfumato de Leonardo. Woody Allen assumindo as encucações de Bergman.

Manet pescando o impressionismo muito antes da hora, de Velásquez.

É assim – mesmo que nada haja de novo debaixo do sol - que tudo vive cheio de novidade.


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

Anos atrás, suspendi uma iminente mostra na galeria Gamela, para surpresa de Rosely Garcia. - O que houve?! - Está faltando alguma coi...

Ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha literatura paraibana exposicao galeria gamela unidade da arte

Anos atrás, suspendi uma iminente mostra na galeria Gamela, para surpresa de Rosely Garcia.

- O que houve?!

- Está faltando alguma coisa nesses meus quadros e não vou expô-los assim.

Tenho um amor muito grande pela humanidade de Antonio David Diniz. Por isso foi com encantamento que vi sair, anos atrás, o belo livro com...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha fotografia antonio david diniz 30 anos de fotojornalismo homenagem

Tenho um amor muito grande pela humanidade de Antonio David Diniz. Por isso foi com encantamento que vi sair, anos atrás, o belo livro com seu nome seguido do subtítulo “30 anos de fotojornalismo”, numa caprichada edição da UFPB.

As obras de arte às vezes nos levam a Lilliput, às vezes a Brobdingnag. O que importa é se são perfeitas. Sobre os poemas de Sérgio de Ca...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha poeta sergio de castro pinto poesia paraibana

As obras de arte às vezes nos levam a Lilliput, às vezes a Brobdingnag. O que importa é se são perfeitas.

Sobre os poemas de Sérgio de Castro Pinto foi dito que são claros, ágeis, nítidos, suficientes (Câmara Cascudo); escritos com maestria e senso de humor (Ferreira Gullar); têm uma concisão que beira com frequência à lapidaridade (José Paulo Paes); coisa de quem monta o mundo em pelo (Lygia Fagundes Telles); têm o dom de captar o incaptável e de ver o invisível (Hildeberto Barbosa Filho); são a reinvenção da metáfora (José Louzeiro); obra de um poeta com astúcia verbal (Fábio Lucas).

Tornou-se lugar-comum, na imprensa, reportar desastres previsíveis como “tragédias anunciadas”, influência evidente do belo título que é o ...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha dostoievsky sodoma edipo sofocles  hercules mitologia ulisses odisseu tragedia anunciada davi golias pantagruel ditos populares

Tornou-se lugar-comum, na imprensa, reportar desastres previsíveis como “tragédias anunciadas”, influência evidente do belo título que é o Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Claro que isso não é de hoje. Todo sujeito ciumento é um “Otelo”, desde que Shakespeare escreveu a peça a respeito do suplício do Mouro de Veneza. Todo homem excepcionalmente forte é um “Hércules”, desde que Eurípedes encenou a tragédia Heracles entre os gregos, Sêneca levou ao palco o Hércules sobre o Eta, entre os romanos.

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha dostoievsky sodoma edipo sofocles  hercules mitologia ulisses odisseu tragedia anunciada davi golias pantagruel ditos populares
Do mesmo modo, toda viagem ou percurso repleto de percalços passou a ser “uma odisséia”, desde que Homero escreveu a história de Ulisses, cujo nome grego era Odisseu. Daí 2001 – Uma Odisséia no Espaço, o filme de Stanley Kubrik – daí Ulisses, o famoso romance de James Joyce, que consome cerca de 800 páginas pra contar o que foi um dia – 16 de junho de 1904 - na vida de um certo Leopold Bloom andando em Dublin.

Se esse caminho, porém, é de mais sofrimento do que aventura, o rótulo é o de “via-sacra”, “via-crúcis” ou “calvário”, por conta do peso do texto evangélico que transformou, também, todo traidor em “judas”, toda vítima em “cristo”, todo homem caridoso em “bom samaritano”, todo fim do mundo em “apocalipse”.

De igual modo, abrindo para o Velho Testamento, todo começo de qualquer coisa é “gênesis”, todo assassino é um “Caim”, todo lugar maravilhoso é um “paraíso”, toda debandada é um “êxodo”, toda enchente é um “dilúvio”, todo vidente é um “profeta”, toda figura com salvadora liderança é “messiânica”, toda decisão sábia é “salomônica”, todo embate desproporcional, tipo camundongo Jerry contra o gato Tom, Oliveiros contra Ferrabrás, Vietnã versus Estados Unidos, é uma luta de “Davi e Golias”.

