Para o pesquisador José Ramos Tinhorão “o aproveitamento, por parte de compositores das cidades, de gêneros de música da zona rural, de c...

O admirável Ratinho da Paraíba

literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
Para o pesquisador José Ramos Tinhorão “o aproveitamento, por parte de compositores das cidades, de gêneros de música da zona rural, de caráter folclórico, remonta ao século XIX e tem sua origem no interesse que o tema dos costumes do campo começa a despertar no público urbano frequentador do teatro de revista”.

Essa seria a origem da música chamada “sertaneja” que prosperou, principalmente no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século passado. A primeira exitosa estilização e “urbanização” de um tema rural foi feita pela maestrina Chiquinha Gonzaga, com o seu famoso tango brasileiro “Gaúcho”,
que tinha como subtítulo Dança do Corta-jaca.

Em 1902, com a chegada ao Rio do violonista pernambucano João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco, para Tinhorão “um autêntico intermediário entre o campo e a cidade”, inicia-se um processo de aproveitamento de motivos nordestinos na canção popular. Dois temas folclóricos do Nordeste, que foram recolhidos e adaptados por João Pernambuco (acrescidos de versos colocados pelo poeta maranhense Catulo da Paixão Cearense) se tornaram, na segunda década do século 20, grandes sucessos populares: a embolada Caboca do Caxangá e a toada Luar do Sertão . A partir daí, ainda segundo Tinhorão, “estaria lançada a voga da canção sertaneja”.

Inspirados na Troupe Sertaneja (conjunto liderado por João Pernambuco) novos grupos surgiram, com formações similares e constituídos, em sua maioria, por músicos nordestinos. Por essa época, alguns instrumentistas do Recife foram estimulados por Pixinguinha (que estivera na cidade, em 1921, com o seu grupo Oito Batutas e que tinha João Pernambuco como violonista) a se mudar para o Rio de Janeiro. Os músicos incentivados por Pixinguinha a se transferir para o Rio, formaram os Turunas Pernambucanos. Entre eles, estavam o alagoano José Luiz Rodrigues Calazans (que escolheu o nome artístico de Jararaca) e o paraibano Severino Rangel de Carvalho (que já era conhecido como Ratinho).

Em pé (esq → dir): Severino Rangel (Ratinho), Adelmar Adour (Cobrinha), Preá e Jacob Palmieri (Jandaia); Sentados: Romualdo Miranda (Bronzeado), Robson Florence (Sapequinha), José Calazans (Jararaca) e Cypriano Silva (Pirauá)
Os Turunas Pernambucanos obtiveram grande êxito no Rio, sendo admirados por figuras de relevo no meio político como o senador Ruy Barbosa e o presidente Epitácio Pessoa. Com músicas compostas por Jararaca e Ratinho, os Turunas se apresentaram nos principais teatros da cidade, destacando-se as exibições de Ratinho ao saxofone. Em 1926, o grupo se desfez e, no ano seguinte, Jararaca e Ratinho decidiram atuar em dupla, mesclando nos espetáculos a música com uma parte humorística.

literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
Para o pesquisador Jairo Severiano:

"Apesar de não terem sido pioneiros como dupla caipira nos palcos brasileiros, Jararaca e Ratinho foram os primeiros a adaptar a forma de dupla caipira sulista – então muito em voga – ao conteúdo da música e humor nordestino, graças às habilidades e vivências individuais. Foi a dupla que se manteve por mais tempo: 45 anos, de 1927 a 1972".

Nascidos no mesmo ano de 1896, Jararaca e Ratinho se completavam nas suas diferenças. Jararaca era alto, falante, tocava um violão estilizado (cujo braço envolvia o seu corpo como se fosse uma cobra) e se encarregava de conduzir a parte humorística nos espetáculos da dupla. Ratinho, de baixa estatura, de poucas palavras, atuava como “escada” para as improvisações de Jararaca e, com o seu saxofone, era o destaque musical das apresentações.

Em 1929, Jararaca e Ratinho lançaram o primeiro dos seus vários discos, utilizando o mesmo formato que era utilizado nas suas apresentações: diálogos, intercalados por músicas nordestinas (emboladas, cocos, toadas), aqui exemplificados por O testamento do véio e Sapo no saco.


Jararaca e Ratinho tiveram o seu apogeu durante a chamada Era do Rádio. O duo teve programas exclusivos nas principais emissoras do Rio de Janeiro, sendo o de maior audiência o da Rádio Nacional, pertencente ao governo federal e, na época, a principal rádio do país. O declínio da dupla começou com o advento da televisão e foi agravado pelo golpe militar de 1964. Conforme Sonia Maria Braucks Calazans Rodrigues, biógrafa dos dois (“Jararaca e Ratinho – a famosa dupla caipira”, FUNARTE/Instituto Nacional de Música, 1983):

literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
“Por motivos políticos, Jararaca foi demitido da Rádio Nacional, em 1964 [...] Ele era realmente comunista de corpo e alma, amigo de Luís Carlos Prestes e costumavam mesmo chegar juntos, no mesmo carro, aos comícios de que participavam pelo PCB. Nessas ocasiões, Jararaca costumava discursar e também fazer shows, deixando muitas vezes seus compromissos profissionais pelos políticos”,

Sobrevivendo, a partir daí, de escassos shows e de pequenas excursões que, também, começaram a rarear, a última apresentação da dupla Jararaca e Ratinho se deu, em setembro de 1972, em uma penitenciária do Rio de Janeiro, quinze dias antes do falecimento de Ratinho. Jararaca morreu cinco anos depois.

