Lentamente ela caminhava como se o coração fosse maior que o corpo. Alheada do mundo. Caída numa bússola, de agulha quebrada. Volta e meia esmagava as próprias veias. Dor, tosse, dizia “trinta e três” e nem o tango argentino poderia salvá-la. Mesmo moribunda, seguiu. Vitórias em cima de si mesma. Preferiu abdicar do individualismo; contentou-se com a individualidade. Sempre lutava pelos direitos de todos,
V. Gorbachev
contanto que não fossem obstinação e não viessem a causar ruptura em ambas as partes. A fonte de sua amargura era ser forte.
Sua voz gravitava, engravidava mediante aquele silêncio. Brincou com a cicatriz de suas evasões. Seu subterfúgio era o si-mesmo. Não queria ser mãe, pois sabia que não teria na maternidade o seio que lhe faltou.
Todos estamos numa prisão perpétua chamada morte. Quando dormimos é o momento de licença. Afundamos em horas a fio a fim de termos pequenas vidas. Semeando graças e enraizando desilusões. Nessa espraiada letargia, ficam nossos restos chamados de diário. Quem é esperançoso morre iluminado, feito vagalume. Vagalumeando com seu brilho até o último suspiro. Em chão fértil; as intermitências do sol.
A. Krivitskiy
Nessa nascença, velha viveu. Infância infame. A memória pereceu no pouco que amou. Não cumpriu o papel de mulher – parir sorrisos e choros. Expelir um tempo de esperas. A espera de um tempo feito a dois, a quatro mãos, boca, língua, membros...
Toda interioridade nivelada às vicissitudes do externo. Com medo da velhice resolveu viver entre jovens, no magistério. Preocupada com a beleza do corpo –
cedeu às academias de ginástica. Sempre mantivera as mãos quentes e os lençóis frios.
Y. Çelik
Ficando bela para si, tornava-se bela pros outros que a olhavam com veemência e isso a incomodava. Cortava o olho dos olhares. Era comum o movimento de suas pernas formadas em cruz – abri-las seria um sacrilégio: se as abrissem poderia parir um mundo. Um mundo desconhecido, o qual temia gostar.
Seus porta-retratos possuíam porte ilegal de almas. A imagem estava morta, mesmo no colorido.
Uma noite entre as palmeiras alguém veio tocar flauta no jardim. Uma sombra. Dois caminhos. Cabelos desgrenhados. Uma estrada viva com pés de curupira. Não era mula sem cabeça. Era só mula. Caiu o véu. Todos os espelhos em que havia se espelhado se quebraram – restou o seu reflexo. Nunca mais servirá a um senhor que sangra.