Frequentemente a civilização dá as mãos à barbárie e nos faz cair o queixo numa surpresa estupefata. Isso serve, positivamente, para nos...

Morrer de frio em Paris e de paulada no Rio

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Frequentemente a civilização dá as mãos à barbárie e nos faz cair o queixo numa surpresa estupefata. Isso serve, positivamente, para nos advertir, pretensos civilizados, de que a barbárie pode nos aparecer de repente em qualquer esquina, sem qualquer aviso, já que anda solta pelo mundo, sem compromisso com nada e com ninguém, só com o não raro absurdo da existência. Uma dessas situações inacreditáveis aconteceu há poucos dias, em pleno 2022 e em plena Paris.

Aos 85 anos, o fotógrafo René Robert sofreu uma queda próximo à Praça da República, na região central da capital francesa, aonde tinha ido passear, e ficou nove horas deitado na calçada sem que ninguém o socorresse, apesar do frio intenso.
Edouard Cortes
Resultado: morreu de hipotermia à vista de todos numa das cidades mais civilizadas do planeta. De sobretudo, luvas e cachecol, a barbárie abraçou-se com a civilidade e fez mais uma vítima inocente. O que isso quer nos dizer, pergunto eu daqui do nosso discutível conforto tropical, onde a temperatura tem, com frequência, ultrapassado bárbaros quarenta graus.

E para que não confundamos as coisas nem os climas, registro logo o recentíssimo linchamento, num quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, do jovem congolês (24 anos) Moise Mugenyi Kabagambe. Ele foi espancado até a morte, com pedaços de pau, por quase quinze minutos, por várias pessoas, simplesmente por ter ido cobrar ao gerente do quiosque, onde trabalhava como ajudante de cozinha, o pagamento atrasado de duas diárias. Neste caso, temos a tradicional barbárie brasileira, de bermuda e camiseta, abraçando-se consigo mesma, já que a civilização nunca deu as caras por aqui. E o que isso quer nos dizer também?

Confesso, não sem pesar, que já não me surpreendo tanto com o linchamento brasileiro. Quase virou rotina num país em que a vida humana nada vale. Do mesmo modo que já não me espanto com o assassinato de cidadãos negros por policiais brancos nos EUA. Também é rotina, por mais absurdo que pareça. E o pior é que nada disso é novidade.
Edouard Cortes
O mundo foi sempre assim, gratuitamente violento, pura selva hobbesiana. A diferença é que agora a gente sabe de tudo imediatamente, por todos os meios possíveis, de tal modo que ficamos impressionados com o volume de tragédias diárias. Mas elas nunca deixaram de ocorrer em abundância.

Voltemos porém a Paris e ao idoso na calçada a morrer lentamente de frio. Como pode, ficamos a indagar. As pessoas passando ao lado do homem caído, por nove horas seguidas, e ninguém, absolutamente ninguém parar, nem que fosse para perguntar se ele precisava de alguma coisa, de uma pequena ajuda para levantar-se. A indiferença tem limites. E no entanto ...

Tudo isso foi em Paris, mas poderia ter sido em Londres, em Genebra ou em Nova York. E também em São Paulo ou em Bagdá. O lugar, na verdade, não importa, claro. Mas, confesso, que o fato de ter sido em Paris de certa forma tocou-me. Provavelmente estou sendo ingênuo ou romântico, mas a realidade é que, em princípio, achava que essas coisas não podiam acontecer na velha Lutécia tão encantadora. Veja só que tolice.

Sabemos que, por outro lado, existem atos de bondade e compaixão que podem, quem sabe, redimir a humanidade. Há pessoas boas no mundo que talvez compensem, em alguma medida, a maldade dos lobos e das feras. O velho duelo entre Rousseau e Hobbes não tem fim.

O certo é que o bicho-homem anda fazendo turismo espacial, mas ainda mantendo um pé (ou uma pata) nas cavernas.

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  1. "O certo é que o bicho-homem anda fazendo turismo espacial, mas ainda mantendo um pé (ou uma pata) nas cavernas." E-xa-ta-men-te. Desembarque em Marte marcado para a próxima década, enquanto aqui há tanta miséria e fome para ser eliminada. Isso é bem nosso. Leonardo pintando a Ceia e criando armas letais para vender a seus patrocinadores. Doctor Jekyll, Mr. Hyde. Hitler & Chaplin."Se cada um recebesse o que merece, quem escaparia da chibata?" - Hamlet pergunta.

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