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha dostoievsky sodoma edipo sofocles  hercules mitologia ulisses odisseu tragedia anunciada davi golias pantagruel ditos populares
Quem nunca classificou alguma cena terrível de “dantesca”, por conta da Divina Comédia de Dante? Quem nunca chamou o herói de uma causa perdida – como Vitorino Papa Rabo, de Zé Lins; ou o Príncipe Michkin, de Dostoiévsky - de “quixotesco” devido à obra de Cervantes? Quem nunca disse que um sujeito em dúvida terrível é “hamletiano”? E não chamou um sofredor voluntário de “masoquista”, devido ao romance A Vênus de Peles , de Leopold Ritter von Sacher-Masoch, no qual um personagem somente chega ao orgasmo depois de surrado pelo amante da esposa? Claro que você acaba de se lembrar de que “sádico”, se deve ao Marquês de Sade e a seus romances – como Os 120 Dias de Sodoma.

Igualmente, “pantagruélico” é o comilão por excelência, desde que Rabelais escreveu seu romance Gargântua e Pantagruel, e “acaciana” é sempre uma figura pública tipo Conselheiro Acácio, pseudo-intelectual pomposo, desde que Eça de Queirós escreveu o romance O Primo Basílio.

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha dostoievsky sodoma edipo sofocles  hercules mitologia ulisses odisseu tragedia anunciada davi golias pantagruel ditos populares
A quanto mulherengo já demos o nome de “casanova”, devido ao libertino escritor Giácomo Casanova, que – segundo afirma nos vinte e oito volumes de suas memórias – enumerou cento e vinte e duas mulheres que possuiu ao longo da vida! Ou de “Don Juan”, por causa do personagem fictício que, por suas inúmeras conquistas amorosas, compareceu em várias obras de arte, como a peça Don Juan Tenório, de José Zorrilla, e a ópera Don Giovanni, de Mozart! Quem já não disse que no meio do caminho há uma pedra e não se perguntou “e agora, José?”, graças a Drummond? Ou “que país é este?”, graças ao Affonso Romano de Sant'Anna?

Um dos casos mais famosos de apropriação desse tipo é o de Freud, que viu no personagem clássico de Sófocles – Édipo Rei – o protótipo do portador do complexo emocional que envolve amor e ódio na relação filho-mãe-pai, tendo Gustav Jung estabelecido a mesma relação filha-pai-mãe no Complexo de Electra, partindo das peças de Sófocles e Eurípedes que contam como essa personagem matou a mãe, Clitemnestra, pra vingar a morte do pai, Agamênon.

Quanta História por trás de cada palavra!


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

Com o toque de Midas de Bráulio Tavares e do autor de “ O Auto da Compadecid a”, eis o "ABC de Ariano Suassuna". Tenho esse li...

ambiente de leitura carlos romero waldemat jose solha braulio tavares ariano suassuna o auto da compadecida exupery kerouac sergio de castro pinto joao batista de brito

Com o toque de Midas de Bráulio Tavares e do autor de “O Auto da Compadecida”, eis o "ABC de Ariano Suassuna".

Tenho esse livro — lançado pela José Olympio Editora – entre algumas preciosidades, como: "O Escorpião Encalacrado", de Davi Arrigucci Jr. (sobre a obra de Cortázar); "Hamlet e o Complexo de Édipo", de Ernest Jones (que aplica a teoria freudiana no príncipe da Dinamarca e no próprio Shakespeare);
ambiente de leitura carlos romero waldemat jose solha braulio tavares ariano suassuna o auto da compadecida exupery kerouac sergio de castro pinto joao batista de brito
"Como se Faz um Filme", de Eisenstein (em que ele conta como criou “O Encouraçado Potenkin”); "A Filosofia da Composição", de Edgar Allan Poe (sobre o surgimento e evolução de seu célebre poema "O Corvo") e "Signo e imagem em Castro Pinto", de João Batista B. de Brito.

Como intelectual enciclopédico que é, tão fissurado pelas artes quanto pela ciência e tecnologia, avesso a todo mistério e segredo — se desvendável —, Bráulio revela que foi buscar a ideia estrutural desse perfil biográfico de Ariano em obras como o "ABC de Castro Alves", de Jorge Amado, e o “ABC de Jesuíno Brilhante”, de autor anônimo (reproduzido em "Heróis e Bandidos", de Rodrigues de Carvalho). Mas esse seu livro me remete diretamente, também, ao "Dicionário Khazar", de Milorad Pavić, um romance sérvio que marcou época nos anos 80.

