Senti-me, diante desta obra de Guarnieri, como alguém do círculo mais próximo de Picasso ao ser um dos primeiros a ver, em 1906, o Les Demoiselles d´Avignon, no qual se saca de imediato que, em meio à criação da tela, sem a mais mínima preocupação com a famosa e sempre exigida unidade, o espanhol mudara duas vezes de estilo.
A primeira, ao introduzir naquele espaço, algo como uma página do Tratado Elementar sobre a Geometria das Quatro Dimensões, de Esprit Jouffret – em cima das visões de Poincaré que tinham virado a cabeça de Einstein. A segunda, ao transformar as caras das moças nuas d´Avignon em máscaras africanas, atônito com o que acabara de ver numa exposição delas, em Paris.
Assim,
Guarnieri faz a abertura de seu livro com cores mórbidas, meticuloso estilo tipo realismo fantástico, em que cada detalhe tem enorme destaque, como quem quer que se veja tudo ao mesmo tempo, do macro ao micro e, de um fôlego, num curto período, vemos, com poesia de alta voltagem:
“um engenho de espelhos”,
“câmaras do horizonte, iluminadas”,
“minério aberto, puro, casto: flor de cálcio”,
“lágrimas na zona fronteiriça entre os alumínios do azul e a amarelidão molhada da areia fina”,
“navalhas da erosão”,
etc.
Mas eis que na página 16
“o clima declina em crise física (toda altura é esta estranha úlcera convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner)”.
Pois bem:
Turner.
E aí se dá que na página seguinte, damos com outro Guarnieri. Que se pergunta:
“... e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”
É a questão que também me faço, ante esse Guarnieri, que tem a força daquele sermão de Orson Welles no Moby Dick de John Huston.
Aí,
os envolvidos na construção do Marco vêm, fascinados,
de todos os lados,
ver a Paixão,
que chega ao vivo,
em prosa,
sem trilha de Johann Sebastian nem Miklós Rózsa,
pra ser – sem muitos porquês - o andar mil e três.
—
E eis encarregados de cordas,
enxós e enxadas,
martelos,
serrotes, marretas,
cutelos,
com cravos e cunhas,
legais testemunhas,
e Longino:
lança na mão,
a cavalo, no embalo,
a frase em hebraico, latim e grego na bolsa, junto ao pelego,
Tive algumas experiências com a palavra. Claro que escrever romances é bem diferente de escrever poemas, para os quais você puxa o freio de mão. Nos dois casos, porém, as palavras são utilizadas e, em geral, lidas em silêncio.
Aí fiz teatro, e vi atores dizendo tudo aquilo em alto e bom som, dando vida ao que eu criara. Fiz cinema e eu mesmo disse falas e vivi as que escrevera, como se as trouxesse pra outra dimensão.
Rembrandt morreu pobre, pois – como Bach – foi rotulado, no fim da vida, de ultrapassado.
Van Gogh não conseguia vender seus quadros, ... que tornaram sua cunhada — herdeira de todo o seu lote — rica.
El Greco foi preterido pela corte espanhola.
O retrato de Mona Lisa se tornou “o mais célebre quadro do mundo” quando foi roubado do Louvre e a imprensa tratou de realçar a notícia.
Leonardo da Vinci / El Greco / Van Gogh
Nos anos 50 – estudando pintura - comprei a História da Arte, de Sheldon Cheney, e dei de cara com isto:
“Tempo houve, em nossos anos mais impressionáveis, em que nos ensinaram a aceitar o 'milagre grego', a 'perfeição ateniense' como conceitos inacessíveis aos paralelos”.
Mas – acrescentou Cheney — sem perceber que fazia o mesmo com os leitores:
“nas três primeiras décadas deste nosso século XX houve um desafio ao classicismo e um afastamento dos artistas mais criadores dos objetivos em ideais gregos”.
Bom,
aí todo mundo se tornou cubista, suprematista, fovista, surrealista, inclusive brasileiros que se mandaram para Paris, como Portinari, Di Cavalcanti, Ismael Nery.
Isso me lembra que, um tempo antes, o escândalo impressionista sufocara o impulso naturalista.
Que fazer, então, se somos prisioneiros da circunstância, do universo — “como disse Ortega y Gasset”?
Fazer como Bach, El Greco e Rembrandt.
A partir dos 15 anos, de manhã e ao meio dia caminhava até o centro de Sorocaba, onde ficava a loja de eletrodomésticos Lauro Miguel & Cia, de que era datilógrafo.
