(Chico Viana) Há de tudo neste mundo. Li na internet a entrevista de uma estilista alemã especializada em roupas para defuntos. A princípio ...



(Chico Viana)

Há de tudo neste mundo. Li na internet a entrevista de uma estilista alemã especializada em roupas para defuntos. A princípio achei a idéia esquisita, depois me dei conta de que não é tão absurda assim. Ninguém se enterra nu; logo, não é irrelevante que o indivíduo se preocupe com a roupa com a qual vai adentrar a última morada.

Talvez só os muito vaidosos dêem importância a isso. Para a grande maioria, pouco importa o que vestir no caixão. Esse pouco caso teria a ver com o que Machado chama de “o desdém dos defuntos”, que envolve a moda e todo o resto.

A estilista mostra, no entanto, que é muito importante escolher a roupa adequada a ocasião tão especial. Afinal de contas, vai-se passar o resto da vida (ou melhor, da morte) com ela. O apuro com que o defunto está vestido concorre para a imagem que ele vai legar aos parentes e amigos. É preciso evitar comentários do tipo: “Viu que desleixado? Nem morto soube se arrumar”.

Um dos inconvenientes de não escolhermos a própria mortalha, segundo a entrevistada, é que corremos o risco de ser enterrados com uma roupa que não nos agrada. Aquela camisa berrante, aquele paletó apertado, aquela cueca áspera que roça e avermelha as virilhas.

Para evitar esse tipo de constrangimento, é melhor definir o figurino e deixá-lo no guarda-roupa. Assim como existe a indumentária do trabalho e a do domingo, existe a do repouso eterno. Ela ficaria ali, esperando o momento de entrar em cena. E indiretamente nos soaria como uma advertência sobre a efemeridade da vida.

A estilista já escolheu o que vai usar, e faz questão de dar sugestões aos clientes. O ideal é que o tecido seja leve, simples, despojado. Por dois motivos. Primeiro, porque lá embaixo faz calor. Segundo, porque não convém nessa delicada e misteriosa viagem sugerir arrogância. A vestimenta simples indica humildade de espírito, atributo sumamente desejável em quem vai se submeter ao julgamento eterno.

(Milton Marques Júnior) Como é próprio à juventude ser soberbo, saber tudo! Eu também já fui assim; hoje, velho, não me iludo. Não te obrigu...



(Milton Marques Júnior)

Como é próprio à juventude ser soberbo, saber tudo!
Eu também já fui assim; hoje, velho, não me iludo.
Não te obrigues a certeza, nem ser dono da verdade,
nem imponhas tuas crenças, tudo isso é vaidade.
Busca a paz no equilíbrio, não te nutras de ilusão;
pra quem quer sempre estar certo, que terrível solidão!
Ó efebo, desde já, vai tecendo esta verdade:
Não progride o Saber que desdenha a Humildade!



Quem não tem algum distúrbio, quem não tem algum conflito?
Só o feicibuquiano é histérico irrestrito.
A manchete já lhe basta, pra ativar a sua sanha
e repete, sem critério, toda e qualquer patranha.
Sem critério, não, Senhor! ele sabe como agir:
o critério que utiliza busca sempre confundir.
Distorcendo sempre os fatos, exacerba sem razão,
de um anão faz um gigante; de um gigante, um anão.
A caterva que o acompanha profetiza apocalipses,
num discurso verborrágico, todo cheio de elipses,
pois propaga o que não leu e se ler inda dirá:
De mentira em mentira a verdade morrerá.



O Pudor e a Justiça nos deixaram, foram embora...
É o que diz o grande Hesíodo em poema de outrora.
Sós, ficamos à mercê dos bandidos, dos ladrões,
do seu séquito de fâmulos, que ignora os padrões.
E tais fâmulos são piores que os bandidos que defendem,
ordenando que outros leiam, mas se leem nada entendem.
Meus queridos xerimbabos, de si mesmos tenham dó,
pois se alguém muito se abaixa, vai mostrar o fiofó.



A justiça no Brasil é injusta e morosa.
Para os ricos, vista grossa; para os pobres, poderosa;
pro delito irrisório, dura lex, sed lex;
para a grande corrupção, sobram malas e triplex;
para o roubo de um shampoo, o coitado amarga pena;
para malas de reais, liberdade sempre plena.
Pra justiça ser assim, colabora o imbecil,
defendendo os seus ídolos, sem defesa do Brasil. 
Não te esqueças, grande parvo, que reclamas retrocesso:
Corrupção e violência são sistêmicas, são processo
e se algo deu pra trás, é porque algo avançou,
algo infame, vergonhoso, que a cegueira edificou.

(garimpados do facebook do autor)

(Carlos Cordeiro) “Algumas coisas boas às vezes são ótimas”. Assim se expressaria o velho Conselheiro Acácio. Recorro a ele para dizer que a...


(Carlos Cordeiro)

“Algumas coisas boas às vezes são ótimas”. Assim se expressaria o velho Conselheiro Acácio. Recorro a ele para dizer que as crônicas do Carlos, publicadas em seu blog - agora felizmente reaparecido por obra do seu filho Germano, como justíssima homenagem ao nosso cronista maior – estão nessa assertiva acaciana. Esclareço que a pecaminosa associação do nome de Carlos à imbecilidade conselheiral é apenas uma brincadeira de quem tem talento escasso, pois não existe ninguém menos acaciano que o Carlos.

Na verdade, ele é exatamente o oposto - em vez das frases bombásticas e vazias que Eça habilmente dependurou nos lábios inertes do Acácio, encontramos no texto do Carlos uma “simplicidade profunda” – uma capacidade de falar de coisas que transcendem o raciocínio diário e comum por meio de frases e raciocínios de aparência semelhante. Uma “superficialidade profunda” (perdoem o oximoro) que esconde magicamente um mergulho no pensamento mais profundo, tarefa que não é para qualquer um. E nisso ele está, por exemplo, com Santo Agostinho, que em suas Confissões soube acondicionar tão destramente sofisticadas reflexões metafísicas em um texto leve, gracioso, de comovente simplicidade.

