Acordar cedo, comer dois ovos e tomar um café frio, em seguida, escrever até a hora do almoço. Esta era basicamente a rotina de Victor Hugo, durante o seu exílio em Guernesey ou Guernsey, na casa – Hauteville House – que ele comprara, na ilha anglo-normanda. Depois de três anos ajeitando-a para abrigar a família, ele reservara para si o terceiro andar, muito simples, sem o conforto e os detalhes de decoração do restante do imóvel.
Victor Hugo no mirante da Hauteville House ▪ Guernesey, 1878 ▪ Fonte: Paris Musées
A ilha de Guernesey foi onde Victor Hugo passou a maior parte de seu exílio. Após o golpe de Luís Bonaparte, em 1851, que ele apoiara para presidente, no advento da Segunda República francesa, em 1848, o escritor, deputado por Paris, encabeça a resistência contra o arbítrio, que terminaria na restauração do império, tornando Luís Bonaparte, Napoleão III. Admirador de Napoleão I, Hugo, apesar das boas relações com Luís Bonaparte, não suporta a supressão das liberdades republicanas e se põe contra
Victor Hugo em seu estúdio ▪ Guernesey, 1878 ▪ Fonte: Paris Musées
Libertário e humanista, Hugo não pode compactuar com um regime de exceção. Na sua passagem como deputado constituinte eleito em 1848, a sua presença e sua combatividade na Assembleia dizem muito do seu caráter: votou contra a pena de morte (já havia escrito antes, dois livros condenando a prática, O último dia de um condenado, em 1829, e Claude Gueux, em 1834), tomou posição cerrada a favor da liberdade de expressão e de imprensa, e acreditava que, com ações, mais do que com palavras, se podia acabar com a miséria. A sua atuação mais marcante, contudo, foram os seus discursos sobre a educação pública e laica sustentada pelo Estado. Um desses pronunciamentos, feitos em 10 de novembro de 1848, tornou-se o mais famoso de todos, com o escritor advertindo para o perigo da ignorância (o título original era Question des encouragements aux lettres et aux arts, mas ficou conhecido como Du péril de l'ignorance). Sendo a ignorância, no seu entendimento, pior do que a miséria, seria necessário “multiplicar as escolas, as cátedras, as bibliotecas, os museus, os teatros, as livrarias” (Du péril de l'ignorance, préface de Marie-Noël Rio, 4. éd. Paris: Les Éditions du Sonneur, 2010, p. 31, em tradução nossa). Não há como acabar com a miséria, sem atacar a ignorância. Em lugar de restrição de investimentos para a educação, é preciso sempre ampliá-los (p. 26).
Victor-Marie Hugo (Besançon, 26.02.1802 — Paris, 22.05.1885)
Neste primeiro momento, gostaríamos de falar de O Arquipélago da Mancha (Les travailleurs de la mer; texte établi, présenté e annoté par Yves Gohin. Paris: Gallimard, 1975), depois, em outra ocasião, nos reportaremos ao romance.
Ilustração de François Chifflart para "Les travailleurs de la mer - L'archipel de la Manche" (Victor Hugo), ed. Albin Michel, 1900s
Victor Hugo se mostra um homem de princípios. Não obstante o apoio à eleição de Luís Bonaparte a presidente da República, ele abre mão do convite feito pelo escritor Lamartine, um dos cabeças do movimento romântico francês, para ser ministro da instrução pública. Prefere continuar como deputado. Na Assembleia, ele tem voz e pode clamar, como clamou, pelos investimentos na educação e na cultura,
Ilustração de Emile Baynard para o panfleto "Napoleão, o pequeno" (Victor Hugo), ed. Hugues, 1879 ▪ Fonte: Paris Musées
“É a favor da ignorância que certas doutrinas fatais passam do espírito impiedoso dos teóricos para o cérebro confuso das multidões. O comunismo não é senão uma forma de ignorância. No dia em que a ignorância desaparecer, os sofismas se esvairão”
Du péril de l'ignorance, p. 27
Victor Hugo, em 1861 (Bruxelas) ▪ Fotografia: Gaspard Tournachon ▪ Fonte: Maison de Victor Hugo / Hauteville House ▪ Paris Musées
“A Assembleia é quase inteiramente composta de homens que, não sabendo falar, não sabem escutar. Eles não sabem o que dizer e eles não sabem se calar. O que fazer? Eles fazem barulho. Sente-se que esta assembleia é de ontem e que ela não tem amanhã. Ela acaba de nascer e ela vai morrer. Daí um bizarro amálgama dos defeitos da infância e das misérias da decrepitude. Ela é pueril e senil. Nunca altura, nunca profundidade, mesmo na cólera. Não há tempestades, apenas saraivas.