Tudo começava com a descida - na ladeira em que ficava minha casa - até o riacho Supiriri, que eu margeava até a rua paralela à nossa, de onde começava a subir para a cidade.
Em 68 escrevi minha primeira peça teatral, “O Vermelho e o Branco”, a pedido do colega do BB, Ariosvaldo Coqueijo, espetáculo em que acabei fazendo – com barba por causa disso – o papel de líder estudantil. Disso veio o pedido de que fizesse algo... menor, sobre Santa Catarina de Siena, com as estudantes do Colégio das Freiras. Um dia, ao chegar lá, uma das religiosas – de que me lembraria muito ao ver a presepeira ama de Julieta no filme de Zeffirelli – me encaminhou para um pequeno auditório com um velho piano... e o que aconteceu em seguida - eu, meio como Depardieu no filme "Greencard" - virou capítulo de meu primeiro romance, “Israel Rêmora”, publicado pela Record em 75:
Eu lia uma dessas pesadas Histórias da Arte, quando tive um alívio enorme: depois de mais uma vez atravessar a Renascença Italiana – cheia de calvários, mártires, batalhas e juízos finais – entrei numa leve e clara abordagem da arte japonesa. Com isso entendi porque ela foi agente importante da grande revolução ocorrida com o Impressionismo. Imagine o frescor que os europeus da época sentiram na descoberta, por exemplo, das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, de Hokusai.
Gosto de ver antigas gravações de concertos para piano e orquestra, com Friedrich Gulda, Daniel Barenboim, Leonard Bernstein levantando-se do teclado, passando a reger a sinfônica.
Gosto de ver Chaplin, Woody Allen, Orson Welles e Clint Eastwood trabalhando em filmes de que eles mesmos escreveram os roteiros e dirigem.
O poema número 8 de meu livro “DeuS e outros quarenta PrOblEMAS” abre com isto:
Quando Barcelona está pronta,
eis o Gaudí.
Eis o Velásquez que chega, quando está pronta Madri.
Pronta, Paris tem Rodin; e Amsterdam,
o Rembrandt.
Geralmente se diz que sem a Revolução Russa não teria havido um cinema como o de Eisenstein, poesia como a de Maiakóvsky, nada como a música de Prokofiev, do mesmo modo que sem Pancho Villa e Zapata não teria existido, no México, nada parecido com aquele trio de gigantescos muralistas - Siqueiros, Orozco e Ribera.
Eu o vi abrir com “My Way” — em fabuloso solo de seu trombone – a tarde que nos concedeu, a nós poucos, happy few, band of brothers, às 17 horas daquela quinta—feira, no segundo piso da extremamente silenciosa biblioteca da UFPb, para o primeiro encontro mensal com celebridades paraibanas que eu retratara para a série Pense Grande, capas do caderno FIM DE SEMANA do jornal O Norte, de janeiro de 2000 a julho de 2001.
Aprendi, quando fazia curso de pintura, aos 15, 16 anos, que a diferença entre assistir a um filme e ver um quadro, uma foto, é que a câmera e a montagem nos levam ao que interessa numa narrativa, já uma boa pintura, uma grande escultura, um belo desenho, uma boa fotografia não prevalecem se não têm um caminho fluente para os olhos, atraídos por aquela única imagem desponível, quase sempre - como ensinava Cartier-Bresson - flagrando um momento pregnante, prenhe do que aconteceu e está para acontecer.
Quando comecei a fazer literatura, primeira metade dos anos 60, com meus vinte e poucos anos, dei com o passado remoto, nessa área, tão gigantesco quão deslumbrante: Ilíada e Odisseia, o teatro grego, a Eneida, Dante, a Bíblia, Shakespeare, o romance russo e o francês, o inglês e o americano, o alemão e o italiano - Os Sertões, Machado, Guimarães Rosa, Graciliano, Zé Lins, além de todo um mundo de poetas - de Eliot a Borges, de Fernando Pessoa a Pound, do Affonso Romano de Sant´Anna a Drummond - , e de pensadores - de Platão e Aristóteles a Marx, de Nietzsche e Schopenhauer a Teilhard de Chardin, Bergson e Sartre, de Celso Furtado ao Adam Smith, de Bertrand Russell aos grandes autores sobre Arte - como Élie Faure e Gombrich, e haja Brecht, Beckett, Voltaire, Molière, e eu ainda tinha meu expediente no Banco do Brasil, esposa e filhos.