A gente sabe se o escritor é bom quando vez por outra acorre à nossa lembrança alguma frase, um pensamento, uma descoberta, que lemos uma vez e ficou para sempre impregnada na memória, para nos acudir em nossos momentos de perplexidade filosófica ante a aparência desconcertante de um mundo tão violento, injusto e desonesto em que nos foi concedido viver para apurarmos o caldo grosso de nossa vida cheia de pecados. Falando assim, parece que estou a dizer que o Carlos era um moralista intransigente, inflexível na condenação dos defeitos humanos e incapaz de ver na natureza simples e colorida que nos cerca um cenário preparado por Deus para aliviar-nos na pesada tarefa de viver.

Quantas vezes, ao ler suas crônicas, peguei-me surpreendido com sua capacidade de ver nos coqueirais de Tambaú, numa simples florzinha do mato, na brisa do mar que abençoa seu ninho fincado nos contrafortes do Cabo Branco, revelações de uma verdade maior, que só os artistas, seres antenados, conseguem captar e transmitir. A quem comparar o escritor Carlos, que literatura pode ser semelhante à sua, na beleza, na acuidade, na plácida sensibilidade? Há muitos, e não vou cansar algum caridoso leitor que tenha me acompanhado até aqui, com listas de falsa erudição e risco de omissões criminosas. Nem precisamos sair da Paraíba para encontrar seus símiles. Ocorre-me de pronto José Lins do Rego. Basta este para ajudar-me nesta comparação de estilo, de sensibilidade e de beleza.

Soube agora que sua companheira e irmã de alma Alaurinda, artista de sensibilidade igualmente refinada, está compondo uma espécie de “Espaço Carlos Cronista” (criei esse título por puro enxerimento, ninguém mo pediu), ao recompor com a indispensável colaboração do Germano, os lugares onde ele viveu seus momentos de intimidade familiar, seus longos colóquios com os artistas de sua predileção, às vezes na biblioteca, outras no aconchego de seu canto predileto. Grande, inestimável Carlos. Lembrei-me de parafrasear um texto sobre Guimarães Rosa escrito pelo Drummond: “O Carlos Romero existiu mesmo, de se pegar?”

(Ângela Bezerra de Castro) Narrativa Narrar é sobreviver. É vencer o tempo e as armadilhas da vida. É enganar a morte. Foi assim com Sheraza...


(Ângela Bezerra de Castro)

Narrativa

Narrar é sobreviver. É vencer o tempo e as armadilhas da vida. É enganar a morte.

Foi assim com Sherazade e continua a ser com todos aqueles que dão sequência ao texto ou ao “risco do bordado” que a humanidade vai desenhando e tecendo ao longo de sua história.

Na força da narrativa o real se transfigura, permanece e se eterniza, mesmo quando a referência temporal que lhe deu origem já se apagou na paisagem do mundo ou na memória dos homens.

É esse poder de recriar o mundo, de restaurar o tempo, de reinventar a vida que atrai e consagra o narrador, e tem contrariado até hoje as vozes que se arriscaram a profetizar o fim do romance e da literatura.

                              

Crítica literária

A Crítica Literária não se pode restringir a uma atitude individual e muito menos reduzir-se ao elogio vazio ou de conveniência.

A crítica é um saber exercitado através de século que, na segunda metade do século XX, atingiu um nível de competência e objetividade impossível de ser confundido com o discurso da banalidade.

Crítica é Leitura especializada, instrumentada pela Teoria Literária, pela História da Literatura e por outros conhecimentos que o texto-objeto exija, na decifração dos seus códigos. É análise rigorosa e conclusão fundamentada. Criação e descoberta. Luz que ilumina o texto para revelar as armadilhas da construção e suas estruturas de sentido. Ponte que faz mais segura a travessia dos leitores que empreenderão depois a mesma viagem.

É isto a Crítica. A verdadeira Crítica que se incorpora definitivamente à historia do texto literário estudado e não pode ser ignorado pelos novos leitores, tal a procedência de suas descobertas e a exatidão de suas lições.

(excertos do livro “Um certo modo de ler”)

(Davi Lucena) Meu caso de amor e amizade com Carlos Romero começou em 1994, mais exatamente no mês de abril. Foi o começo de um valioso rela...


(Davi Lucena)

Meu caso de amor e amizade com Carlos Romero começou em 1994, mais exatamente no mês de abril. Foi o começo de um valioso relacionamento de pai e filho. Estava eu com os meus 27 anos, recém-estabelecido em João Pessoa. Ele nunca gostou de conversar sobre idade e coisas do passado. Quando fomos apresentados, com um aperto de mão, a primeira coisa que dele ouvi foi: “não me chame de senhor”. Jamais obedeci, por causa da reverência que a figura dele me impunha. Naquele mesmo ano, em outubro, fizemos nossa primeira viagem. Nos preparativos, ele brincava dizendo que detestava fazer as malas, coisa que, na verdade, ele jamais experimentou.

Desembarcamos em Bruxelas. Ele, Alaurinda, Germano e eu, numa tarde ligeiramente fria. Era minha primeira viagem internacional e meus olhos reviravam com as belezas do velho mundo. Tudo era novidade: as casas bem alinhadas, os bosques de pinheiros, as igrejas milenares, as pessoas conversando em outras línguas. Ficamos no centro da cidade, pertinho da Grand Place e meu entusiasmo, ao debutar naquelas paragens, me impelia a querer estar na rua a todo instante, para ver o movimento, as bicicletas, os bondes, as pessoas. Logo percebi que meu companheiro de viagem, Carlos, que já tinha cruzado o Atlântico, não se dava muito a deslumbramentos. Com seu inseparável caderno de anotações, ele costumava sentar num banco da praça e escrever seus rabiscos, enquanto observava as pessoas indo de um lado a outro. Naquele pequeno papel, o cronista registrava curtas impressões, que mais tarde eram processadas e transformadas em sensíveis exposições do cotidiano. O vento, as nuvens, as pernas que passavam apressadas pelas ruas, os pombos à procura do milho que os transeuntes bondosos jogavam… tudo era inspiração para os textos do escritor.

