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As chuvas desertando no céu e deixando a plantação – um milharal de começo tão promissor – definhar pelo campo, mas voltando, intempestiva...

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As chuvas desertando no céu e deixando a plantação – um milharal de começo tão promissor – definhar pelo campo, mas voltando, intempestivas, para diluir a caieira de tijolos acabada de erguer (aproveitando uns restos de águas de um barreiro próximo), num impulso desesperado e salvacionista do prejuízo anterior –, quando finalmente pronta e apenas nos preparativos da queima para que os tijolos, vendidos de antemão, fossem finalmente entregues.

Na aldeia em rápida transformação, a oficina de ferragens chegou para personificar o primeiro profissional liberal da história – o ferrei...

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Na aldeia em rápida transformação, a oficina de ferragens chegou para personificar o primeiro profissional liberal da história – o ferreiro –, a quem, já de um bom tempo não era incomum tivesse a ausência perdoada durante jornadas periódicas de trabalho – a que estavam todos sujeitos –, mas que passava agora a ser nominalmente dispensado de quaisquer dos inúmeros e frequentes mutirões impostos pelas novas necessidades coletivas, que tinham se tornado uma imposição autoritária dentro do novo sistema de poder centralizado.

Num breve resumo até aqui: a domesticação de plantas e sementes levara a uma infinidade de outras, desde a domesticação do habitat à dos ...

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Num breve resumo até aqui: a domesticação de plantas e sementes levara a uma infinidade de outras, desde a domesticação do habitat à dos deuses, antes reclusos em penhascos e grutas de difícil acesso para evitar profanações. A domesticação em cadeia do habitat produzira a aldeia, e esta, no berçário ainda dos primeiros equipamentos da futura urbs, teve de conter aparelhos e modos de estocagem, possibilitando assim a prática do escambo entre aldeias; a benesse das trocas quebrou o isolamento entre elas, e abriu possibilidades para a diversificação da riqueza, e a nova interdependência reafirmou a necessidade de alargar uma paz desde sempre facilitada por memória vazia de guerra anterior.

Eis que retornavam então dos campos aqueles caçadores, atraídos dessa feita pelo surpreendente superávit alimentar que agricultores vinham ...

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Eis que retornavam então dos campos aqueles caçadores, atraídos dessa feita pelo surpreendente superávit alimentar que agricultores vinham conseguindo acumular. Esse excedente era em grande parte fruto da cultura do arado que, a par com a domesticação de animais pesados, provocara uma reviravolta no cultivo das plantas, e dando origem assim aos primeiros afastamentos e diferenciações no modo de vida aldeã.

O que de proveitoso acontecia ali, viu-se, de uma hora para outra transformado em mais uma acerba traição entre companheiros de viagem pla...

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O que de proveitoso acontecia ali, viu-se, de uma hora para outra transformado em mais uma acerba traição entre companheiros de viagem planetária. Uma traição tida, pra variar, como irrelevante na história, que é sempre escrita por vencedores. Para acúmulo de toxicidade, naquele momento a covardia dava-se entre consorciados do reino animal, e não entre meros indivíduos de mesma espécie, como sói acontecer. Sim, nós, os porcos, vítimas da ingratidão e impiedade humanas.

AGNOSE Para que remotos anciãos da terra a percebam A poesia nascerá intraduzível na própria língua E isto fará dela o que é:

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AGNOSE


Para que remotos anciãos da terra a percebam
A poesia nascerá intraduzível na própria língua
E isto fará dela o que é:

Nossa cegueira a respeito de uma existência de milhões de anos é tudo que precisamos para atribuir a uma grande parte do que hoje passa dia...

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Nossa cegueira a respeito de uma existência de milhões de anos é tudo que precisamos para atribuir a uma grande parte do que hoje passa diante dos nossos olhos (enquanto passamos nós diante dela), o privilégio vertical do milagroso, do divino e/ou numinoso.

Desapareceria completamente do ar e da lembrança (Não que tivesse o menor interesse em alimentá-la) Mesmo porque de antes ele viera cu...

