Quando recebi a notícia, no primeiro momento, nem cheguei a sentir tanto. Um vago incômodo, certa compaixão, admito. Mas, depois, quand...

A verdade sobre os textos

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Quando recebi a notícia, no primeiro momento, nem cheguei a sentir tanto. Um vago incômodo, certa compaixão, admito. Mas, depois, quando, aos poucos, comecei, até involuntariamente, recuperar a memória daqueles tempos de nossa convivência juvenil, então comecei a me sentir realmente muito chocado.

Tristeza da falta que faz um filósofo e, especialmente, um amigo. Bacurim tinha morrido. E ele era o filósofo de nossa turma de secundaristas. Era nossa referência intelectual. Bacurim, que foi batizado de Bakunin da Silva, como queria o seu pai,
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o sapateiro anarquista Anacleto da Silva. Mas, em sala de aula, sob a algazarra de nossa adolescência, ele nasceu Bakunin da Silva, mas virou Bacurim. Designativo que, aliás, era motivo de muita chacota em sala de aula.

E, agora, a notícia de sua morte veio de seu filho, também Bakunin. Lembro muito. Foi Bakunin que nos apresentou alguns filósofos como Platão, Aristóteles e, especialmente, um sujeito muito perturbado, Arthur Schopenhauer.

Anaximandro era, contudo, o seu principal. Anaximandro, nascido uns seis séculos antes da era cristã, podia ser compreendido como um sujeito para quem o mecanismo de se criar, desenvolver e destruir deveriam ser considerados fenômenos naturais da matéria. Foi dos primeiros sujeitos a estabelecer um código em que tudo, absolutamente tudo, tem seu início, meio e fim.

Foi ele quem primeiro propagou que a substância que deu origem a todos os seres era constituída pela união dos quatro elementos, quais sejam, terra, fogo, ar e água, princípio denominado por ele de ápeiron, que, segundo Bakunin, pode ser entendido como algo infinito, indefinível, e aquilo era fascinante para todos nós. O fato é que aquele Anaximandro apresentado por Bakunin era um singular sujeito além de seu tempo.

Para nós, adolescentes, ávidos por conhecer o mundo e, especialmente, outros assuntos menos sérios, filósofos eram uns sujeitos sisudos, estranhos e distantes, que viviam de pensar.
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Pensar o mundo e nos fazer compreendê-lo melhor, muito melhor do que tinha capacidade de alcançar. Nós tínhamos apenas vagas ideias diante da complexidade do mundo, e algumas convicções de adolescentes arrogantes.

Então, Bakunin não se tornara uma celebridade, como todos tínhamos convicção que seria. Não, ele se tornou um mero operário de jogo do bicho, era passador de jogo, cambista. E essa sua escolha, creio, me incomodava.

De qualquer forma, como se declarava sempre um subversivo, talvez não estivesse tão distante de seu ideal de labutar na contravenção, e disso tirar o seu sustento e de sua família. Mas, ainda assim, estabelecia um confronto com a proposta de vida que ele, na condição de filósofo naqueles tempos juvenis, criticava com azedume e ironia, destacando que o humano era destinado à imortalidade e não à mediocridade de uma vida sem notoriedade.

Mas, o velho Bakunin estava lá nos textos, questionando verdades incômodas, verdades inconvenientes, num tempo em que se proclamam a pós-verdade. O que me fez lembrar também uma polêmica levantada por ele, na biblioteca da escola, onde nos reuníamos para discutir ciência, física, música e filosofia, no tempo, inclusive, em que nos apresentou A República, de Platão, com certo azedume, lembrando que o filósofo "tão incensado" defendia uma república com, no máximo, uns 50 mil viventes, incluindo os escravos a que cada uma das cinco mil famílias dispunha, e pregava, pelo arrazoado de Sócrates:

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"O que causa o nascimento a uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo."

Mas, Platão diz que os poetas não devem ser aceitos na cidade, porque não têm utilidade para a cidade imaginada e poderiam até causar danos às pessoas virtuosas, induzindo-as à mentira. Nesse sentido, lembrava Bakunin, para uma plateia de perplexos, a poesia deveria ser totalmente reprovável e sem valor educativo, pelo seu caráter apenas de imitação da natureza.

Pasmos, nós ouvimos tudo e, se admirávamos Platão na dimensão da idolatria, também renegávamos sua rejeição à poesia, posto que a maioria da turma já tecia suas urdiduras poéticas, alguns em silêncio, outros em declamações nos encontros da biblioteca.

Então, Bakunin dizia que os postulados de Platão eram uma verdade questionável, vez que praticamente todas as civilizações tinham seus poetas e poemas, desde a criação da escrita, com o poema-épico mesopotâmico Gilgamesh, dos Sumérios. Criticar um sujeito como Platão era uma ousadia. Quase uma heresia. Mas, Bakunin acrescentava, como se ouvisse o que nós pensávamos em segredo: "Não devemos ter medo de criticar nem Platão!"

E, então, falava das verdades. Que, na realidade, a verdade é prerrogativa de quem está no poder. Lembrava um caso daqueles tempos, a chamada guerra da indústria de alimentos contra a manteiga e banha de porco, no pós-guerra, com a acusação que provocavam doenças coronarianas. Pesquisadores foram contratados para escrever tratados com essa "verdade". Houve, então, a satanização desses alimentos
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e, por consequência, a indústria pode popularizar a venda da margarina. Os tempos passaram, a margarina passou a dominar as gôndolas dos supermercados, mas, curiosamente, não houve redução visível das doenças do coração.

A conclusão, lembrava Bakunin, é que prevaleceu a verdade do poder econômico. Era um tipo de revelação que, para todos nós, naqueles tempos, tinha pouca reverberação.

Mas, hoje, após tanto tempo e reflexões, a lógica de Bakunin faz sentido. O tempo passou, e, certo dia, lendo Michel Foucault, creio que a Microfísica do Poder, encontrei uma declaração, indicando que a verdade está unida em uma relação circular com os sistemas de poder. Assim, quando surge uma nova teoria, devemos sempre perguntar: a quem beneficia esta versão da verdade?

Foi o filho de Bakunin que me entregou um calhamaço, com vários textos e fragmentos de uma entrevista, que era encimada com um título "Eu sou o último dos anarquis-tas". O filho me disse que fizesse o que achasse mais conveniente com os originais. Era a recomendação do pai, antes de morrer. E que, se eu decidisse publicar, que não precisava assinar com seu nome, que apenas fizesse referências à sua memória. Bem, decidi selecionar alguns deles e publicar, sem qualquer correção, tal como recebi, apenas mesclando com alguns textos de minha autoria.

— De “O princípio da diversidade e outros anarquismos - Textos pandemônicos"

Disponível na Livraria do Luiz


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