Ele logo passou a me chamar de “Deivis”, na forma mais carinhosa que poderia existir. Quando me encontrava de manhã, no lugar do clássico “bom dia”, ele olhava pra mim e repetia a palavra 3 vezes: “Deivis, Deivis, Deivis”, como se fosse um mantra ou uma forma de benção. Carlos adorava cooper. Ainda na casa de seus 80 anos, com uma vitalidade impressionante que a genética lhe presenteou, ele singrava quilômetros, incansavelmente, e nos levava todos juntos em suas caminhadas. Com ele aprendi a ver o mundo por prismas que jamais tinha imaginado. As viagens, que muitos veem como oportunidade de compras e de festas, para nós eram momentos de renovação cultural e espiritual. Sua paixão por livros levou-me a conhecer grandes livrarias mundo afora. E não só isso. A nossa convivência potencializou ainda mais a minha inclinação pela leitura. Foi a espiritualidade de Carlos Romero que me deu a oportunidade de ouvir palestrantes de renome, a visitar a loja em que Allan Kardec trabalhou, a cidade em que nasceu, o túmulo no cemitério Père Lachaise. Por causa dele, fui apresentado a orquestras, pianistas, condutores, óperas, balés. Atravessamos riachos, passeamos por desfiladeiros, cruzamos mares e percorremos grandes distâncias, por terra, mar e ar. Em alguns momentos, sua voz ecoava de forma mansa, com uma observação sobre as ovelhas e vacas que pastavam nos campos. Sim, é isso mesmo, ele pensava alto e parecia conversar com os seres que o cercavam, inclusive os inanimados.

Já chegando aos 90, sua estrutura física deu sinais de declínio, mas sua vivacidade mental permaneceu acesa, a todo vapor, como um alegre trem sobre os trilhos, transporte no qual ele mais gostava de viajar. Nas escadarias, ele apoiava o seu braço no meu e puxava alguma conversa só pra disfarçar a ajuda de que precisava para escalar os degraus. Continuou vaidoso. Escondia a bengala para tirar fotografias e se recusava a entrar em filas prioritárias. Adorava camisas coloridas, abotoadas até o pescoço. Sempre exaltava a música erudita, e considerava relevante comparecer aos eventos de paletó e gravata. Certo dia foi presenteado com um chapéu Panamá e nunca mais quis deixar de usá-lo. “Esta é a minha marca registrada”... dizia ele.

Não reclamava de nada. Se a comida servida no restaurante era boa, elogiava. Se não estivesse apetitosa, elogiava do mesmo jeito. Diante de um prato de bacalhau fresco, então, seus olhos brilhavam. No carro, durante os trajetos, a paisagem soberana composta de árvores, campos e nuvens resplandecia lá fora, mas a atenção dele ela toda para a sua bonequinha, Alaurinda. Gostavam muito de conversar, discutir sobre arte, filosofia, religião, e, vez por outra, engatilhavam umas “briguinhas”, porque ela queria responder todas as enquetes que ele fazia durante os passeios. A Germano, a quem ele chamava de “meu anjo”, pedia sempre para colocar no som do carro um concerto de Bruckner ou Beethoven.

E assim as viagens transcorriam como uma festa, singela, divertida, cultural. As paradas serviam para um pequeno descanso e para contemplação. Na margem de lagos espelhados, ele colocava apelidos nas montanhas e recolhia seixos para levar como lembrança. Ao ver um gramado, estendia-se ao sol, sem querer saber de mais nada, só dos raios que acariciavam seu rosto. Nos jardins, parques e praças, pedia para ser fotografado entre as flores. Não podia ver uma estátua ou busto, que logo queria saber de quem se tratava. Do frio não gostava muito, mas nada o impedia de querer sair às ruas, passear nas calçadas, folhear um livro em algum recanto, fazer suas anotações para futuras crônicas.

Trago na lembrança aquele olhar sereno, aquele sorriso simpático, aquela companhia que sempre tornava agradável qualquer ocasião. Passamos por turbulências e navegamos em voos tranquilos. Vencemos tempestades e nevascas. Descansamos na calmaria. E ele, já impedido de ficar em pé por muito tempo, servindo-se do conforto de uma cadeira de rodas, participava de tudo, tirando o melhor que a vida tinha a lhe oferecer, sempre cantarolando alguma canção e fazendo com que todos o acompanhássemos em coro.

Será difícil, senão impossível, enfrentar alguma outra viagem sem a companhia física de tão adorável ser. Não sei se a dor da saudade permitirá. Mas, com certeza, ele irá nos incentivar a continuar fazendo aquilo de que mais gostava. Rodar o mundo, contemplar as belezas do planeta. Se isto acontecer, será ele, agora, que me dará apoio com o seu braço… e eu sei que vou ouvir aquele sussurro de incentivo e amizade em meu ouvido, a repetir, com carinho, “Deivis, Deivis, Deivis”.


(Chico Viana) A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastimável. Não dá p...



(Chico Viana)

A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastimável. Não dá para fazer selfie com o nariz vermelho e os olhos injetados. E o pior é o defluxo que dele emana (prefiro o termo “defluxo” ao escatológico “catarro”).

A medicina criou um nome pomposo para designar a gripe – influenza, que vem do italiano. É um termo simpático e que até nos dá vontade de passar pela experiência. Parece haver certa nobreza numa afecção cujo nome evoca a pátria de Dante e Michelangelo. Mas a empolgação acaba quando vêm os espirros e a febre (ou melhor, a febrícula, com esse sufixo derrisório). Seu moral começa a balançar, e o corpo pede cama.