O resultado de todas essas influências é o retrato cubista, por sua fragmentação temporal, espacial e temática, de um personagem fascinante (Suassuna), que nasceu num palácio, o da Redenção, teve o pai assassinado no Rio, viveu a infância e a adolescência em Taperoá, sertão paraibano, estudou Direito e Filosofia no Recife, ficou famoso por suas aulas-espetáculos, por seus ensaios, por uma peça de teatro (O "Auto da Compadecida"), por um romance de título estranho ("A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta"), por suas incursões nas artes plásticas e na poesia, por ter fundado o Movimento Armorial etc etc... e bote etc nisso! Entrou na Academia Brasileira de Letras. Foi tema, no carnaval carioca, do samba-enredo "Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino". Foi assunto do documentário "O Senhor do Castelo", de Marcus Vilar. Foi nomeado – aos oitenta anos – secretário de cultura do governo do estado de Pernambuco e – consagrado – seguiu de rota batida para a imortalidade, devidamente coroado pelos louros do plim-plim.

ambiente de leitura carlos romero waldemat jose solha braulio tavares ariano suassuna o auto da compadecida exupery kerouac sergio de castro pinto joao batista de brito

Claro que na ficha catalográfica do ABC consta “Biografia”. Claro que na d“Os Sertões” de Euclides da Cunha não há registro de um "romance". Mas é como eu li todos dois. Com mais ou menos apego à realidade nua e crua, tem surgido toda uma série de famosos romances-verdade, nonfiction novels ou romans-a-clé, como "A Sangue Frio" ("In Cold Blood"), de Truman Capote, "Pé na Estrada" (“On the Road”), de Jack Kerouac, e "Coração das Trevas" ("Heart of Darkness"), de Conrad, e até eu parti para a mesma senda na parte intitulada “A Gigantesca Morgue” na obra "História Universal da Angústia", ao juntar — numa série de contos de extrema violência —, a condensação de 126 reportagens nessa linha, colhidas num período de dez anos. Esse artifício leva o leitor a receber a experiência da realidade com uma força extraordinária. No "ABC", a densa conjunção de solidez, argúcia, clareza e beleza faz com que o livro salte – no meu entender – do terreno simplesmente biográfico para o romanesco. Há um momento em que o próprio Bráulio diz, nesse seu trabalho:

Quanto mais verdadeira uma coisa, mais bela.

Cita Keats:

Beauty is truth, truth Beauty.
Beleza é verdade, verdade, Beleza.

E a Beleza, segundo Plotino (citado por Ariano, idem por Bráulio), é… os seres em máximo de ser.

ambiente de leitura carlos romero waldemat jose solha braulio tavares ariano suassuna o auto da compadecida exupery kerouac sergio de castro pinto joao batista de brito
O livro mostra como Suassuna, que diz ser feio desde menino, mas apaixonado pela beleza, torna-se, com o tempo, um ser "em máximo de ser", dotado, portanto, de enorme beleza, pelo que passou a ser intensamente amado por todo o país. "A década de 1990 – diz Bráulio – trouxe-lhe notoriedade pessoal de um modo que ninguém seria capaz de supor”. A tal ponto, anota, que surgiu "um grau de impaciência do autor com a quantidade de compromissos a que é submetido". De fato, ele viveu, no final, numa roda-viva "de aulas, feiras-de-ciência, artigos, mesas-redondas, programas de televisão, homenagens, semanas culturais, entrevistas para jornais, orelhas de livros, depoimentos para vídeos e filmes ou revistas, cartas de recomendação para instituições culturais, apresentação em catálogos de exposições”, e a lista prossegue, interminável.

Como diz a raposa ao nosso distante Pequeno Príncipe:

“Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé.

— O que é apprivoisé? — pergunta-lhe o menino.

Apprivoiser é "domesticar, domar, amansar”, diz o dicionário francês-português. Mas a tradução corrente da frase, é "Tu te tornas responsável para sempre por aquilo que cativaste". E o eco responde "domesticaste, dominaste, amansaste”. Parece que Ariano conseguiu, na verdade, em sua luta pela preservação de nossa cultura burro-xucra, domá-la, dominá-la, monopolizá-la – apesar do massacre alienígena. Não só pelo seu trabalho de autor, como pelas influências que exerceu e exerce.

O "ABC de Ariano Suassuna" foi dado à luz ao sol da onça caetana. Louvado seja ele, além de seu autor e de seu tema.


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

No livro “Quartas Histórias” — ed. Garamond 2006, organizado por Rinaldo de Fernandes, em homenagem a Guimarães Rosa — há uma história curt...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha guimaraes rosa gertrude stein julio cotazar grandes escritores trigal com corvos sarapalha

No livro “Quartas Histórias” — ed. Garamond 2006, organizado por Rinaldo de Fernandes, em homenagem a Guimarães Rosa — há uma história curta, minha, “Sarapalha”, em que meu personagem, professor de Literatura Brasileira da UFPB, é convidado, por uma organização secreta, a participar do aperfeiçoamento coletivo da obra do grande escritor mineiro, a partir desse conto, que era o de que ele menos gostava.

Picasso disse – e com toda razão – que a inspiração existe, pero tiene que encontrarte trabajando . Não sou modelo pra ninguém, mas de algu...

ambiente de leitura carlos romero premio literatura Hieronymus Bosch jardim das delicias waldemar jose solha

Picasso disse – e com toda razão – que a inspiração existe, pero tiene que encontrarte trabajando. Não sou modelo pra ninguém, mas de alguma coisa deve servir a experiência.

