(Davi Lucena) Meu caso de amor e amizade com Carlos Romero começou em 1994, mais exatamente no mês de abril. Foi o começo de um valioso rela...

Carlos Romero, meu bom companheiro de viagem


(Davi Lucena)

Meu caso de amor e amizade com Carlos Romero começou em 1994, mais exatamente no mês de abril. Foi o começo de um valioso relacionamento de pai e filho. Estava eu com os meus 27 anos, recém-estabelecido em João Pessoa. Ele nunca gostou de conversar sobre idade e coisas do passado. Quando fomos apresentados, com um aperto de mão, a primeira coisa que dele ouvi foi: “não me chame de senhor”. Jamais obedeci, por causa da reverência que a figura dele me impunha. Naquele mesmo ano, em outubro, fizemos nossa primeira viagem. Nos preparativos, ele brincava dizendo que detestava fazer as malas, coisa que, na verdade, ele jamais experimentou.

Desembarcamos em Bruxelas. Ele, Alaurinda, Germano e eu, numa tarde ligeiramente fria. Era minha primeira viagem internacional e meus olhos reviravam com as belezas do velho mundo. Tudo era novidade: as casas bem alinhadas, os bosques de pinheiros, as igrejas milenares, as pessoas conversando em outras línguas. Ficamos no centro da cidade, pertinho da Grand Place e meu entusiasmo, ao debutar naquelas paragens, me impelia a querer estar na rua a todo instante, para ver o movimento, as bicicletas, os bondes, as pessoas. Logo percebi que meu companheiro de viagem, Carlos, que já tinha cruzado o Atlântico, não se dava muito a deslumbramentos. Com seu inseparável caderno de anotações, ele costumava sentar num banco da praça e escrever seus rabiscos, enquanto observava as pessoas indo de um lado a outro. Naquele pequeno papel, o cronista registrava curtas impressões, que mais tarde eram processadas e transformadas em sensíveis exposições do cotidiano. O vento, as nuvens, as pernas que passavam apressadas pelas ruas, os pombos à procura do milho que os transeuntes bondosos jogavam… tudo era inspiração para os textos do escritor.

Ele logo passou a me chamar de “Deivis”, na forma mais carinhosa que poderia existir. Quando me encontrava de manhã, no lugar do clássico “bom dia”, ele olhava pra mim e repetia a palavra 3 vezes: “Deivis, Deivis, Deivis”, como se fosse um mantra ou uma forma de benção. Carlos adorava cooper. Ainda na casa de seus 80 anos, com uma vitalidade impressionante que a genética lhe presenteou, ele singrava quilômetros, incansavelmente, e nos levava todos juntos em suas caminhadas. Com ele aprendi a ver o mundo por prismas que jamais tinha imaginado. As viagens, que muitos veem como oportunidade de compras e de festas, para nós eram momentos de renovação cultural e espiritual. Sua paixão por livros levou-me a conhecer grandes livrarias mundo afora. E não só isso. A nossa convivência potencializou ainda mais a minha inclinação pela leitura. Foi a espiritualidade de Carlos Romero que me deu a oportunidade de ouvir palestrantes de renome, a visitar a loja em que Allan Kardec trabalhou, a cidade em que nasceu, o túmulo no cemitério Père Lachaise. Por causa dele, fui apresentado a orquestras, pianistas, condutores, óperas, balés. Atravessamos riachos, passeamos por desfiladeiros, cruzamos mares e percorremos grandes distâncias, por terra, mar e ar. Em alguns momentos, sua voz ecoava de forma mansa, com uma observação sobre as ovelhas e vacas que pastavam nos campos. Sim, é isso mesmo, ele pensava alto e parecia conversar com os seres que o cercavam, inclusive os inanimados.

Já chegando aos 90, sua estrutura física deu sinais de declínio, mas sua vivacidade mental permaneceu acesa, a todo vapor, como um alegre trem sobre os trilhos, transporte no qual ele mais gostava de viajar. Nas escadarias, ele apoiava o seu braço no meu e puxava alguma conversa só pra disfarçar a ajuda de que precisava para escalar os degraus. Continuou vaidoso. Escondia a bengala para tirar fotografias e se recusava a entrar em filas prioritárias. Adorava camisas coloridas, abotoadas até o pescoço. Sempre exaltava a música erudita, e considerava relevante comparecer aos eventos de paletó e gravata. Certo dia foi presenteado com um chapéu Panamá e nunca mais quis deixar de usá-lo. “Esta é a minha marca registrada”... dizia ele.

Não reclamava de nada. Se a comida servida no restaurante era boa, elogiava. Se não estivesse apetitosa, elogiava do mesmo jeito. Diante de um prato de bacalhau fresco, então, seus olhos brilhavam. No carro, durante os trajetos, a paisagem soberana composta de árvores, campos e nuvens resplandecia lá fora, mas a atenção dele ela toda para a sua bonequinha, Alaurinda. Gostavam muito de conversar, discutir sobre arte, filosofia, religião, e, vez por outra, engatilhavam umas “briguinhas”, porque ela queria responder todas as enquetes que ele fazia durante os passeios. A Germano, a quem ele chamava de “meu anjo”, pedia sempre para colocar no som do carro um concerto de Bruckner ou Beethoven.

E assim as viagens transcorriam como uma festa, singela, divertida, cultural. As paradas serviam para um pequeno descanso e para contemplação. Na margem de lagos espelhados, ele colocava apelidos nas montanhas e recolhia seixos para levar como lembrança. Ao ver um gramado, estendia-se ao sol, sem querer saber de mais nada, só dos raios que acariciavam seu rosto. Nos jardins, parques e praças, pedia para ser fotografado entre as flores. Não podia ver uma estátua ou busto, que logo queria saber de quem se tratava. Do frio não gostava muito, mas nada o impedia de querer sair às ruas, passear nas calçadas, folhear um livro em algum recanto, fazer suas anotações para futuras crônicas.

Trago na lembrança aquele olhar sereno, aquele sorriso simpático, aquela companhia que sempre tornava agradável qualquer ocasião. Passamos por turbulências e navegamos em voos tranquilos. Vencemos tempestades e nevascas. Descansamos na calmaria. E ele, já impedido de ficar em pé por muito tempo, servindo-se do conforto de uma cadeira de rodas, participava de tudo, tirando o melhor que a vida tinha a lhe oferecer, sempre cantarolando alguma canção e fazendo com que todos o acompanhássemos em coro.

Será difícil, senão impossível, enfrentar alguma outra viagem sem a companhia física de tão adorável ser. Não sei se a dor da saudade permitirá. Mas, com certeza, ele irá nos incentivar a continuar fazendo aquilo de que mais gostava. Rodar o mundo, contemplar as belezas do planeta. Se isto acontecer, será ele, agora, que me dará apoio com o seu braço… e eu sei que vou ouvir aquele sussurro de incentivo e amizade em meu ouvido, a repetir, com carinho, “Deivis, Deivis, Deivis”.



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