No livro “Quartas Histórias” — ed. Garamond 2006, organizado por Rinaldo de Fernandes, em homenagem a Guimarães Rosa — há uma história curt...

Sobre o que nos falta

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No livro “Quartas Histórias” — ed. Garamond 2006, organizado por Rinaldo de Fernandes, em homenagem a Guimarães Rosa — há uma história curta, minha, “Sarapalha”, em que meu personagem, professor de Literatura Brasileira da UFPB, é convidado, por uma organização secreta, a participar do aperfeiçoamento coletivo da obra do grande escritor mineiro, a partir desse conto, que era o de que ele menos gostava.

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A ideia me veio de uma entrevista de Carlos Heitor Cony para a revista Bravo, na qual ele dizia que o Brasil não tem, ainda, o equivalente ao que significam Dante para a Itália, Shakespeare para a Inglaterra, Goethe para a Alemanha, Camões para Portugal. ”Nem Machado nem Guimarães Rosa cumprem esse papel?” — surpreende-se o entrevistador.

Bom. Eu mesmo, no poema longo “Trigal com Corvos”, já tinha dito que Aleijadinho deveria ter sido Miguelângelo, não o "nosso Miguelângelo", Carlos Gomes deveria ter sido Verdi, não o "nosso Verdi", Portinari deveria ter sido Picasso, não o "nosso Picasso" etc etc.

Mas o que nos falta?

Rodrigo Naves, em “A Forma Difícil”, falando sobre nossas artes plásticas, diz:

“Uma dificuldade de forma perpassa boa parte de nossa melhor arte contemporânea. A relutância em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e conflituada com o mundo, leva-a a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter prospectivo de parcela considerável da arte moderna”.

O que ele denuncia é nossa “timidez formal”. Claro, isso fica patente quando nos lembramos de que não temos, no passado — mais distante ou não —, nada que rivalize com o teto da Sistina, a Missa da Coroação, o Pensador, Guerra e Paz, 2001, Folhas de Relva, Hamlet, Eclesiastes, Cidadão Kane, A Evolução Criadora, Amarcord, A Ilíada, Eneida, a catedral da Sagrada Família, e por aí vai. Mas reformulo a pergunta: Por que essa timidez?

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Ah, veja bem: precisaríamos de uma era como a elisabetana, para produzir um Shakespeare; uma era como a de César Augusto — tendo a seu serviço um Caio Mecenas – para produzir um Virgílio; precisaríamos do peso de uma cultura como a russa, para produzir um Tolstói e um Dostoiévsky, um Máximo Gorki e um Gógol, um Tchekov e um Turgueniev, sem falar em Pasternak e Soljenitsin, poetas como Pushkin e Maiakósvsy, Anna Akhmátova e Boris Pasternak, compositores como Tchaikóvsky, Mussórgsky, Shostakóvsky, Prokofiev e Rachmaninof, além de cineastas como Vertov, Eisenstein e Tarkóvsky, donde se conclui que ninguém, realmente, é uma ilha, muito menos o gênio. É famosa a frase de Isaac Newton: “Se vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”. “Ombros em que subir!”, reclamo no “Trigal com Corvos”.

De que mais precisaríamos? De uma História que não fosse – até agora - tão periférica, a ponto de sepultar – em termos universais – uma obra-prima isolada como “Os Sertões” do Euclides da Cunha, tornando esse vasto épico (absolutamente interno) muito menor – em termos de repercussão internacional – que as aventuras extraconjugais de duas burguesas ociosas como Anna Karenina e Madame Bovary.