Num desses paradoxos da vida, passei nove meses calado, em 1997, pintando minha homenagem ao mestre supremo da palavra - William Shakespea...


Num desses paradoxos da vida, passei nove meses calado, em 1997, pintando minha homenagem ao mestre supremo da palavra - William Shakespeare – no retângulo de 3,60 X 7,20 m, composto de trinta e seis telas, que está lá no auditório da reitoria da UFPB. Em lugar de criar espetáculos teatrais, seus textos me proporcionaram “fotogramas” deles. Foi o que vi Miguelângelo fazer no teto da Sistina, com os versículos do Gênesis.

O Regent's Park foi um presente de reis. Jamais imaginei um espaço como aquele fora dos paraísos que já vi pintados e descritos, ou das...

ambiente de leitura carlos romero waldemar jose solha w. s. solha londres london viagem turismo museus londrinos regent park britsh museum museu britanico

O Regent's Park foi um presente de reis. Jamais imaginei um espaço como aquele fora dos paraísos que já vi pintados e descritos, ou das utopias.

Assim passa a glória do mundo, diz "A Imitação de Cristo”, do Frei Tomas de Kempis, frase que um monge repete três vezes, na coroação ...

w j solha ambiente de leitura carlos romero sic transit gloria mundi tudo passa decadencia santo agostinho efemeridade

Assim passa a glória do mundo, diz "A Imitação de Cristo”, do Frei Tomas de Kempis, frase que um monge repete três vezes, na coroação dos papas. Difícil não lembrar o quadro “A Persistência da Memória” – cheio de relógios moles – de Dali. Ou meus retratos de criança, adolescente, jovem, adulto, sexagenário, velho. E a soberba frase latina sobre as horas: vulnerant omnes, ultima necat – “todas ferem, a derradeira… mata”. Claro que tudo isso me lembra Hamlet, São Francisco e São Jerônimo segurando crânios, cada um em sua hora de pensar na morte, seu memento mori. Claro que o tema me remete a meus primeiros livros, que sequer esperaram a posteridade pra serem esquecidos. A “O Salário da Morte” ou ao que no Youtube resta do filme cuja produção custou tanta esperança e sacrifício, meio século – caramba – lá atrás.

...w j solha ambiente de leitura carlos romero sic transit gloria mundi tudo passa decadencia santo agostinho efemeridade
Bem, OK: sic transit gloria mundi. Mas a inglória também. Se os contemporâneos da velhice de Rembrandt o consideravam “demodée”, como aconteceu com Johann Sebastian Bach em seu tempo, hoje eles são vistos como o Everest e o K2 ou o Kanchenjunga (já tinha ouvido falar desse?) do Himalaia. O povo – a vox Dei - às vezes tem mais a ver com a vida do que o autor do “De Imitatione Christi”, pois diz - e sabemos o quanto ele está certo – que não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe – inclusive essa pandemia, espero. Se as horas ferem e matam, dão, também, lugar ao novo. A Roda da Fortuna é uma bela imagem. Derruba alguém de um trono, põe logo outro no seu lugar, e isso não é de hoje: Shiva, “o Destruidor”, não é um deus monoteísta: faz parte do Trimurti hindu, junto de Vishnu, o “Conservador”, e de Brahma, o “Criador”, e isso é tão bom quanto uma cerveja estupidamente gelada no verão.

Bertrand Russell diz que ficou de boca aberta ante o que leu nos capítulos 14 ao 28, do Livro XI dessa obra
Conta-se que o Rei Astíages mandou matar o neto Ciro, temendo que ele um dia lhe tomasse o poder da Pérsia e o matasse – a mesma história de Laio e o filho Édipo. Não tenho nada parecido com um reino, mas quando o filho de meu filho nasceu, pintei um quadro comemorativo, em que um esqueleto ri feliz, voltando o rosto para o rechonchudo bebê gargalhante que ele leva nos ombros e de quem segura as mãos, feito um São Cristóvão com Jesus Cristinho.

w j solha ambiente de leitura carlos romero sic transit gloria mundi tudo passa decadencia santo agostinho efemeridade

Mas quem quer que vá ao fundo da coisa, quando o assunto é o Tempo, chega à análise dele feita por Santo Agostinho – o filósofo Agostinho de Hipona – em suas “Confissões”. Bertrand Russell diz que ficou de boca aberta ante o que leu nos capítulos 14 ao 28, do Livro XI dessa obra, e não é para menos: é aí que se liberta o pensador condicionado e limitado pela fé e passa a pensar por si mesmo. É famosa a maneira como entra no assunto:

...w j solha ambiente de leitura carlos romero sic transit gloria mundi tudo passa decadencia santo agostinho efemeridade
Santo Agostinho
- Se ninguém me perguntar o que é o Tempo, eu sei, porém se eu quiser explicar a quem me perguntar em que ele consiste, já não sei.

