A música do Hino espírito-santense, de autoria de Arthur Napoleão, é maravilhosa, mas, infelizmente, a letra de Peçanha Povoa é um am...

Hino do Espírito Santo: uma letra desastrosa

hino espirito santo ma escrita cara de surpresa
A música do Hino espírito-santense, de autoria de Arthur Napoleão, é maravilhosa, mas, infelizmente, a letra de Peçanha Povoa é um amontoado de equívocos e bobagens linguísticas. Recordemo-la:

“Surge ao longe a estrela prometida / Que a luz sobre nós quer espalhar! / Quando ela ocultar-se no horizonte,/ Há de o Sol nossos feitos lumiar.// Nossos braços são fracos, que importa? /Temos fé, temos crença a fartar. / Supre a falta de idade e de força / Peitos nobres, valentes, sem par.”

Estribilho: “Salve o povo espirito-santense, / Herdeiro de um passado glorioso, / Somos nós a falange do presente / Em busca de um futuro esperançoso.”

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K. Subiyanto
Segunda parte: “Saudemos nossos pais e mestres, A pátria que estremece de alegria. / Na hora em que seus filhos reunidos/ Dão exemplo de amor e de harmonia.// Venham louros, coroas, venham flores,/ Ornar os troféus da mocidade./ Se as glórias do presente forem poucas/ Acenai para nós posteridade.”

Deixemos de lado as rimas pobres e a bobagem de a estrela prometida sumir (tornando-se promessa falsa), para deixar o Sol fazer-lhe as vezes. O que me interessa aqui são duas barbaridades: uma contra o bom-senso e a lógica; a outra, contra a língua. Em primeiro lugar, não existe em português o verbo lumiar. Lumiar é substantivo, variante de limiar, que significa “soleira da porta, entrada”. Os versos de Peçanha Póvoa teriam a seguinte “tradução”: “Quando a estrela ‘ocultar-se’ no horizonte, o Sol há de soleira da porta nossos feitos”, o que não tem sentido nenhum.

O leitor pode pensar que se trata do verbo alumiar, com aférese do a. A ideia é boa, mas carece de fundamento: o ritmo da marcha, que corresponde aos ictos e cesuras do “poema”, permite-nos escandir o verbo com
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A. Shvets
sinérese do hiato de “alumiar”, mantendo a vogal inicial, sem necessidade, portanto, de aférese nenhuma. Foi bobagem do “poeta” e não mais que isso.

Em segundo lugar, o “quando ela ocultar-se” é um atentado à língua, porque não se deve usar ênclise em orações subordinadas desenvolvidas e ainda menos com futuro (ocultar é, aí, futuro do subjuntivo e não infinitivo). Aceitemos que o problema da colocação do pronome seja de ordem estilística e não sintática, e que a ênclise indevida esteja lá para manter a cadência do verso, isto é, o jogo de sílabas átonas e tônicas (em função da melodia). Isso não diminui, contudo, a infelicidade da letra que diz o seguinte: “Supre a falta de idade e de força / Peitos nobres, valentes, sem par.”

Ora, o sujeito de supre é peitos nobres. O verbo deveria obrigatoriamente ir para o plural. Não cabe aí a possibilidade de uma silepse.

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Kaboom
Com um erro de concordância, com um erro de colocação e com um erro de seleção lexical (o uso de um substantivo por um verbo), a letra do Hino do Espírito Santo parece mais a do samba do crioulo doido. Isso sem falarmos na tolice de que os capixabas são “a falange do presente” na eterna “busca de um futuro esperançoso”. Um futuro que dá esperanças ou promete não interessa a ninguém. Futuro que se preza é aquele em que se poderão realizar os sonhos e as esperanças do presente. Aliás, a letra desse Hino soa mais como um Hino escolar do que como um Hino estadual. A letra diz: os “peitos nobres, valentes, suprem a falta de idade e de força”. E ainda: “Saudemos nossos pais e mestres” e “ornar o troféu da mocidade”... Adultos, velhos e profissionais que não são professores estão de fora na letra do hino...

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E. Akyurt
Uma sugestão: deveríamos adotar a letra mais bonita e mais bem-escrita de Ciro Vieira da Cunha, que chegou a ser a letra oficial de 1933 a 1947, por Decreto do Governador Bley, até que o Decreto nº 16.618, do Governador Carlos Lindenberg determinou que o Hino teria a letra de Peçanha Póvoa. Vejamos uma parte da letra preterida:

“Salve, terra feliz de ternura, /Toda cheia de luz e de amor! /É a vida em teu seio mais pura, / Tem o Sol em teu céu mais calor.// Resumiste as belezas do mundo / Neste canto sem par no Brasil!/ Tens a força de um solo fecundo,/ Tens a força de um povo viril! ////

Estribilho: Todos nós, no louvor deste canto. / Desejamos a ti glórias mil/ Para a glória do Espírito Santo / Ser a força do nosso Brasil. ///// Terra jovem – bendito agasalho / Para os homens que querem lutar. / O teu solo convida ao trabalho/ e convida o teu céu a sonhar...// Cada dia que foge, dilatas / Teu grandioso valor inda mais / No tesouro invejável das matas, / Na riqueza dos teus cafezais.”

Infelizmente, preferiu-se a letra desastrosa de Peçanha Póvoa à letra bem-feita de Ciro Vieira da Cunha. Manteve-se a mediocridade de uma letra ruim, numa tremenda injustiça à bela marcha de autoria de Arthur Napoleão.

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