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Desapareceria completamente do ar e da lembrança

(Não que tivesse o menor interesse em alimentá-la)

Mesmo porque de antes ele viera cumprindo à risca

Aquilo que, certamente, era o completo receituário

De quem, como ele, se soubesse chegando ao final

De velhíssima alternância entre exposição e sumiço

E houvesse apenas essa saída, de sumir de uma vez

Pirografia I Vou na areia, subindo
 Como uma onda, descendo
 E subindo. Vejo-a bem próxima:

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Pirografia


I

Vou na areia, subindo

Como uma onda, descendo

E subindo. Vejo-a bem próxima:

O novo rejúbilo soou tão avantajado quanto o outro, e obrigava Agenor a um quase esforço de resistência para não fechar os olhos, novament...



O novo rejúbilo soou tão avantajado quanto o outro, e obrigava Agenor a um quase esforço de resistência para não fechar os olhos, novamente atingido pela inconveniência inesperada, profundamente desagradável, justamente num dos momentos mais pesarosos por que teve de passar na vida.

No final da rua, outra concussão daquela. Mais forte, agora. O mais estranho nela foi a impressão de algo que irrompera deixando atrás de s...

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No final da rua, outra concussão daquela. Mais forte, agora. O mais estranho nela foi a impressão de algo que irrompera deixando atrás de si um rastro de desolação, e que fosse a expressão de um silêncio mais fundo do que o anterior patamar em que se colocava.

Em questão de segundos soaram bombas e foguetões, e se pôde ver muitos deles, subindo, apressados, riscando o céu e detonando. Inevitável a...

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Em questão de segundos soaram bombas e foguetões, e se pôde ver muitos deles, subindo, apressados, riscando o céu e detonando. Inevitável aquela faísca de engano, a impressão instantânea de que se honrava o morto.

Ele foi instruído a procurar um Teofre. Agenor lembrava-se dele, e embora sem ter maiores aproximações com o tal, sabia de seu predicado hu...

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Ele foi instruído a procurar um Teofre. Agenor lembrava-se dele, e embora sem ter maiores aproximações com o tal, sabia de seu predicado humilde. Numa volta pela rua, consultou um pequeno grupo de meninos, e um deles, de esguelha, deu uma rápida conferida na posição do sol e disse saber onde ele podia ser encontrado àquela hora. De posse do recado, saiu nas carreiras para o lugar tido em mente.

Dia inteiro cabra de deus Lacrava ferro no molde da coluna Dia findo, guardava ferramentas Em caixilho de metal, ao sair Deixava estil...

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Dia inteiro cabra de deus
Lacrava ferro no molde da coluna
Dia findo, guardava ferramentas
Em caixilho de metal, ao sair
Deixava estilhaços
Ainda por limpar ou esquecer

1 ou 2 Gregórios agregavam Todas as ilhas gregas 1 atarefado Zé Crispim Em 2 versões, rica e pobre Às vezes trocava de mão Mas luz...

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1 ou 2 Gregórios agregavam
Todas as ilhas gregas
alberto lacet matureia velhice envelhecer ze crispim ambiente de leitura carlos romero poesia paraibana
1 atarefado Zé Crispim
Em 2 versões, rica e pobre
Às vezes trocava de mão
Mas luziavia aquele único
Luzinércio

Mesmo os urubus mais antigos – Segundo Seu Axessio Pordeus, alguns chegando a viver dez, doze anos --, não tinham memória de seca daquela. ...

Alberto Lacet Ambiente de Leitura Carlos Romero

Mesmo os urubus mais antigos – Segundo Seu Axessio Pordeus, alguns chegando a viver dez, doze anos --, não tinham memória de seca daquela. Mas tinham, isso sim, começado a cair, de tão gordos. Simplesmente despencavam do alto e esborrachavam o papo no chão. Nos lajedos. Na lama esturricada da vazante.

Descartado pelo serviço público e dado como sucata, o vasto maquinário se desviaria a tempo dos encômios da ferrugem, e alcançaria sobrevid...

