Há amores que nem precisam ser explicitados de tanto que são sabidos por todos. Os exemplos poderiam ser muitos, mas, desta vez, fica...

O sublime torrão de João Medeiros Filho

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Há amores que nem precisam ser explicitados de tanto que são sabidos por todos. Os exemplos poderiam ser muitos, mas, desta vez, ficarei só com um: o do médico João Gonçalves de Medeiros Filho, nascido, criado e até hoje habitante nesta quatrocentona cidade de Nossa Senhora das Neves, o sublime torrão de todos nós, pessoenses. Mas o consagrado pediatra tem ido além do afeto e se dedicado a resgatar em livros aspectos e lugares da cidade relacionados às suas vivências e memórias pessoais. Vê-se que é um trabalho feito com amor – e não poderia ser diferente.

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Primeiro foi o livro sobre o antigo colégio Pio XII, de tanta relevância educacional na João Pessoa do século passado. Ali ele registrou suas lembranças de professores e colegas, tudo ilustrado com muitas fotografias, para delícia daqueles que viveram os tempos áureos do respeitado educandário da arquidiocese paraibana. O Pio XII, sabe-se, era um estabelecimento masculino, e, ao lado dos colégios religiosos para meninas e mocinhas, como o Das Neves, o Das Lourdinas e o João XXIII, dirigidos por freiras, liderava o ensino privado de qualidade na capital de então. O Pio X, misto, também tinha o seu prestígio. Diga-se, entretanto, que os educandários públicos, como o Liceu e outros mais, não ficavam atrás em excelência pedagógica. Comparando com os tempos atuais, aquela de fato foi uma “era de ouro” do ensino local.

Aluno, durante todo o ginásio, do saudoso Colégio Estadual do Roger, instalado nas antigas dependências do Seminário Arquidiocesano da Paraíba, fui vizinho do Pio XII por quatro anos. Um robusto muro de pedras seculares separava espacialmente as duas tribos, mas não impedia a cordial convivência dos estudantes em eventuais “peladas” e outros jogos. Bem próximo, o Lins de Vasconcelos contribuía com sua efervescência para o movimento juvenil que caracterizava aquela área especial da aldeia. Não fui contemporâneo de João Medeiros, mas ainda alcancei muito do que ele descreve em sua obra, podendo assim compartilhar suas justificadas saudades de tempos que foram bons.

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Agora, o autor presenteia os leitores com mais um trabalho de pesquisa e amor, desta vez tendo como tema a cidade de todos nós. João Pessoa – Meu Sublime Torrão, em bela edição da Editora Ideia, chega para encantar pessoenses da gema e de adoção com muita informação e múltiplas fotografias, constituindo-se em valioso documento para consultas ou mero deleite memorialístico. Nessa linha, ele vem juntar-se, por exemplo, a Walfredo Rodriguez e Wellington Aguiar, bem como aos contemporâneos José Octávio e Sérgio Botelho, cada qual ao seu modo estudiosos e divulgadores da história da urbe que acabou de completar respeitáveis 440 anos de existência. Mas não se pense que João Medeiros Filho pretende competir com os historiadores profissionais. Longe disso, pois sua praia (a do Cabo Branco) é outra: a de um memorialismo que, sem prejuízo do rigor das informações colhidas e ofertadas, contenta-se em ser mais literário que científico. Isto porque nos vários capítulos da obra temos verdadeira produção de cronista, condição que atende perfeitamente aos propósitos autorais e torna a leitura muito mais leve e prazerosa, como é próprio da crônica.

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Varadouro (J. Pessoa)
Acervo Petrônio Souto
Em termos geográficos, percebe-se que o autor, coerente com o seu projeto literário, manteve-se principalmente circunscrito ao Varadouro e ao Centro, espalhando-se um pouco para os lados da Rua das Trincheiras e para Tambiá, onde nasceu, viveu e trabalhou por longos anos. Faz todo sentido, já que é nesta parte da cidade que estão situados os locais, as ruas e os prédios cuja memória ele se dispôs a resgatar. Podemos supor, com base nisto, que no futuro o memorialista se volte para os bairros mais recentes da urbe, notadamente aqueles que se situam no caminho para as praias. Tudo dependerá, creio, do que ele tiver para recordar, pois a memória é o que o move e estimula. Seu desejo é evocar lembranças urbanas pessoais e coletivas e não escrever um guia turístico.