O passado, diz ele, já não existe, o futuro não existe ainda. O que sobra é o presente milênio, o presente século, o presente ano, o presente mês, o presente dia, a presente hora - todos, na verdade, com partes passadas e partes futuras - , restando-nos o presente minuto, o presente … segundo, e sua subdivisão em mili-segundo, micro-segundo, nano-segundo – isto é: NADA. Quando você diz a segunda sílaba da palavra “presente”, a primeira já era.

Com tão geniais conclusões, o distantíssimo Aurelius Augustinus (que viveu de 354 a 430 d.C.) permanece até hoje no centro das elocubrações sobre o Tempo, mesmo depois de Einstein, pois ouvimos dele coisas impressionantes, como "Não o tempo, senão no tempo, Deus criou os céus a Terra", e que não tem sentido perguntas como “O que fazia Deus antes da criação do Universo”, porque “se Deus criou o tempo com o cosmo, então não houve Antes”, o que a Teoria da Relatividade confirma. Mas, apesar da... “inexistência do passado”, ao contrário dos meus livros, “Confissões” nunca foi efêmero, transit/ório, permanecendo incólume há dezesseis séculos, o que vale outra boa brahma pela sua glória.


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

Claro que não foi apenas a terra fértil, mas dois milênios de História que deram a Londres a sua grandeza. Não vimos – eu e Ione – nenhum m...

waldemar solha ambiente de leitura carlos romero viagem londres london turismo inglaterra reino unido

Claro que não foi apenas a terra fértil, mas dois milênios de História que deram a Londres a sua grandeza. Não vimos – eu e Ione – nenhum monumento ao apóstolo das epístolas no adro da Saint Paul’s Cathedral. Em lugar dele, deparamo-nos com uma estátua da Rainha Anne, a primeira soberana do chamado Reino da Grã-Bretanha, quando Irlanda e Escócia foram anexadas à Inglaterra.

National Gallery! Para que se tenha ideia aproximada do espaço ocupado pelas 2.300 obras da Galeria Nacional, que se impõe ante a Praça Tra...

national gallery londres solha ambiente de leitura carlos romero

National Gallery! Para que se tenha ideia aproximada do espaço ocupado pelas 2.300 obras da Galeria Nacional, que se impõe ante a Praça Trafalgar, parei no centro dele e, ao me voltar para a série de salões a oeste, portas afora, depois para outro tanto delas a leste, eu disse:

Mal chegamos a Londres, saímos à rua. Devidamente encasacados, cruzamos uma praça – a Russell Square - e entramos numa rua estreita, a Mont...

waldemar solha ambiente de leitura carlos romero

Mal chegamos a Londres, saímos à rua. Devidamente encasacados, cruzamos uma praça – a Russell Square - e entramos numa rua estreita, a Montague Street, onde nos iluminamos com o que vimos: todos os postes – de ferro – ostentavam, cada um, dois cestões suspensos, cheios de flores miúdas e de um colorido muito vivo, as mesmas que enchiam todas as jardineiras e grades dos hotéis e bistrôs de terracinhos georgeanos (do século XIX), como num cenário de conto de fadas. Londres é quase toda um jardim. A guia do City Tour, no dia seguinte, disse-nos: - "A Prefeitura cuida de florir os lamp-posts da cidade".

...
E há uma infinidade de empresas que mantêm as fachadas de casas, lojas, bancos e bares floridas o ano todo, inclusive no inverno, quando as espécies são substituídas por outras, resistentes ao frio.

Em outro deslumbramento, um professor universitário voltou todo um quarteirão para mostrar-nos como cortar caminho para o endereço que procurávamos. Uma jovem – típica inglesa pele de porcelana, olhos intensamente azuis – aproximou-se quando viu que um senhor não sabia dizer-nos onde ficava a catedral de São Paulo.

...
Globe Theatre
E uma senhora e sua filha ofereceram-se, sorridentes, para fotografar-me com Ione diante do teatro Globe, onde Shakespeare apresentava suas obras-primas no século XVII. Doutra feita, perdendo-nos apesar do mapa, eu - desculpando-me pelo péssimo inglês - perguntei a um gentleman - que estava para cruzar a rua com duas crianças, onde ficava o British Museum. Ele não me entendeu e caprichei:

- De Brítiche Miuseum. Não me compreendeu. Mostrei-lhe o nome impresso.