Alberto Lacet

Descartado pelo serviço público e dado como sucata, o vasto maquinário se desviaria a tempo dos encômios da ferrugem, e alcançaria sobrevida num último surto de catalepsia tecnológica, embora a qualidade da iluminação que o imenso e problemático gerador a diesel conseguia ainda produzir, fosse vagamente perdurar na memória dos viventes como uma estranhamente singular e, ao mesmo tempo, dispendiosa fantasmagoria do passado.

Nem poderia ser de outra forma: a luz emanante da esquálida rede de postes era de alcance muito curto, e, a rigor, não se podia dizer que iluminasse caminho de notívago, apenas o indicasse, com jeitão de farol marítimo, que, no máximo fornece ideia de distância da costa, e, com sorte, avisa de possíveis arrecifes. Sem falar no próprio, no velho gerador em si, jurássica e gigantesca fonte de assombros: uma pechincha arrebatada da justa aposentadoria pelo prefeito da pequena cidade paraibana, quando já então aquela peça rumava para descanso eterno num ferro-velho do Recife.

A monumental carcaça carregava em si, já bem falido pelo desgaste, o glorioso princípio da indução eletromagnética, obra de Faraday
Montaram-no sobre uns trilhos de sucupira lavrados à enxó, e o passar do tempo, mais a trepidação de toneladas de ferro, aos poucos o fora enterrando no solo. As duas grandes polias de borracha chegaram já com remendos, e, todo santo dia, duas fileiras de homens agarravam-se a elas e às respectivas rodas, suando na tentativa de fazer virar a máquina, e tanto esforço resultando depois naquela luz pífia, cor de abóbora, apesar de tudo recebida com gritos de júbilo, enquanto as explosões do motor seguiam baixando o estrépito inicial, reduzindo seus estampidos a pequenos espirros, com a enorme esteira começando a entrar em velocidade constante, e toda a casa de força com o chão enegrecido pelo óleo e tremendo naquela batedeira.

Ficava impossível entabular alguma conversa dentro da casa-de-força. Um comentário qualquer saía sempre numa ofegante gritaria com tsunamis verticais a percorrer bochechas. Era preciso ouvir o barulho infernal, ver aquele óleo espirrando sobre os homens que lutavam com a monstruosidade, enquanto a enorme geringonça, com um sistema próprio de ar comprimido, impelia a água de tonéis para o próprio resfriamento, e isso numa época em que a meninada inventara uma maneira de competir com o monstrengo, e também entre si, numa disputa que consistia em apostar carreira até ao primeiro poste do sistema, já fora da casa de força, e isso, antes que a própria centelha do gerador acendesse, lá, sua primeira lâmpada.

O tal poste distava uns 30 metros da usina, e os meninos, com o pé numa linha riscada no chão, tremiam de hesitação entre a precipitação e o controle, esperando o sinal de partida, pois não podiam arrancar numa correria ao soar dos primeiros estampidos da máquina pegando partida, mas, só quando, na sequência, uma luz acendesse no interior da casa de força, e esse sim, seria o sinal válido para o arranque, quando, não raro - e por incrível que pareça --, aconteceria mesmo de algum menino conseguir tocar naquele poste antes que sua lâmpada acendesse, ganhar a disputa e ter assim seu minuto de glória inesquecível.

...
Nicola Tesla
Qualquer daqueles garotos, porém, não teria jamais como suspeitar que seu prodigioso feito devera-se unicamente à dilatada distância que o gigante de ferro se encontrava das modernas conquistas da engenharia elétrica, do quanto a sombra de Nicola Tesla, “o homem que ajudou a espalhar a luz pelo mundo”, estava longe de recair efetivamente sobre a pobre malha que, apesar de tudo, representava para os habitantes do lugar uma indiscutível zona de conforto para locomoções noturnas, muito embora rarefeita e nem sequer por ruas inteiras.

A meninada, em compensação, aparentava possuir perfeita intuição sobre as deficiências do sistema ali instalado, com seu incrível mastodonte de ferro fundido, extremamente defasado, exemplar cenozoico que ali já chegara como reaproveitamento da mais primeva tecnologia, há muito suplantada, e que remontasse a Thomas Edison antes que a George Westinghouse, ex-empregado do primeiro, e por ele demitido, e por tabela, antes que a Tesla, ex-empregado dos dois outros, e por eles demitido.