O bom é que, deitado, você momentaneamente se subtrai à atual confusão político-institucional do Brasil. Esquece por um tempo a reforma da Previdência, o Coaf (a única coisa que lhe evoca essa sigla é o cof-cof da tosse), a disputa entre os três Poderes (bem que os próceres da República mereciam uma gripe bem forte para lhes moderar a vaidade e a ambição. Não dá para gritar “Quem manda sou eu!” com os olhos lacrimejando). O espírito vagueia, mas a influenza não se esquece de continuar o seu trabalho. Inerte e sorumbático, você não passa de um espectro mucoso a passar o lenço (o quarto já) pelo nariz.

Então a mulher vem e lhe oferece um chá. Pergunta se você quer vitamina C (pelo seu gosto, você tomava todo o alfabeto). Um antitérmico também ajuda. É o máximo que se pode fazer contra uma patologia para a qual não há remédio – a não ser humildemente esperar.

A gripe é sobretudo um teste de paciência. Não há como evitá-la, mesmo com as vacinas. Periodicamente um exército de novos vírus ameaça o nosso organismo para demonstrar o quanto somos suscetíveis às agressões do ambiente e à roda das estações. A gripe modera a nossa soberba e, se nos põe na cama, é para que depois nos levantemos humildes e mais compenetrados da nossa humana condição. Se é inevitável adoecer, que seja ela a nos fazer dar o devido valor à saúde.

(Bráulio Tavares) Todo mundo sabe que no Cemitério das Profecias Apressadas o túmulo dos que preconizaram o fim da poesia com métrica e rima...


(Bráulio Tavares)

Todo mundo sabe que no Cemitério das Profecias Apressadas o túmulo dos que preconizaram o fim da poesia com métrica e rima fica a apenas duas aleias de distância do mausoléu dos que decretaram o fim da pintura figurativa.

Modernismos literários à parte, a poesia de forma fixa continua a ser praticada no mundo inteiro, convivendo em paz com as formas mais recentes, que incluem a poesia não-discursiva, a poesia visual, o poema-objeto, o poema-performance, e por aí vai.

Rimar é como dançar. Exige intuição e exige técnica. Para efeito deste artigo vou considerar apenas a chamada rima exata ou rima consoante, onde as duas palavras que rimam precisam ter som igual a partir da vogal da sílaba tônica (rima / prima; tônica / eletrônica; precisa / camisa, título / capítulo; etc).

É diferente da rima toante, em que basta haver uma certa semelhança entre os sons: longe / onde; olhos / relógios; estrada / mata. Em geral, a rima toante se funda na vogal tônica, que é a mesma, como nos exemplos anteriores, ou parecida, como nestes: automóvel / ouro; quente / parede; profundo / pulso.

O Rei da Rima Toante chama-se João Cabral de Melo Neto.

O poeta é o dono do seu poema. Ninguém o obriga a nada. Quando põe o lápis no papel ou o dedo no teclado, ele é livre para escrever palavras até de cabeça para baixo, se quiser (Carlos Drummond já o fez, em “Amar/Amaro”).

Acontece, no entanto, que nessa Metrópole da Liberdade Absoluta existe uma região chamada O Bairro das Formas Fixas, como o soneto, o hai-kai, a sextilha, a décima... São fixas porque o prazer de cultivá-las está nas regras que devem ser seguidas. O jogo poético tem um componente de desafio técnico. Grande parte da sedução dessas formas poéticas é o esforço de estar à altura de uma exigência radical. A prática das formas fixas é uma espécie de esporte radical poético. Não é para qualquer um. É para quem pode.

O poeta que usa essas formas precisa mostrar que as conhece e as domina, tal como um músico que empunha o violão ou senta ao piano deve mostrar domínio do instrumento. Sem isso, dificilmente ele vai produzir algum efeito estético.

As palavras que rimam são utilizadas pela semelhança de som. O poeta inexperiente, que tem pouco vocabulário, tende muitas vezes a terminar uma linha com uma palavra qualquer e, ao chegar na próxima linha onde a rima deve aparecer, colocar no papel a primeira rima que lhe vem à cabeça. O poema é romântico. Ele diz à amada: “Eu te amo, e por isso estou aqui”. Mais adiante, precisando de algo que rime com “aqui”, vê-se obrigado a enfiar no poema um abacaxi ou um índio guarani, que não têm nada a ver com o que está sendo dito. Estão ali somente para não perder a rima. É o que chamamos de rima forçada, rima apelativa, usando palavras que entraram no poema como Pilatos no Credo.

A palavra que rima está sendo usada pelo som, mas é preciso fazer com que pareça estar sendo usada pelo sentido. Como se nenhuma outra palavra pudesse ter sido colocada ali, a não ser aquela, que, aliás, vejam só a coincidência! – rima exatamente com a palavra de uma ou duas linhas atrás.

Vi uma discussão sobre aquela antiga canção, “Mamãe” (Herivelto Martins, David Nasser e Washington Harline), que diz:

Mamãe, mamãe, mamãe...
Eu te lembro, chinelo na mão,
o avental todo sujo de ovo...
Se eu pudesse eu queria outra vez, mamãe,
começar tudo tudo de novo.

É evidente que o letrista queria encerrar a canção com estas duas últimas linhas, certamente as primeiras que ele pensou para este trecho. Ele precisava de uma palavra que rimasse com “novo” – e que se encaixasse no contexto. Podia ter usado povo, louvo, comovo... A solução encontrada (que alguns contestam) me parece boa, porque o avental sujo de ovo se encaixa perfeitamente na memória de infância proposta pela letra. A palavra fornece a rima, mas também tem tudo a ver com o assunto.

Palavras que têm poucas rimas forçam o poeta (ou o letrista de música) a repetir eternamente um pequeno repertório. Uma passada de olhos pela música popular brasileira nos mostra que o uso da palavra samba acaba levando os autores a se referir a muamba, corda bamba, a corda e a caçamba e assim por diante. A palavra Brasil, curiosamente, tem centenas de rimas possíveis, mas alguma pressão cívica empurrou inúmeros poetas ao uso de varonil, céu de anil, eventualmente fuzil ou cantil.