- Ôh – ele disse – The British Museum! – mas isso numa pronúncia tão arrevesada e incompreensível que eu disse “Uau” e pedi que me repetisse a dose. Ele fez isso, sentiu a própria extravagância e deu uma grande gargalhada. Do mesmo modo, aquecidos por tantas caminhadas, vimos, nos maravilhosos jardins posteriores do palácio de Buckingham, a vendedora de sorvetes mostrar-nos várias opções do produto que vendia, culminando por ler uma versão tão irreconhecível, para mim, de strawberry, morango, que a imitei, sorrindo. Poucas vezes fiz alguém rir tanto...


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

Há sempre uma multidão em fila para conhecer os interiores do Palácio de Buckingham, que é – ele próprio – um reduzido mas seleto museu. Ne...

Waldemar Jose solha ambiente de leitura Carlos romero

Há sempre uma multidão em fila para conhecer os interiores do Palácio de Buckingham, que é – ele próprio – um reduzido mas seleto museu. Nele vimos uma coleção de mármores do frio, porém perfeito, Canova, e uma bela pinacoteca em que se destacava o notável retrato de Agatha Bas, de Rembrandt.

Anos atrás, ao dar uma palestra pra psicanalistas, no “Espaço do Ser”, João Pessoa, pareceu-me que os surpreendi quando lhes assegurei que ...


Anos atrás, ao dar uma palestra pra psicanalistas, no “Espaço do Ser”, João Pessoa, pareceu-me que os surpreendi quando lhes assegurei que com o ator ocorre o mesmo que a um médium num centro espírita, ou pai de santo num terreiro: ele recebe “o espírito” do personagem.

- O fenômeno é tão fantástico - garanti - que o CORPO do intérprete ACREDITA na cena que interpreta. Claro, pois não há como enrubescer, chorar ou empalidecer, se não for assim.

Marcus vilar
Marcus Vilar
Quando revejo “A Canga” do Marcus Vilar, parece-me surreal não ver na tela os quarenta técnicos que se esfalfavam em torno de Zezita Matos, do Everaldo Pontes, de Servílio de Holanda, da Verônica Cavalcante e de mim, durante as filmagens. Nós – entre cada grito de “Ação!” e “Corta!”- estávamos absolutamente sós com nossa tragédia, no meio da caatinga. O mesmo se deu quando eu e Hermila fazíamos pai e filha em “Era uma vez eu, Verônica”, do Marcelo Gomes, num apartamento modesto da Conselheiro Aguiar, Boa Viagem. Lá fora, a zoada do trânsito intenso. Ao nosso redor, a equipe técnica em torno da câmera, dos refletores, da parafernália dos sons existia até que a assistente de direção ligava pro guarda de trânsito e a avenida parava, nós ouvíamos “Ação!” – e ficávamos sozinhos, eu ouvindo a filha cantar o melancólico “Frevo da Saudade”, do velho Nelson Ferreira. E chovia na quinta-feira santa, acho que 2003, quando, no “Auto de Deus”, apresentado ao ar livre diante do Santa Roza, na mesma João Pessoa, vi Horiébir – no papel de Cristo – ser atirado ao chão por dois legionários romanos. Desci os dezesseis degraus da escadaria sobre o tapete vermelho encharcado, gritando ao prisioneiro, sob o aguaceiro: “Vós sois o rei dos judeus?”, e me impressionei com o nazareno que se levantava com dificuldade, de costas para mim, pois as carnes de suas espáduas (que o público não via!) ... tremiam, ele em estado de choque pelo flagelo de que “acabara de ser vítima”!”

"eu quase ia morrendo
com o velho personagem"
Quando ensaiávamos meu texto “O Vermelho e o Branco”, em Pombal, sertão paraibano, 1968, Ariosvaldo Coqueijo – que, além de dirigir o espetáculo contracenava comigo – jamais conseguia dizer seu monólogo inicial por inteiro, nos ensaios, pois chorava desesperadamente antes do parágrafo final. Na leitura de mesa de “Antígona”, uma adaptação minha do clássico de Sófocles, Emilson Formiga, que iria fazer o papel de um arcebispo, não “entrava” em seu personagem até que o fiz repetir o texto umas quinze vezes, sempre corrigindo o rumo de sua emoção. Aí, de repente, arrepiei-me sentindo que o “espírito” do sacerdote “baixara nele” e, extasiado, vi Emilson escalando a enorme montanha de sua dor, até que... deu um berro levantando-se, saiu correndo, chorando, e trancou-se no banheiro, insultando-me com palavrões.

Marcus Vilar
Liv Ullmann
Posso imaginar a força do fenômeno em figuras de grande peso, como Liv Ullman num “Gritos e Sussurros” ou “Sonata de Outono”. Mas... sim: tivemos Servílio de Holanda (meu filho doido em “A Canga”) fazendo um cachorro, no “Vau da Sarapalha”, aplaudido de pé no Barbican Pit Theatre, de Londres! Disse-me o Luiz Carlos Vasconcelos que os dois tinham ido várias vezes ao mercado municipal pra ver o comportamento de um vira-lata que havia lá.