Os meninos criaram aquela brincadeira em perfeita sintonia com um sistema que não possuía nenhum equipamento capaz de interferir no percurso da corrente elétrica, exceto talvez algum solitário fusível no sentido de evitar incêndios, embora contasse, no entanto, com o recurso da própria defasagem, da própria e invencível entropia no sentido oposto de paralisá-la. Programada para as duas primeiras horas da noite, a corrente elétrica caia com frequência.

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Serra de Teixeira
Não havia nenhum alternador, transformador, nem mesmo uma única chave comutadora ao longo da fiação, de modo que a energia era simplesmente posta a flutuar pelos compartimentos da rede, fisicamente presa e compartimentada. Faria uso, no entanto, de algum emoliente poder de escolha, iria até onde desse, e se nem mesmo entrava nas casas, é o tempo de se perguntar de quem era a culpa pela inexistência da outra, se da eletricidade ou das máquinas elétricas dentro delas: por aquele tempo não havia nas casas uma só máquina movida à energia elétrica. A minha aldeia era ainda bastante neolítica, como a maioria das pequenas cidades da Paraíba. Era o final dos anos 50, na então muito fria cidade serrana de Teixeira.

À beira da obsolescência, o sistema só podia contar mesmo com a feroz dedicação do encarregado geral, ‘Seu Tota‘, empenhado sempre em reduzir a enorme entropia do sistema, num eterno desespero para manter o sistema de refrigeração a contento, já que parte do óleo consumido se perdia em calor. Com o rosto quase sempre sujo de suor misturado com fumaça preta e tóxica, o motorneiro era sempre visto a corrigir desníveis do solo, alimentar a máquina, fazer o possível e o impossível para manter aquela energia circulando na rede, na hora prevista.

...
Faraday
A monumental carcaça carregava em si, já bem falido pelo desgaste, o glorioso princípio da indução eletromagnética, obra de Faraday. Fazia isso, porém, numa fase terminal de vida útil, mostrando a muito custo seus últimos lampejos, e sempre a exigir cuidados análogos aos de um paciente cuja vida se esvai entre crises de humor, depressão, etc.

Uma vez, porém, estabilizada a corrente, era possível ao observador mergulhado na penumbra, contemplar a curiosa imagem de um daqueles postes, visto isoladamente como árvore solitária numa paisagem absolutamente sem vida, a lembrar uma entristecida Sarsa Ardente, com suas uivantes lições embutidas nas cordas vocais do vento, esquecida por seu Moisés e algo acabrunhada com aquela barriga de luz voejante e amarelada em torno de si, hospedando em seu bojo uma multidão de besouros - como que presa ali - girando em órbitas sobrepostas e interpondo aos olhos do observador, centenas, milhares de solenóides, de alto a baixo, como elétrons num campo gravitacional, e alguns, inesperadamente encurtando a espiral, concentrando-se num determinado ponto e ampliando a frequência, entrando numa vertigem de velocidade cujo ápice será, ou uma colisão e a consequente baixa acumulada ao pé do poste, ou uma inacreditável saída tangencial às velocidades e movimentos anteriores, a lembrar um violino numa orquestra sinfônica, ao recuar da estridência de um solo, e após rápido flanar, voltando aos andamentos de fundo


Alberto Lacet é artista plástico e escritor

Algum vento soprará destas montanhas Dias trará de longo pavoroso sofrer Espalhando esverdeado ocluso sofrer Do enregelado deixado à pró...


Algum vento soprará destas montanhas
Dias trará de longo pavoroso sofrer
Espalhando esverdeado ocluso sofrer
Do enregelado deixado à própria sorte
Que por cáfilas cáfilas de anos
Sibilou entre penedos Irmão da névoa

Tinham chegado no dia anterior, um tanto tarde, com a tralha de filmagem. Um deles se adiantou e se anunciou ao serviço da União Europeia. ...