Eu contemplo com frequência, meditando, a imensidão da sala e a pequenez da Assembleia”
Eu contemplo com frequência, meditando, a imensidão da sala e a pequenez da Assembleia”
Du péril de l'ignorance, p. 27
Difícil não perceber aí a atualidade de Victor Hugo, sobre a platitude e a falta de princípios dos políticos, mais preocupados com um tosco e degradante fisiologismo, que em lugar de envergonhá-los, só nos arruína. Sempre tendo combatido a favor da liberdade e da justiça, Hugo retoma, no exílio, esta necessidade premente de independência e de liberdade que o homem deve colocar em primeiro plano, ainda que haja perdas pessoais, na defesa do que é o certo, independente de quem o faça.
Ilustração de François Chifflart para "Les travailleurs de la mer - L'archipel de la Manche" (Victor Hugo), ed. Albin Michel, 1900s
Vemos nas páginas de O arquipélago da Mancha, a retomada dessa posição sobre o que é certo, que começa com a defesa intransigente da liberdade. No remate do Capítulo XVIII – Compatibilidade de extremos – Victor Hugo exalta a liberdade reinante nos arquipélagos (“De resto, todos os arquipélagos são países livres. Misterioso trabalho do mar e do vento.”), proveniente de um duplo profundo tremor de independência, por sua condição de ilhas anglo-normandas: os efeitos da revolução inglesa, no século XVII, e os da revolução francesa, no século XIX (p. 605, em tradução nossa).
A liberdade deve ser, antes de tudo, plena (“Chegue, viva, exista”), que dá o direito a cada um de ter ou não um Deus e poder professá-lo à sua maneira; a liberdade de ter ou não uma bandeira, não importa a cor, e poder fixá-la como uma árvore (Arborez-le), na rua; o direito de o cidadão poder denunciar o governo e de fazer associações públicas, tantas quantas ele desejar, sem nenhum limite (Nulle limite); mais ainda, a liberdade de reunir o povo em assembleia, sobretudo em praça pública, e atacar o poder e panfletar. O essencial na liberdade é que o povo saiba que a sua função é pensar, falar escrever, publicar, arengar (pensez, parlez, écrivez, imprimez, haranguez, c'est votre affaire – Atente-se para o detalhe do uso de arengar,
Ilustração de François Chifflart para "Les travailleurs de la mer - L'archipel de la Manche" (Victor Hugo), ed. Albin Michel, 1900s
A liberdade, quando total, é “espetáculo grandioso”, que permite discutir “a coisa julgada” e, do mesmo modo que se pode passar um sermão num padre, pode-se julgar o juiz. Se a decisão judiciária é iníqua, “o erro judiciário possível não tem direito, coisa espantosa, a nenhum respeito”, sendo possível a contestação da justiça humana, como se contesta “a revelação celeste”. A liberdade concede-nos uma soberania, que não se sente mais, por tornar o direito respirável: “ele é incolor, imperceptível e necessário como o ar”. Quando assim, compreendemos a liberdade e o direito que a garante, vemos erigir-se uma casa modesta, mas “plena desta luz”, que é a liberdade (p. 604).
Não podia ser diferente, para um homem que plantou, na Place des Vosges, a Árvore da liberdade e deu vivas à república universal. Victor Hugo é atual, como podemos constatar, sempre fiel ao poder que emana do povo e de que tantos têm medo (L'Histoire; spécial – Victor Hugo, portrait d’un génie, nº 261, janvier 2002, p. 35, tradução nossa):
“Eu não compreendo que se tenha medo do povo soberano; o povo somos nós todos; é ter medo de si mesmo.”
Victor Hugo, em 1879 (Londres) ▪ Fotografia: Stanisław Ostroróg ▪ Fonte: Paris Musées