Quando terminamos – em “A Canga” - o take em que percebo que meu filho pode me matar e rezo a oração do corpo fechado, fui amparado pelo diretor Marcus Vilar e por Walter Carvalho, encarregado da fotografia, pois ia desmaiando. Fui socorrido por Dira Paes e Rosemberg Cariry, atriz e diretor de “Lua Cambará”, numa sequência em que, mesmo num desempenho horrível, quase ia morrendo com o velho personagem agonizante. Quando fui fuzilado (numa cena que sequer foi aproveitada) em “Eu sou o Servo”, de Eliézer Rolim, tive uma crise de choro na frente de todo mundo, logo eu, que jamais fui disso, o que, infelizmente, não acontecia com meu personagem.

Foi incrível, por isso tudo, compartilhar o aquecimento com Irandhir Santos em "O Som ao Redor”: ele age exatamente como um pai de santo, todo fungados e gritos, perdendo de tal modo o controle que tem de ouvir várias vezes “Atenção, silêncio: vamos rodar!”, o que evidencia o fato de que – mesmo com técnicas diferentes – todos nós, atores, vivemos como que em terreiros de umbanda.


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

A obra mais pontuada – “As bênçãos de Nossa Senhora das Neves” – foi a que, paradoxalmente, mais sofreu revezes com a comissão. Endeusad...


A obra mais pontuada – “As bênçãos de Nossa Senhora das Neves” – foi a que, paradoxalmente, mais sofreu revezes com a comissão. Endeusada de início, alijada em seguida, recuperada depois, essa flutuação de opiniões se deveu à ousadia da proposta. Com sete metros de altura, toda branca, uma face elegantemente recortada, outra praticamente lisa, pareceu, a princípio, pecar contra a exigência de que toda escultura em rotatória tivesse informação e beleza em todos os 360º que sua visão oferecerá aos que transitam de automóvel na cidade. Aos poucos, no entanto, saltou à vista a elegância cônica da imagem vista de costas, que culmina com uma minúscula cruz vazada no alto da “cabeça da Virgem”, repassando sua mensagem a todo o “obelisco” a que parecia se limitar, como se fosse uma capela concebida por Le Corbusier. A comissão discutiu, então, o que se passaria em quem desse uma volta completa ao redor da estátua e descobriu algo mágico: a gradativa revelação que essa “viagem” proporcionará, até que a magnífica Nossa Senhora – criada apenas com recortes no metal – surja em toda a sua singeleza, com a cabeça inclinada, compassiva, o manto com suas dobras criadas apenas com cortes no aço. Outro fator: a idéia, do autor – Marco Aurélio Alcântara Damaceno (Orcan) – de fazer, com a luz, à noite, com que sua obra se metamorfoseie noutra, ainda mais esplêndida, com a cruzinha, na parte de trás, luzindo lá em cima, num requinte impressionante que empresta sentido a todo o resto de seu corpo.

Erickson Campos Brito – pseudônimo Augusto dos Anjos – apresentou o tema “Saudação ao Sol” – de motivos óbvios, já que em João Pessoa o sol nasce primeiro em todo continente americano. Esse escultor teve o mérito de ser o primeiro artista a ter apoio unânime da comissão. Sua obra, compacta, vistosa, majestosa, densa de sentido, bem desenvolvida, cativou imediatamente todos os julgadores, sem exceção. Sua “Saudação ao Sol” impressionou a todos pela beleza de seus seis volumes de ferro em vermelho vivo, o conjunto lembrando, imediatamente, as famosas estátuas que “montam guarda” na costa litorânea da Ilha de Páscoa. Nossa sugestão é a de que o grupo fique voltado para o nascer do sol em Tambaú. Achou-se por bem, ainda, que se negocie com o artista que aumente a altura da obra, de três para cinco ou seis metros, para que sua monumentalidade marque presença em nosso litoral. Ele, evidentemente, também sairá ganhando com isso.

“Guardiã da Cidade” – de Evanice dos Santos Silva (Tanice), que consiste num pássaro que levanta vôo, é de uma elegância tal que fez a comissão, a princípio, duvidar da competência da escultora para realizá-la. Depois de muito debate, concluiu-se que não tínhamos como avaliar os meios do/a artista para tal proeza, pois o pseudônimo nos impedia saber de quem se tratava. “In dubio, pro reo”, diz a Justiça. Resolvemos, portanto, dar-lhe um voto de confiança a ser confirmado – como, aliás, deve acontecer com todos os selecionados – no contato que, fatalmente, acontecerá entre eles e a comissão, com a divulgação do resultado do concurso.