Tinham chegado no dia anterior, um tanto tarde, com a tralha de filmagem. Um deles se adiantou e se anunciou ao serviço da União Europeia. O funcionário ligou então para a Prefeitura do distrito de Tatrami. Depois de alguma demora, veio a recomendação para que não exigissem credencial deles e marcou-se o encontro para a manhã do dia seguinte. Mesmo local. De manhãzinha, lá estavam novamente os forasteiros (jornalistas?), para encontrarem a cena já montada.

A sessão em sala de aula irá encerrar-se com as seguintes imagens e palavras, trocadas entre a professora Natassa Kissova, branca, 47 anos, e uma turma de alunos da “Escola municipal de Kesmarok para crianças rumes”.

– Olhem aqui: os pais de vocês. Eles trabalham? - Ela joga a pergunta no ar, para os, cerca de quinze alunos, entre os sete e doze anos, aproximadamente, sentados em carteiras distribuídas do meio para o fundo da sala, de um modo aleatório que não disfarça o improviso, dando a qualquer um perceber que assim foram dispostas para que, na parte da frente, os técnicos pudessem mover-se livremente. Mas, como as crianças não respondem de pronto, um tanto tímidas e aparentemente surpresas com aquela novidade na escola, a professora refaz a pergunta:

– Respondam: o pai de algum de vocês aqui. Ele trabalha? - A professora parece bem animada naquela manhã de setembro.

Uma manhã de ar puro e claro, de sol esparso, mas que não exigira dela nenhum agasalho, de modo a poder exibir o colo alvíssimo, os também alvos e longos braços roliços nessa manhã programada desde o dia anterior para que os alunos fossem avisados a tempo de se apresentarem asseados, bem vestidos e juntos com seus familiares. Para que, dessa forma, pudessem ser vistos ainda na caminhada que leva à escola, apenas um pouco antes desta, quanto teriam então suas imagens gravadas pela câmera colocada de antemão no caminho previsível. E vindo através dele, pela aleia forrada de pedras e marginada por canteiros, nessa época sempre floridos e exuberantes, de mãos dadas com suas irmãs maiores, para que dessem uma razão de ser a bela e harmoniosa manhã cívica em que o marido de Natassa, o Sr. Diretor da Escola, um homem bom, humano e cristão como ele só, estivesse em meio a elas munido de seu violão, e com ele cantasse, desde a música eterna do folclore nacional ao último sucesso do rádio, por que não?

A frase vem a provocar risos e gargalhadas entre os alunos, e antes que cesse a descontração, outra voz se ouve dos fundos
Isto para que todos ali se sentissem felizes como eles dois, Natassa e o maridão, e demonstrassem, mais uma vez, à União Européia, ao mundo e a todos ali, que em Kesmarok os rumes estão sendo tratados como merecem seres humanos. E assim partilhassem todos da mesa farta com o excelente liptauer de sua receita particular, em fatias de pão e acompanhados de refrigerantes, do muffin de chocolate com geleia de morango que é sua especialidade. Mas isto fique bem claro, só depois da cerimônia no pátio da escola, com direito à formação da alunada, após os discursos, canções e hasteamento das bandeiras, e de tudo mais. Sem no entanto saber ela, pobre Natassa, que por um único descuido, uma infeliz falha técnica do câmera-man, as imagens ficassem perdidas, e apenas estas, as da sala de aula, fossem aproveitadas depois.

Mas antes que novo silêncio se estenda, ela aponta um aluno no meio da sala.

– Você. Seu pai trabalha?
– Trabalha - Diz ele, sorridente. Outros garotos sorriem também, outros se mostram mais cautelosos.
–  Onde, trabalha ele? – Emenda a professora.
–  Bratislava – Responde ele, baixando a cabeça ao encontro dos dois braços juntos e à frente, na carteira, como se esperando o pior.
– E o seu pai. O que faz ele lá?
–  Ele cava.
– Ele cava? Ele limpa – A professora acha por bem corrigir, afinal há uma câmara ligada.
– Ele limpa – Concorda o garoto, assentindo com a cabeça, e, ao que parece, mais satisfeito com o novo emprego do pai.
– Você quer trabalhar no quê, quando crescer? – É a nova pergunta, mas que o menino não responde de imediato.
– Vai querer cavar também? - Ela acrescenta esta nova pergunta, visivelmente contendo o riso. Os outros meninos riem-se soltos, agora.
– Não, vou limpar. – Ele diz, por fim, sorridente e submisso.