Ser periferia é tão contundente para a arte, que Paris se encheu de artistas estrangeiros na época em que foi centro cultural do mundo.Para lá migraram os holandeses Van Gogh e Mondrian, os espanhóis Picasso, Dali, Lorca e Buñuel, os americanos Hemingway, Gertrude Stein e Henry Miller, os russos Kandinsky, Nijinski, Diaghilev e Chagall e muita gente mais.
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Se bastasse ir para lá, porém, Portinari, Cícero Dias, Di Cavalcanti e Ismael Neri seriam, hoje, nomes globalizados. Infelizmente, no entanto, Cícero Dias voltou da França com algo como uma franquia de Chagall e três outros com a de Picasso, impressionando a crítica e o mercado tupiniquins, mas não, obviamente, a Europa. O que, então, teria consagrado a tríade de muralistas mexicanos Orozco, Siqueiros e Rivera? A resposta é claríssima: seu gênio e seu principal tema: a Revolução Mexicana, anterior à Russa e tão marcante, que gerou um fortíssimo livro-reportagem de John Reed – “México Rebelde” – que colocou o país no centro das atenções mundiais, ainda mais que ambos - insurgência e obra – foram como que pontos de partida para o levante de Lênin e de um livro ainda mais poderoso do jornalista americano para contá-lo – “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo”. Dessa ressonância diz bem a existência e sucesso do filme “Viva Zapata”, roteirizado por John Steinbeck, dirigido por Elia Kazan, interpretado por Marlon Branco.

Bem, mas como explicar o renome do colombiano Gabriel García Márques, dos argentinos Cortázar, Borges e Manuel Puig, do chileno Pablo Neruda, do peruano Vargas Llosa, do venezuelano Rômulo Gallegos, do paraguaio Augusto Roa Bastos, do nicaraguense Rubén Dario? Atribuo seu prestígio à sua genialidade, claro (embora não maior que a de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Affonso Romano de Sant´Anna ), e ao peso da língua espanhola, imensamente maior que o da portuguesa, por carregar em sua trajetória personalidades como Cervantes, Lorca, Miguel de Unamuno, Calderón de La Barca, San Juan de la Cruz, Francisco de Quevedo, José Zorrilla, Juan Ramón Gimenez, Dámaso Alonso,
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Fernando Arrabal, Benito Pérez Galdós e Tirso de Molina, sem falar, evidentemente, da simbiose fantástica de que os espanhóis sempre se beneficiaram, com expoentes da pintura como Goya, Zurbarán, Velázquez, Ribera, Picasso, Dali, Miró e Juan Gris, cineastas como Buñuel, Carlos Saura e Pedro Almodóvar, todos devidamente reconhecidos por todas as mídias de toda a Terra.

Otto Maria Carpeaux dizia que todo grande artista vive na convergência dos acontecimentos, citando para isso justamente o caso de Virgílio escrevendo na Roma do Imperador Augusto. Lembro-me de que fiz contato, anos atrás, com o escritório da agente literária Carmen Balcels, pretendendo deslanchar uma carreira internacional para meus romances, e ouvi, de quem me atendeu, que apenas três assuntos interessavam aos gringos naquele momento: Amazônia, Bahia e menores abandonados cariocas, “daí, por exemplo, o espaço aberto para ‘Galvez, o Imperador do Acre’, do Márcio de Souza.” Daí, quem sabe, também, acrescento eu, o surgimento do amazonense Milton Hatoum, aqui dentro e fora do país. E o fenômeno Paulo Coelho? Bem, não estamos falando de magia.

Feito os cães que ladram enquanto a caravana passa, nós – pintores, romancistas, poetas e cineastas paraibanos – somos agentes e vítimas da periferia da periferia e disso padecemos. Escapa um Augusto dos Anjos, salva-se um Zé Lins do Rego, esgueira-se um Walter Carvalho, escapole-se um Luiz Carlos Vasconcelos, Ariano, Chico César, Bráulio Tavares, Marcélia Cartaxo, Zezita, mas é justamente do consagrador Sudeste que alguns já fogem – de Wagner Moura a Beatriz Milhazes, de Rodrigo Santoro, a Vik Muniz.

Meu conto “Sarapalha”? Nunca mais ouvi falar dele...


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta

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