Drummond já abriu um poema (“Consideração do Poema”) anunciando: “Não rimarei a palavra sono / com a incorrespondente palavra outono”. Drummond nunca foi inimigo da rima. Rimou fartamente ao longo de sua obra, mas esse pontapé na mesa era para que as rimas fossem pensadas, e tivessem uma motivação maior além da mera sonoridade. Ou seja – que parecessem estar ali não pelo som, mas pelo sentido.

Pode-se falsificar uma rima? Há exceções? Claro, e exceções ilustres. Um caso clássico de rima apelativa foi produzido por Victor Hugo, no seu poema de tema bíblico “Booz endormi” do livro La Légende des Siècles (1855-1876). Dizia ele:

Tout reposait dans Ur et dans Jérimadeth ;
Les astres émaillaient le ciel profond et sombre ;
Le croissant fin et clair parmi ces fleurs de l'ombre
Brillait à l'occident, et Ruth se demandait, (…)

(Em tradução rápida, ou seja, sem pretender reproduzir todos os efeitos do original:

Tudo estava em repouso em Ur e em Jérimadeth;
os astros cravejavam o céu fundo e sombrio;
o crescente fino e claro, entre as flores da sombra,
brilhava no ocidente, e Ruth se inquiriu...”

Muitos críticos se dedicaram a buscar essa referência geográfica à cidade de Jérimadeth, até que se percebeu que era um trocadilho do poeta com “J’ai rime à deth”, “eu tenho uma rima para deth”. Rimas inventadas para “quebrar o galho” de um autor não são coisa rara, mas o fato disso ser feito pelo maior poeta francês não apenas legitima em parte o processo, mas aos meus olhos deixa o poeta, que era tão sisudo, com uma imagem mais bem-humorada e simpática.

Muitos poetas, antes de começar a redigir uma estrofe, fazem uma pequena lista das rimas possíveis. A lista de rimas é um pequeno mapa dos caminhos que ele poderá percorrer para dizer o que pensa. Ações metódicas como esta não comprometem a espontaneidade da escrita. Pelo contrário: mostrando antecipadamente as alternativas, ajudam a escrita a fluir de modo mais espontâneo, e deixam o poeta mais seguro, já sabendo por onde pode passar para chegar ao objetivo.

Se o poema vai ter rima obrigatória, não custa nada fazer antes uma lista de palavras com essa rima. E procurar entre elas as palavras que pareçam mais naturais, que desenvolvam o assunto da melhor maneira. É preciso evitar o perigo da primeira rima que vem à cabeça. Geralmente é ruim.

Por toda parte vemos poemas onde o autor, escrevendo meio de improviso, põe no fim do verso uma palavra com poucas rimas. Digamos que ele escreveu “cinza”. Agora, por causa disto, precisa escavacar a memória atrás de uma rima correta, e só acha “ranzinza” – e aí vai ter que encaixar essa palavra tão específica dentro do assunto que vinha tratando. Às vezes, dá. Geralmente, não. É aquele caso de “pintar o piso e se encurralar num recanto”. Fica sem escolhas.

Há livro para o qual retornamos às suas páginas buscando o prazer da leitura, embalado pela ansiedade. Livros que nos fazem lembrar passag...



Há livro para o qual retornamos às suas páginas buscando o prazer da leitura, embalado pela ansiedade. Livros que nos fazem lembrar passagens da vida profissional, porque encurtam a distância entre o autor e nós.

Oito anos depois retorno ao livro de crônicas “Eu e outros arrecifes” de Luís Augusto Crispim, rememorado nossas paisagens, lembranças perdidas no tempo porque inicialmente construídas nas distantes tardes da redação do velho jornal O Norte. Lugar aonde ele chegava com passos lentos e gestos majestosos, corpo esbelto, destacável à distância. Desejava um boa-tarde, cumprimentava a todos, sentava à mesa e batia à máquina a crônica do dia seguinte. Era o tempo de quando esculpia minhas primeiras páginas, com letras nervosas. Dele, artesão tarimbado da palavra escrita, recebia o estímulo para continuar escrevendo.

Nunca recorri aos seus ensinamentos sem um retorno favorável, validando o menor gesto de nossa parte, porque se revelava no espírito de fraternidade, base para a construção de uma sólida amizade. Não que eu tivesse intimidade de adentrar no seu terraço como fazia com relação à Nathanael Alves e depois da ausência deste, com igual familiaridade em relação a Gonzaga Rodrigues, mas quanto a Crispim obtive livros que faltaram no meu roçado, quando morei em Serraria e Arara.

Retornei ao “Eu e outros arrecifes” rodeado de lembranças do abraço que fertilizava nossa amizade, cuja releitura trouxe-me à mente as palavras que a professora Ângela Bezerra de Castro usou, por ocasião do lançamento do livro, quando revelou os caminhos da crônica trilhados por este jornalista morto quando estava na melhor fase de escritor.

Era um final de tarde. O dia adormecia com seus derradeiros raios cobrindo o Rio Sanhauá e sobre os casarões em redor da Academia Paraibana de Letras sibilava o vento, enquanto era lançado o livro de crônicas recolhidas por suas mãos dias antes da sua passagem ao Infinito, onde repousa.

Ângela fez um passeio ao mundo do amigo ausente, ao tempo em que a emoção contaminava a plateia silenciosa. Cada um recordando no silêncio uma frase, um abraço, a leitura emocionada do texto a qual tínhamos acesso todas as manhãs, completando nosso café.

Como por ocasião da primeira leitura, agora retornei ao livro recordando cada palavra da professora, palavras que construíram a personalidade do amigo, compondo a minha pequena lista de saudade de ausentes.

A emoção de Ângela, naquela noite, recordando o amigo confidente, espontaneamente remeteria às recordações da amizade construída na sinceridade recíproca, fez com que nunca nos esqueçamos de Crispim, admirado como ser humano lapidado pela educação e o bom trato. Num texto publicado à época no jornal O Norte, eu falava que um dia retornaria a leitura do livro, que faço agora com emoção, ao lembrar-me do amigo que está a cobrar culto à sua memória.