Vejo Martha Argerich, no YouTube, executando o concerto número um para piano e orquestra, de Tchaikovsky e me lembro do amigo Kaplan (1935-2009) num trecho de minha auto b/i/o grafia:
A lua branca boiava
no meio da travessia,
no meio do São Francisco,
no antepenúltimo dia.
E Virgulino pensava
na morte que lhe chegava
e que bem clara ele via.
Maria, maravilhada,
no claro olhava outra vez
“Fon-Fon” e a “Noite Ilustrada”
que já folheava há um mês:
artistas agalegadas,
vestidas feito uma fadas,
lhe davam embriagues.
Ou, como diz Hamlet:
“Nada, em si, é bom ou mau – depende de como nos chega”
É famosa a sequência, em CASABLANCA - filme de Michael Curtiz, 1942 (em plena Segunda Grande Guerra) - , em que um grupo de militares nazistas canta no bar do Humphrey Bogart, quando Paul Henreid – com o consentimento do dono da casa – manda que a orquestra execute a Marselhesa, que é cantada de pé por todos os presentes, humilhando os invasores alemães. Já na “Abertura 1812" , composta em 1880 por Tchaikovsky, a Marselhesa representa a terrível invasão napoleônica na Rússia, que a esmaga, no final, com o hino “Deus Salve o Czar”.
Parado ante o sinal vermelho, na Epitácio, mão direita na direção, olho para o antebraço esquerdo, à luz crua do sol, e vejo a pele como um pergaminho, papiro fracionado de rugas! E a mão? Manchas que o povo chama de “flores do cemitério”.
O sinal abre, boto o carro em primeira e me lembro de que em 2015, às vésperas da viagem a Paris com Ione, para comemorarmos nossas bodas de ouro, o médico me disse que providenciasse algo a respeito de uma hérnia que acabara de descobrir em mim. “Isso pode estrangular a qualquer momento e você pode morrer por lá” .Outro médico: “Hérnia?! Isso é um músculo que se deformou com a idade.
Lá pelos anos 70, vez em quando eu aparecia na oficina de cerâmica e ateliê de pintura do Miguel dos Santos – hoje na Nossa Senhora dos Navegantes 429, na época perto da Escola Técnica, no Jaguaribe. Numa dessas, ao passar da área dos quadros para a dos fornos, vi que – acima da porta - a foto do calvo Picasso fora substituída por um retrato de Johann Sebastian Bach e sua cascateante peruca.
Vamos sair do Royal Hotel, em Londres, descer juntos a curta Bedford Way, contornar a Russell Square e entrar na pequena Montague Street, ao lado do gigantesco, magnífico Museu Britânico.
De repente, vê o que eu digo?
Não parece que entramos na ilustração de um conto de fadas, não lembra aquele sonho de Kurosawa em que o personagem penetra os quadros de Van Gogh?
Estava lendo A HISTÓRIA DA ASTRONOMIA, de Heather Couper e Nigel Henbest – ela e ele astrônomos britânicos , quando comecei a me impressionar com a forte presença feminina nessa área. Foi natural que me lembrasse de quando soube que a linda e sedutora Dalila - que tosara a poderosa cabeleira do marido, no filme SANSÃO E DALILA de Cecil B. DeMille de minha infância (1949) -, a atriz Hedy Lamarr (Viena, 1914 — Altamonte Springs, 2000) era inventora. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ela criara, com o compositor (este mundo é muito doido) George Antheil , um sistema de comunicações para as forças armadas americanas, que serviu de base para a atual telefonia celular.
Como já disse, meu primeiro poema longo - Trigal com Corvos - me custou uma década para chegar a finalista do prêmio Nestlé, e mais dois anos para que eu o publicasse e ele vencesse o prêmio João Cabral de Melo Neto, da União Brasileira de Escritores, Rio. Minha versão do Jardim das Delícias, do Bosch, me consumiu seis meses. O painel Homenagem a Shakespeare, da UFPB, nove. E - caramba, como foi longa a novela O Direito de Nascer, da Rádio Nacional, que minha mãe e minhas irmãs ouviam enquanto costuravam, quando eu era menino! Como eram demoradas as indecifráveis – e por isso místicas – missas em latim, e as novenas, trezenas (o hipnótico balanço dos turíbulos a espalhar lentos incensos nos espaços gigantescos da catedral de Sorocaba, da igreja de Santa Rita, da igreja de São Judas Tadeu) !