No delicado texto constante da contracapa do livro, o jornalista e advogado Petrônio Souto, companheiro de geração de João Medeiros Filho e tão apaixonado pela cidade quanto ele, refere-se ao sublime torrão como a “cidade que virou saudade”. Não poderia ter dito melhor. Poesia e verdade se juntam em sua frase, para expressar o sentimento de todos que nasceram e viveram em nossa aldeia nas últimas décadas e que hoje testemunham a transformação da pacata província numa metrópole trepidante. Mas essa saudável saudade não é morbidamente saudosista, como bem ressaltou Saulo Barreto em sua Apresentação. É antes um sentimento suave de satisfação que decorre da consciência de quem teve o inegável privilégio de viver numa cidade adorável.

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Magno Nicolau e João Medeiros Fº
Editora Ideia
Feliz de quem tem um passado feliz para lembrar. Não de uma felicidade perfeita, que não existe, mas daquela que é possível, nas circunstâncias de cada um. Pois o memorialismo que doutor João pratica é dessa espécie venturosa, humanamente venturosa, o que lhe permite recordar com prazer os dias idos. O seu livro é fruto disso tudo.

Dentre os muitos personagens evocados, é natural que tenha reservado lugar de honra para o venerado pai, de quem herdou o nome ilustre e a vocação, sem falar na bela pintura representando uma ama de leite que adornava o consultório paterno e que passou a adornar o seu. Sua vitoriosa e decente trajetória pessoal e profissional honra as tradições familiares tão bem cultivadas. Suas raízes aldeãs são profundas, justificando, pois, o entranhado sentimento telúrico que carrega. Seu reino sempre foi Tambiá. Lá estão, nas calçadas da Odon Bezerra e da Walfredo Leal, as marcas das pegadas do menino, do rapaz e do homem, a casa da infância e o consultório por tantos anos. Talvez só não exista mais o suave cheiro de jasmim que, à noite, vindo dos jardins domésticos, perfumava aquelas ruas tranquilas, onde se podia andar, sem medo, até altas horas da noite, como ele lembra.

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Praça Antônio Pessoa, Tambiá (J. Pessoa) Acervo Petrônio Souto
Que o crescimento chegasse à sua (nossa) querida aldeia era inevitável. Praias belas e tranquilas, além de uma história de mais de quatro séculos, haveriam de um dia despertar o interesse de nacionais e estrangeiros. E assim aconteceu e está acontecendo. A cidade se transforma rapidamente, se expande e se eleva, tornando-se “outra” aos olhos dos mais antigos. Quanto a isso, pouco se pode fazer, é claro, salvo, no caso das autoridades competentes, acompanhar e controlar, no bom sentido, essa expansão vertiginosa, de modo que possamos preservar a qualidade de vida que tivemos até aqui. É o que esperamos.

E quando bater a saudade daquela cidade que amamos, que o livro de João Medeiros possa atenuá-la, devolvendo-nos em palavras e fotografias o sublime torrão de todos nós.

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  1. Anônimo1/9/25 11:01

    Muitíssimo grato pela generosidade de suas palavras, que muito me emocionaram.
    Escrita perfeita, digna do novel acadêmico da APL, recentemente escolhido por unanimidade.

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  2. Anônimo1/9/25 11:13

    Obrigado, Lúcia.

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  3. Anônimo1/9/25 11:13

    Obrigado, Frutuoso.

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  4. Anônimo1/9/25 11:14

    Nada a agradecer, doutor João. Seu livro é valioso para a memória da cidade.

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  5. Anônimo1/9/25 13:02

    "O Sublime Torrão" de João Medeiros Filho, destacado no *Ambiente de Leitura Carlos Romero*, é uma obra que encanta e emociona, capturando a essência vibrante de João Pessoa com uma sensibilidade ímpar. Este livro é um verdadeiro hino à cidade, tecido com poesia, história e memórias que celebram o patrimônio material e imaterial da capital paraibana. A escrita de João Medeiros Filho transborda afeto, trazendo à tona a beleza do céu de anil, o calor sutil do sol e a riqueza cultural que pulsa em cada recanto da cidade, como evocado na canção de Genival Macedo, que inspira o título. É uma leitura que não apenas homenageia João Pessoa, mas também convida o leitor a se conectar profundamente com suas raízes, despertando orgulho e nostalgia. Uma obra indispensável para quem ama a Paraíba e aprecia a arte de contar histórias com alma e autenticidade. Klécius Leite

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  6. Anônimo1/9/25 13:04

    Obrigado, Sérgio.

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