A exaltação da professora ao mestre e amigo misturada aos acordes do vento naquela boca-de-noite, ainda ressoa como ruídos de um címbalo, não se apagará de nossa memória.

Crispim é daquelas pessoas que separamos para admirar. Era diferente. Tinha um olhar para as artes e outro para a vida, e isso o fez um homem notabilíssimo, um homem cordial.

(Milton Marques Júnior) Na situação em que me encontro - e isto é uma reflexão minha, particular - consigo discernir alguns momentos de avan...


(Milton Marques Júnior)

Na situação em que me encontro - e isto é uma reflexão minha, particular - consigo discernir alguns momentos de avanço da civilização.

O momento um, vamos chamar assim, foi quando o homem, no sentido genérico do termo, começou a usar o vaso sanitário.

O momento seguinte foi a descoberta da tampa do vaso sanitário, compreendendo que era menos nocivo dar a descarga com o vaso tampado. E efetivamente é.

O terceiro momento é a epifania que o homem teve - agora no sentido restrito do termo, de sexo masculino - ao assimilar que deveria levantar a tampa do vaso para fazer xixi.

O quarto momento foi a grande descoberta de deixar o vaso limpo, após cada uso, considerando que alguém vai usá-lo, principalmente quem partilha a moradia com ele.

O quinto momento civilizatório se dará quando o homem masculino começar a fazer xixi sentado no vaso.

Eis chegado o momento supremo: quando após ter assimilado todos os passos anteriores, o homem lavar as suas mãos, antes de sair do sanitário. Lavar bem, não apenas molhar as mãos.

Se conseguirmos cumprir todos estes passos, respeitar o outro será fichinha.

Música cheia de vida, planta cheia de vida, cidade cheia de vida. Cheia de vida, expressão cheia de tudo. De brilho, de viço, de ânimo, de...

marcia steinbach kaplan jose alberto kaplan
Música cheia de vida, planta cheia de vida, cidade cheia de vida. Cheia de vida, expressão cheia de tudo. De brilho, de viço, de ânimo, de cor, e humor. De boa conversa, contagiante, enérgica, vibrante. Márcia Kaplan era assim. Cheia de vida. De muita vida.

(por Odilon Ribeiro Coutinho) Creio que há uma relação misteriosa entre o individuo e a paisagem. Quando andei pelas praderias da Mancha, di...


(por Odilon Ribeiro Coutinho)

Creio que há uma relação misteriosa entre o individuo e a paisagem. Quando andei pelas praderias da Mancha, diante das planícies que fugiam, céleres, de minha vista até se perderem no horizonte, demarcadas apenas por uma pequena árvore ou simples arbusto, situados a longo intervalo um do outro, apoderou-se de mim uma sensação de espaço intemporal e o imenso vazio que se fez sentir, comunicou-me a impressão de que o espírito ia, aos poucos se desgarrando da terra

Então, compreendi o delírio do fidalgo manchego Alonso Quijano, que não é outro senão D. Quixote. Na Úmbria aconteceu a mesma coisa. A paisagem desse pedaço da terra italiana está impregnada de uma humildade tão doce, que o coração se enternece a ponto de se depurar de todo orgulho.

As suaves colinas que ondulam na Úmbria têm um ar de tanta mansidão, que logo se imagina que São Francisco de Assis se deixou tocar pela doçura e humildade daqueles arredondados montes, marcados nostalgicamente pela presença, no seu macio cimo, de um cipreste solitário.

Curiosamente, D. Quixote foi o primeiro herói literário que conquistou a imaginação de Ângela Bezerra de Castro. Os sonhos e a impávida galhardia com que o heróico manchego defendeu os ideais da Cavalaria, parecem encontrar no espírito da escritora paraibana, semelhanças e afinidades que se revelam na sua admirável vocação para a resistência e na sua irredutível integridade.

E São Francisco, que Chesterton disse ser o único verdadeiro democrata que existiu até hoje, é o santo da paixão de Ângela, que o quer como companheiro em todos os recantos de sua casa, onde há uma dezena de imagens espalhadas por todas as dependências.

Detrás das muralhas de granito, na solidão de um refúgio que lhe oferecia a segurança de uma cidade, confinada, quase tão somente, à convivência do circulo familial, vigiada pela severidade do perfil de rochedos imemoriais, espreitada pelos olhos invisíveis de seres misteriosos que parecem cruzar os ares da Serra da Confusão, a escritora forrou seu ser moral com metais que não se enferrujam.

(Trecho do discurso do escritor Odilon Ribeiro Coutinho para recepção da Professora Ângela Bezerra de Castro à Academia Paraibana de Letras, em 1999)

(Linaldo Guedes) As coisas as coisas não surgem do mar a não ser na bahia de todos os cantos onde todos os afluentes deságuam negrumes salga...


(Linaldo Guedes)

As coisas

as coisas não surgem do mar
a não ser na bahia de todos os cantos
onde todos os afluentes
deságuam negrumes salgados

tambores em versos gregorianos
temperos no auriverde pendão do pelourinho

- e caetano me falando de outros santos que não rezavam agonias
- e das baianas com estranhas liturgias dentro das anáguas

oração na igreja do bonfim: as coisas só surgem se amar.

Lugares

gosto de estar em lugares que já li
- ser cúmplice das angústias e presepadas
de riobaldo, de quaderna, de macunaíma
(eles sabem mais de mim do que o terapeuta que nunca vou ter)
com eles, construí um pacto com o cramunhão
para ser o gênio da raça brasileira
mas, anti-herói que sou, não sai dos livros
e dos lugares que ainda serão lidos.

Ladainha

um oásis se constrói com desertos
perto
(ou)
longe
um oásis se constrói em desertos
perto
(e)
longe
um oásis se constrói
(e os desertos?).

