Sempre afirmo que a crônica, quando sai das páginas dos jornais e se transforma em livro, modifica a percepção que se tinha de sua leitura anterior. No jornal, a crônica, por mais que não o deseje o cronista, está colada à efemeridade das folhas, que noticiam os acontecimentos diários. Ao passar para o livro, a crônica ganha um perfil de perenidade. O jornal, passada a
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sua atualidade, joga-se fora. O livro vai para a estante doméstica ou para a estante pública, nas bibliotecas. No jornal, a crônica está solitária, dividindo o espaço com outros assuntos; no livro, longe de estar solitária e segregada, ela interage com as outras crônicas, ajudando o leitor avisado a traçar o perfil da cronista ou do cronista. A força do livro é, portanto, a força da perenidade, até pelo fato de que, como disse Millôr Fernandes, livro não enguiça. E eu acrescentaria: fica de pé, por si mesmo ou recostado por outros.
Os exemplos do que disse acima são muitos, porém o mais recente livro de Maria das Graças Santiago, Viagem no tempo e outros escritos (João Pessoa, Ideia, 2025), cai como uma luva nessa nossa compreensão da transformação da crônica em matéria impressa, de certo modo, definitiva. Trata-se de um livro com volume (332 páginas) daqueles que ficam em pé. E este livro de Maria das Graças Santiago não fica em pé apenas pelo seu volume, mas pela sua qualidade. Dividido em várias partes – Memórias e devaneios; Gentes, livros e arte; Fazendo pensar; Inquietudes; Notas de viagens;
Maria das Graças Santiago, no lançamento do livro Viagem no tempo e outros escritos, na APL, João Pessoa. ▪ Fonte: Paulo Germano
Caleidoscópio e... e outros assuntos – o livro Viagem no tempo demonstra com abundância a variedade temática da crônica. Forma pertencente ao gênero da narrativa, a crônica está sempre com um pé na realidade e outro na ficção, ocupando os intervalos entre um e outro polo, e optando pela predominância de uma ou da outra, a depender do perfil do cronista ou, no caso específico, da cronista.
A memória, um dos componentes dessa forma literária, sempre se faz presente, principalmente aquelas que nos levam à infância, vistas quase sempre de maneira lírica. Adultos, tendo superado as dificuldades que tivemos nos tempos longínquos da infância, restam-nos os momentos felizes, alegres e inusitados que ficaram gravados em nosso pensamento. Em Viagem no tempo, identifiquei-me, por exemplo, com a crônica “No tempo dos fiteiros”, pelo fato de que fui, até os 14/15 anos, dono de um fiteiro, postado na calçada da Escola Técnica, onde estudava, em frente à minha casa. Vendia de tudo, inclusive revistas. Os fiteiros eram, por si só, um ponto de encontro, de conversas e de trocas de ideias, além das trocas das figurinhas. E, como diz Maria das Graças, esse acontecimento social, infelizmente, foi trocado pela solidão dos milhares de “amigos” virtuais.
Já os famosos livrinhos de Giselle Montfort, a espiã nua que abalou Paris, era uma venda proibida, pela minha idade. No máximo, vendia os livrinhos de faroeste de Miguel “Chucho” Santillana, que, a exemplo do autor de Giselle, deveria ser radicado no Brasil... E a memória, sempre caprichosa, me trouxe de volta aquele tempo de minha infância/adolescência, graças à crônica de Maria das Graças. E o efeito foi ainda maior, porque meu pai era fã desses livrinhos e eu os lia, vorazmente, tendo-o como inspiração.
O torvelinho da memória me pegou ainda com as crônicas “Festa das Neves” e “Adeus, dezembro”. Na primeira, o bulício da cidade, durante o período da Festa das Neves, era um atrativo para os olhos e a minha curiosidade de criança, a quem, numa época sem medos de roubos, assaltos e agressões, era permitido andar pela cidade, apesar da pouca idade. Foi assim que formei o meu amor por João Pessoa, a partir do conhecimento do centro, que tantas vezes palmilhei, durante as festas ou fora desse período. Maria das Graças Santiago teve a dádiva de morar na Rua Direita, atual Duque de Caxias, um dos centros nervosos da Festa da Neves, em um casarão que, em outros tempos, a teria feito vizinha do poeta Augusto dos Anjos.