“Revoar” - de Luiz de Farias Barroso (Ícaro), tem os mesmos méritos e problemas da anterior. Sua qualidade principal é a criação de uma arribação de aves que é, ao mesmo tempo, a de um só pássaro, dividida pelos vários fotogramas de seu movimento. A questão levantada é a das possibilidades técnicas do concorrente e a do realismo de seu orçamento para realizar a obra prometida. Cabe, também, ao contato comissão-e-artista, tornar isso bem claro.

Wilson Figueiredo da Silva (Plácido Rivera) submeteu-nos “O Cavaleiro Alado” à apreciação, sendo sua proposta a que mais evoca a arte de Jackson Ribeiro, homenageado pelo certame. O trabalho se impôs ante nós pela presença maciça, teoricamente monumental, mas as dimensões propostas são decepcionantes e perigosas. Dois metros de altura, para um trabalho colocado em meio a uma avenida, é muito pouco. E tem o inconveniente de ser facilmente escalado por crianças, que sofreriam sério risco de ferimentos nas orelhas pontudas do animal representado. Parece-nos que quatro ou cinco metros seria o ideal para a obra, que correu o risco de ser ridicularizada pela comissão ao se constatar que o “cavalo” parecia mais um boi, com o que se pensou em sugerir ao seu criador que mude o nome dela para “Touro Alado”, como os dos assírios, ficando, assim, a evocação paralela com os cavalos-marinhos, feita pelo autor, transferida para o bumba-meu-boi.
Por último temos “Sinergia II”, de “Leonardo da Vinci” (pseudônimo), que mereceu de Flávio Tavares a observação pertinente de que ela trabalha com quadrados mas está em cima de um pedestal triangular, o que lhe confere certo desequilíbrio. Cabe negociar isso com o artista, e também um aumento nas dimensões de sua obra, para que adquira um mínimo da monumentalidade que se exige de uma obra escultórica destinada a lugar público.

Todos os trabalhos não selecionados comoveram a comissão pelo seu número, pela disposição e empenho de seus autores, mas deixaram a desejar pelo aspecto estético e, também pelo temático, sempre sem grandes vôos. A comissão discutiu detidamente a validade de cada proposta A obra “Velas do Cabo Branco”, do autor com pseudônimo de “Tenho Dito”, por exemplo, gerou uma discussão sem fim, por apresentar alguma beleza se vista de dois pontos de vista contrários, mas presença absolutamente nula, se vista dos outros dois, limitada, literalmente, a um mastro. Isso foi considerado, por parte da comissão, como um motivo para torná-la inadequada, desclassificando-a. Foi apresentada ao grupo, inclusive, uma escultura de Roy Lichtenstein – maravilhosa – com o que seria o mesmo problema, no caso resolvido pela colocação da obra ante uma passagem, num jardim, de modo que a visão dela seria exclusiva, de acordo com ela mesma, para quem se aproximasse de um lado ou de outro. No caso, o local seria semelhante: o canteiro no final da Epitácio Pessoa. A escultura de Lichtenstein tem, no entanto, mais espessura e é – infelizmente – de uma beleza tal, que sua falta de “presença redonda” lhe redime a falha, excepcionalidade que a obra concorrente, infelizmente, não tem.

Examinou-se uma segunda “Velas do Cabo Branco”, em granito, majestosa, do concorrente “Granato”, mas com uma falha na apresentação do projeto – pois nele há somente uma foto, um só ponto de vista da escultura – o que é vedado pelo regulamento. Além do mais, sua formulação – bem como a de outras obras suas, apresentadas na sua pasta - está muito vinculada ao cubismo ainda de Picasso e Braque nos inícios desse movimento artístico.

Surgiu, ainda, um “Monumento à Paz”, do candidato “Creso”, em que uma mulher ergue um enorme girassol. Foi unanimemente descartada pela comissão por sua também defasagem, considerada ainda muito dentro do “realismo soviético” e de suas já muito estudadas limitações.

Duas outras obras também mostraram grande coerência com os locais escolhidos para sua entronização: uma bailarina diante do Teatro Santa Roza, e um índio – nesta terra de cariris e tabajaras - na mesma posição do famoso bronze grego representando Poseidon/ Netuno. Mas as intenções dos autores/as tropeçaram na concepção pouco estética dos trabalhos.

Outra peça, “Infância Paraibana”, de “Libra”, pareceu-nos pecar pela pesada composição – dois enormes cubos – buscando leveza com aplicação de pinturas cheias de meninos brincando, o que deveria ter sido feito com altos e baixos relevos, não com a assimilação de outra arte.

considerações do autor sobre as esculturas paraibanas candidatas a figurar no cenário urbano da nossa capital, como então presidente da comissão avaliadora.


W. J. Solha é escritor, dramaturgo, artista plástico e escritor (João Pessoa-PB). waldemarsolha@gmail.com