(Do livro, ainda inédito, "Cabo Branco e outros lugares que não estão no mapa")

(Lustração: Pintura de Bruno Steinbach."Cabo Branco, visto da Praia do Seixas". Óleo/tela, 50x70 cm, dez 2006, João Pessoa, Paraíba, Brasil. Coleção: Marcelo Steinbach Silva (in memoriam)

Nem sei mais quando conheci Gonzaga. Faz tempo! Mas confesso que, só mais recentemente é que leio sua coluna com mais assiduidade. Sempre ...



Nem sei mais quando conheci Gonzaga. Faz tempo! Mas confesso que, só mais recentemente é que leio sua coluna com mais assiduidade. Sempre o encontro nos eventos literários. E também sabia que tinha conhecido meu pai, Romero, nos tempos de outrora.

Gosto do seu estilo de crônica (simples, sofisticada, única e poética), e assim como toda a torcida de todos os times, o seu talento. Confesso que, quase sempre não conheço as pessoas de quem fala nas crônicas, seus lugares queridos, Alagoa Nova, e tantos outros recantos da sua prodigiosa memória. Pouco importa. Para quem tem aquele saber, aquela facilidade poética das esquinas, seus amores pela cidade, pelos amigos, e pela vida, nem se precisa conhecer os atores. Um passeio pelas suas vírgulas, já basta.

Também já tive oportunidades de ouvi-lo falar – com maestria. Homem simples, direto, erudito, simpático, e que tenho no seu olhar, uma ternura à toda prova. Uma empatia que sinto. Amor à primeira vista. Com todo o respeito. Ele sempre solícito e sempre carinhoso com meus afagos, abraços e cordialidades.

Nos últimos tempos, por conta dos livros, eventos comuns, e encontros mais costumeiros, esses afagos e abraços sempre mais assíduos. E eu, de longe, aproveitando sua fala, seu humor, e seu sorriso de olhos fechados. Uma unanimidade esse Gonzaga! Que tem no nome, ritmos de outro mestre. Um ritmo que vislumbra em passos devagarzinho, através do seu corpo magro, bem vestido em cortes de linho azul claro, cabeleira vasta, e olhos negros, hoje com uma ligeira névoa de quem já viu, olhou, contemplou , um tanto da vida – Longing day and night! Eu diria em outra língua.

Pois semana passada, fui convidada por amigos, a ir almoçar com alguns, e dentre eles estaria Gonzaga , o Neguinho, como é carinhosamente apelidado pelos seus. Imagina, o luxo de, dividir uma galinha de capoeira, uma cervejinha, cachacinha, ou o que fosse, com esse moço dos olhos risonhos.

Foi uma tarde inteira com ele sentado à minha frente. A discorrer sobre as ladeiras e percalços de suas histórias maravilhosas. Causos. Piadas até. Sua singeleza (sim! Essa é uma palavra boa para adjetiva-lo) e boas risadas de alegria, fizeram meu coração pinotar feito criança com brinquedo novo.

Lá pelas tantas, como se a felicidade não bastasse, comecei a situá-lo em relação ao meu pai. Ele arregalou os olhos – aqueles que riem de espanto, e identificou direitinho o meu pai querido, e o seu lugar de trabalho na Praça Antenor Navarro. Lembrou do seu escritório, das visitas, da generosidade do meu pai, contou até alguns segredos dos dois , confianças, admirações mútuas. Gentil e surpreso, mostrou sua alegria em me descobrir nos teclados das Remingtons que meu pai vendia. Teclados esses através dos quais, escreve suas preciosidades, reconhecidas e aplaudias pela vida toda. E eu ali, com o olhar perdido no passado, ouvindo emocionada, esse elo de afeto!

Sou uma leitora anônima, assim como toda uma cidade, que lê entusiasmada , seus passeios públicos e mais íntimos; sobre suas perplexidades diante do Ponto de Cem Réis; seus pertencimentos da vida; suas alegrias/tristezas da existência.

Ah! Gonzaga! Arvoro-me à essa pequenina sobremesa, ao nosso mais que idílico almoço, que ainda teve direito à performance de João Batista de Brito e seu texto sobre O Anjo Azul e Marlene Dietrich, e gargalhadas com o pai de Brooke Shields! Aí é assunto para uma outra crônica.

Obrigada Gonzaga! Martinho Moreira Franco, João Batista Brito, Mariângela Wanderley, e Luiz Paiva. Voltei pra casa literalmente rodopiando feito bailarina, não sem antes ter te dado um grande abraço que máquina nenhuma conseguiria registrar. Essas coisas do instante! E do afeto!

Meu quintal mede poucos metros e é lindo. Dele eu enxergo o mundo. De um lado, vejo uma nesga do mar, do outro, vejo o entardecer colorido ...


Meu quintal mede poucos metros e é lindo. Dele eu enxergo o mundo. De um lado, vejo uma nesga do mar, do outro, vejo o entardecer colorido com todos os tons de laranja. No meu quintal cabe uma rede e pequenos vasos de plantas que cuido com o carinho de mãe zelosa. Às vezes, sou presenteada com flores e me sinto a pessoa mais privilegiada do mundo.

Tudo se resume em ter um olhar que saiba enxergar.

Olhar é o mais comprometido, descomprometido ato da nossa percepção.

Olhar é exercício de vida e entendimento. É captar na retina da memória e do coração o que nunca esquecemos: a emoção quando desvendamos o rosto do filho recém-nascido, o olhar de aconchego quando enxergamos reciprocidade nos olhos de alguém por quem estamos apaixonados e o mais dolorido olhar, cheio de pavor abissal, é quando enxergamos a vida se findando no olhar de quem amamos.

Olhar o tempo é sentir certa melancolia de quem sabe que a vida é passageira e por isto mesmo, bela. Olhar é um ato de humildade diante da eterna dívida de haver nascido em um mundo absurdo e detonado pelo caos, mas que ainda nos dá a oportunidade de enxergar e reverenciar uma natureza pródiga de céu azul, mares verdes e flores amarelas.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

(José Nunes) No livro “O Idiota”, uma das obras-primas da literatura universal escrita pelo russo Fiodor Dostoievski, encontra-se a frase qu...