A vinculação de Ratinho com Jararaca, formando uma das mais populares duplas caipiras da história da música popular do Brasil, fez com que o Ratinho instrumentista e o Ratinho compositor ficassem obscurecidos. Uma situação que não correspondia à realidade, conforme a abalizada opinião de Henrique Cazes, excepcional cavaquinista e estudioso do choro, no seu livro “Choro: do quintal ao Municipal” (Editora 34, 1999):

“Ratinho mostrava que era talentoso como instrumentista e compositor. Paraibano de Itabaiana, nascido em 1896, embora não tenha sido o primeiro a solar Choros com o sax soprano, Ratinho foi o principal divulgador desse instrumento em nossa música popular”.

Órfão de mãe com um ano de idade, Ratinho foi criado pelos padrinhos. Sua aptidão para a música surgiu quando criança. Ingressou muito jovem na Euterpe Itabaianense (a banda de música da cidade onde nasceu) tocando vários instrumentos de sopro.
literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
Em 1914, foi morar no Recife e, no ano seguinte, já fazia parte da Orquestra Sinfônica da capital pernambucana. Apresentava-se, também em um cinema local como componente de uma orquestra sob a regência do maestro Nelson Ferreira. Em 1919, conheceu Jararaca e se juntou ao grupo de músicos que criariam os Turunas Pernambucanos.

Paralelamente ao seu trabalho em dupla com Jararaca, Ratinho desenvolveu a sua carreira como compositor e instrumentista. Em agosto de 1930, ele gravou o seu primeiro disco individual, com duas composições de sua autoria, “Guriatã de Coqueiro” e o famoso choro Saxofone por que choras?.

Os choros Pinicadinho (que teve uma regravação feita pelo dublê de jornalista e músico Luís Nassif), Brincando contigo, Minha tristeza , Lamentos e as valsas Vera e Dolorosa saudade são exemplos da grande arte do paraibano Severino Rangel, o Ratinho.


A importância de Ratinho como músico e compositor pode ser avaliada por depoimentos de três dos maiores instrumentistas brasileiros em todos os tempos, Altamiro Carrilho, Abel Ferreira e Paulo Moura:

Altamiro Carrilho (1924—2012)
“Ratinho, naquele tipo de instrumento, pode-se dizer que foi o melhor do Brasil: criativo, cheio de nuances, original, o melhor estilista. Com música brasileira ninguém tocou melhor que ele no saxofone soprano. Foi um mestre. Um gênio. Não foi superado até hoje com seus efeitos e sons estranhos. É como eu o vejo”.


literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
Abel Ferreira (1915—1980)
“Como instrumentista, Ratinho foi habilíssimo no saxofone soprano, embora executasse muito bem o saxofone alto. Conseguia a perfeição nas passagens de agilidade e no stacatto. Era um artista inato, totalmente liberto da partitura musical. Como compositor é maravilhoso, principalmente em ‘Saxofone, por que choras?, música que sempre incluo nos meus shows”


literatura paraibana musica brasileira choro ratinho jararaca turunas joao pernambuco
Paulo Moura (1932—2010)
“[...] o Ratinho, porque é compositor de música instrumental, tem dificuldade nesta terra, porque as pessoas estão ligadas à poesia mais do que à música [...] Espero que num futuro um compositor como Ratinho seja não homenageado, mas executado [...] Toquei choros com Ratinho. Uma vez, quando acabei de tocar um choro, fiquei admirado quando ele disse: Você sabia que esse choro era meu?”.

Da mesma forma que Ratinho perguntou, despretensiosamente, a Paulo Moura: Você sabia que esse choro era meu? ” poderia se imaginar uma cena em que o grande músico paraibano perguntaria à maioria das pessoas que já ouviram o magistral e imortal choro “Saxofone, por que choras?”:

— Você sabia que esse choro era meu?



COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Mais um relevante serviço prestado à nossa memória cultural e musical. Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  2. É isto mesmo, Flávio.
    As suas reminiscências, notadamente quando passam pelas nossas origens e tesouros musicais da terra nos mostram a riqueza cultural que se joga fora, como, infelizmente temos visto.
    Ainda tive o privilégio de ouvir muitos desses "virtuoses" - permita-me o tratamento, desde a Rádio Tabajara até a Rádio Nacional.
    No caso de Ratinho, impressionava o fôlego com que ele ilustrava algumas de suas músicas, sustentando uma nota por um período que, para nós mais novos, causava até preocupação.
    Até hoje, seja qual for o intérprete, o choro "Saxofone, por que choras" é um clássico, embora sejamos levados a ter maiores atenções com a sua execução pelo Luizinho Calixto e seus "7 baixos".
    Antológica...

    ResponderExcluir
  3. Parabéns novamente pelo resgate de nossa memória musical. Adoro dançar ao som de Saxofone, por quê choras?

    ResponderExcluir
  4. muito bom e tambem triste que muitas pessoas nao procurem conhecer o COMPOSITOR das músicas, preocupando-se apenas com o interprete. E morrem no esquecimento. Grande Ratinho, grande Jararaca.
    por Chico Souza

    ResponderExcluir
  5. Os artigos de Flávio Ramalho de Brito nesses tempos sombrios nos fazem manter a esperança nesse país que parece perdido... não é possível que um país que já produziu cultura a esse nível (embor aesqueça disso) sucumba ao obscurantismo! Grande resgate desse imenso memorialista da nossa cultura!

    ResponderExcluir
  6. Bravo, Flávio Brito! Mais um resgate da história esquecida da música do Brasil. A Paraíba agradece.

    ResponderExcluir

leia também