Natassa Kissova está realmente muito feliz com todos, e resolve dirigir-se mais uma vez à classe inteira:
– E vocês, o que querem ser quando crescer?

No meio dos alunos, uma menina diz que quer ser cantora.
– Excelente. Você quer cantar que tipo de música, modernas, teóricas, ou ciganas?

Mas não há tempo de responder, pois um dos meninos, bem à sua frente, ergue timidamente o braço e diz:
– Eu quero ser policial.

Natassa Kissova arregalha os olhos para este, impressionada. Aquilo parecia melhor do que ela podia esperar. Pergunta, então:

– Você sabe dizer aos seus colegas para que servem os policiais?
– Para que as pessoas não roubem. – O garoto responde, categórico.

Natassa kissova está surpresa com ele, mas não suficientemente convencida, daí a nova pergunta:

– A quem você prenderia: brancos ou rumes, ou os dois?
– Os dois. – Ele responde, depois de um pequeno suspense na sala. Havia compenetração no olhar, trazida talvez pelo inesperado peso da missão.
– Pode nos dizer o que os ciganos mais roubam?

Um novo silêncio quer agora se instalar, mas é logo quebrado por uma voz nos fundos da sala:
– Rabanetes!

A frase vem a provocar risos e gargalhadas entre os alunos, e antes que cesse a descontração, outra voz se ouve dos fundos:
– Couve-flor também!

Mais risos. À sua frente, é a vez do decidido garoto que se pretendera policial (e cuja afoiteza no expressar seu desejo, junto com a boa receptividade obtida, possivelmente o tenha deixado com a ligeira sensação de alguém já investido na farda) apontar algo mais grave:
– Madeira da floresta.

Natasa Kissova distende o corpo para trás numa gargalhada curta e inesperada, e depois para frente, e aí dá uma palmadinha nas costas da mão dele, francamente satisfeita com todos.


Alberto Lacet é artista plástico e escritor


Não tinha amigo algum, no entanto, ia ser visto, anos depois Como um dos pouquíssimos rebentos finais daquela casta condenada Que um dia ...


Não tinha amigo algum, no entanto, ia ser visto, anos depois
Como um dos pouquíssimos rebentos finais daquela casta condenada
Que um dia possuíra o mundo sem que necessário fosse
Sequer abrir seus braços

Achava que uma poesia me cruzaria os passos, quando
Atravessasse tal beco e fosse caminhando
Cabisbaixo e observado por aquela lua,
e logo minha sombra, ou algum meteoro caído
Havia de colocar em minha boca
Aquelas tantas palavras que eu
Absolutamente não as tinha

poesia albeto lacet
Nem me lembro ao certo se retornando sozinho
Com o peito frágil e exposto na noite lôbrega
Ou se apenas marca-me um intenso transcurso
Através da alta noite de ventania e presságios
mas sempre nas muitas e diferentes noites
Haverei de estar sempre retornando
Numa lembrança sem qualquer resquício
De anterior destino ou da mera
Alegria por estar de volta

Descendo os entrecortados batentes do vale
Enegrecido pelo fumo dos tempos, e imerso já
Naquela solidão a que inexplicavelmente fora proscrito
Carregando de mim, no entanto, imagem talvez medonha
De pária infante cuidadosamente envolto em manto
A um só tempo de proteção e inefável abandono

Mas certamente será desnecessário que a caudalosa
Introspecção de um rio venha a colar-se na paisagem
Ou que um panejado de asas feche o céu como num circo
Enquanto a multidão de palavras voa da alma para o texto
Para que tudo continue a soar como numa música ardente


Alberto Lacet é artista plástico e escritor