Rua Direita (atual Duque de Caxias), em João Pessoa. Fonte: JP Antiga
Com relação ao mês de dezembro, a emoção que a pena de Maria das Graças me traz é ainda maior. Descubro nessa crônica que ela e seu pai nasceram no mesmo mês. Trata-se de uma descoberta emocionante, porque eu também nasci no mês de dezembro, no dia 04, dia de Santa Bárbara, dia de Iansã, que fez o meu espírito um tanto tempestuoso. Para mim, não há mês mais lindo: aniversário, verão, Natal, véspera de ano, fim de um ciclo, para reinício de outro... Evidentemente que, na visão da criança, todos esses acontecimentos se tornam maiores, mais iluminados e maravilhosos. O fato, no entanto, de ter permanecido na memória não tira o brilho desses acontecimentos, ainda que não existam como antigamente. A crônica memorialista não é apenas a lembrança que retorna,
Academia Paraibana de Letras, julho/2025: lançamento do livro Viagem no tempo e outros escritos, ▪ Acervo: Milton Marques Jr
é a sua fixação, nessa viagem temporal deliciosa. É espécie de rito, sempre comemorando o mito.
A memória, pois, me dominou, apesar de que os temas candentes de Fazendo pensar – a perseguição, que não finda, aos judeus, em “Shalom, Israel!”; a militância abortista desenfreada, em “Aborto: a agonia dos não nascidos” –; de Inquietudes – o problema crucial de necessidade de ler e de escrever, afetados profundamente pela tecnologia digital, em “Estamos emburrecendo?” –, e os temas culturais de Gentes, livros e artes – Kafka, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, José Lins, Ariano Suassuna, George Orwell... – mereçam atenção e estejam me provocando, no bom sentido, sobretudo neste momento em que vivemos, quando o normal é o uso da “novilíngua” orwelliana, para justificar o injustificável: a liberdade de expressão é ditatorial; a censura é democrática...
É a memória que nos salva, mas é ela que também nos angustia. Para alguns, melhor fora não tê-la. Homero, quando mostrou as almas no Hades, aquelas que não tinham cometido crimes contra os deuses, no Canto XI da Odisseia, descreveu-as como sombras, sem sofrimentos ou angústias, cuja memória só retornava após beberem do sangue sacrificial das vítimas esgorjadas por Ulisses. Eu prefiro ter memória e ter o discernimento de
que saber aproveitá-las é reconhecer que as boas lembranças suplantam as aflições por que passamos.
Devo ficar por aqui, limitando-me ao espaço inquestionavelmente lírico das memórias e da sua permanência, como bem traduz a capa, tela da autora, em que uma colegial, fardada, com sua saia plissada – ícone da aluna do antigo Colégio das Neves –, olhando para um relógio helicoidal, vê o tempo esfumar-se diante de si, estabelecendo o contraste e a ligação entre a menina e a mulher, que tem a consciência de que o tempo físico se esvai, mas o psíquico recusa-se a ir, fazendo-nos renascer com as lembranças nítidas ou enevoadas do que fomos e que contribuíram para o que somos.
Delimitando, portanto, a minha leitura, finalizo esclarecendo que não escrevi uma crítica ou uma análise literária sobre Viagem no tempo e outros escritos, pois isto os meus confrades Hildeberto Barbosa Filho e José Mário da Silva Branco já o fizeram com a sabida e notória competência que lhes cabe. Escrevo, com o olhar do leitor que se deleita, para agradecer a Maria das Graças Santiago, minha confreira, pelos momentos deliciosos que a leitura de seu livro tem me proporcionado.