(José Nunes)

No livro “O Idiota”, uma das obras-primas da literatura universal escrita pelo russo Fiodor Dostoievski, encontra-se a frase que remete à mediação da beleza como princípio para salvar o mundo. Os gregos apontavam nessa direção do belo como fundamental à união das pessoas num único sentido da vida, da mão estendida na mesma direção. Foi com esse sentimento que há dois mil anos Jesus, que viveu nas terras áridas da Galileia, propunha o ensinamento da fraternidade.

“A beleza salvará o mundo”, escreveu o autor russo acreditando que seria possível harmonizar os sentimentos humanos de partilha. Mais tarde, retornaria a esse mesmo tema no romance “Os irmãos Karamazov”, aprofundando a questão do relacionamento harmonioso entre as pessoas como forma de conquistar a paz.

Na história por ele narrada no livro “O Idiota”, um ateu questiona como o mundo seria salvo pela beleza, ao que o príncipe Mynski nada responde, no entanto, fica junto a um moço de 18 anos que agoniza no leito da morte, cheio de compaixão, silencioso até este expirar. Gesto de profunda beleza, de amor ao próximo no momento da extrema dor, provando que atitude dessa natureza ajudará a salvar o mundo.

O romancista russo achava que belo era não roubar a dignidade dos outros, ter um espírito dominador, consumista. Repetia que “seguramente não podemos viver sem pão, mas também é impossível existir sem beleza”.

Também quando lemos ou contemplamos uma obra de arte, seja uma pintura, um poema, uma fotografia, por exemplo, captamos o alimento para nossa alma e, abastecidos do belo, somos impulsionados a conduzir outras pessoas para vivenciar o mesmo sentimento e, lentamente, ajudando a formar a paisagem da harmonia entre nossos semelhantes.

Criei-me num sítio onde vivíamos no mesmo nível de pobreza, as famílias partilhavam-se na mesma dor, repartindo a nesga de mistura para deixar saboroso o prato com feijão e farinha. Na dor e na angústia estávamos juntos e chamávamos de “de belo gesto” quando alguém ajudava o desprovido de alimento, sobretudo da alimentação. A cuia com farinha, o punhado de açúcar, sal ou café trazia alívio à fome e expunha a beleza daquele gesto.

Reconheço quanta beleza nos gestos que nossos vizinhos protagonizaram quando a cacimba deixou de fornecer água, a lavoura não brotou, com dias em que a panela ficava vazia na trempe, salvando-nos da aflição do estômago vazio.

Jesus implantou na alma das pessoas que a generosidade dos gestos nos faz irmãos todos os povos, deixando a lição de que a beleza está acima do estético e que possui uma grandeza moral e religiosa. O belo está expresso quando não se litigia a Deus, mas quando se vence o mal.

O belo não está na formosura do corpo que atende ao apelo do marketing, mas nos gestos que transformam e moldam o relacionamento humano. A flor nasce sem desejar ser contemplada, mas paramos para olhar e admirá-la por menor que seja. A flor é bela porque já nasceu assim, e nos fascinamos quando a contemplamos.

(William Costa) Olho para as nove horas brancas e rosas que o sol acaba de abrir no meu jardim. Não sei por que, me vem à memória a frase fi...


(William Costa)

Olho para as nove horas brancas e rosas que o sol acaba de abrir no meu jardim. Não sei por que, me vem à memória a frase final do romance Nadja, de André Breton, que li, há muito tempo, salvo engano em um artigo ou epígrafe de livro do escritor W. J. Solha: “A beleza será convulsiva ou não será”

Não devo ter lido Nadja com muita atenção – aliás, o livro me foi emprestado pelo próprio Solha -, pois não me recordo da frase por associá-la ao romance do surrealista francês, mas pela citação do autor paulista, radicado na Paraíba, este sim, um dos leitores mais vorazes e de excepcional memória que conheço.

A beleza do mundo me encanta e assusta exatamente por ser fugaz. Efêmera como as nove horas dos meus jarros, que desabrocham no meio da manhã e murcham muito antes do Sol se pôr. Não se pode retê-las, e sim contemplá-las, deixando de lado a vontade de questionar os motivos de sua existência.

Acontece de, às vezes, sentirmos a sensação de que algo maravilhoso irá se revelar a respeito da natureza. Mas permanecemos em suspense, como se não nos fosse permitido romper, pela razão, os limites da intuição. A sensação agrada e desespera, e, também neste caso, o melhor é respirar e relaxar-

Em momentos como este aplaudo em silêncio o cineasta Richard Donner, que dirigiu o longa-metragem O feitiço de Áquila. No filme, o Bispo de Áquila (John Wood) transforma os amantes Isabeau (Michelle Pfeiffer) e Etienne Navarre (Rutger Hauer) em predadores, aprisionando-os em mundos paralelos.

Durante o dia Isabeau transforma-se em uma águia e, à noite, Etienne toma a forma de um lobo. Eles são apaixonados e tentam se tocar no tênue instante que separa a noite do dia, quando ambos voltam à forma humana. Mas não conseguem, sendo este o verdadeiro castigo imposto pelo bispo feiticeiro.

Podemos associar a felicidade à beleza e esta às flores, uma vez que todas são transitórias - como nossas próprias vidas, aliás. E se tudo é passageiro, a alegria também é um estado de espírito momentâneo, como todas as formas de beleza, sendo o seu oposto, ou seja, a tristeza, oriunda dos inevitáveis espinhos.

Na tentativa de ser feliz, exatamente pela certeza dos espinhos, procuro andar pelo mundo atento aos seus jardins, para flagrar o momento de suas flores. Um amigo que encontro é um desses instantes, assim como o verso do poema e o excerto de conto ou romance que, ao lê-los, me emociono.

Cada vez que o mundo me agride, por meio de atos ou palavras, não escondo as lágrimas. Que a terra consuma minhas mágoas, para que, neste húmus sem rancor, vingue a esperança de uma rosa sem espinho. E quando sou eu o agressor, sinto-me como um ladrão que roubou a flor de um jardim celestial.