(Ângela Bezerra de Castro) “Perguntou a flor: o aroma acaso me sobreviverá? Perguntou a lua: alguma luz guardo depois de morrer? Mas o homem...



(Ângela Bezerra de Castro)

“Perguntou a flor: o aroma
acaso me sobreviverá?

Perguntou a lua: alguma
luz guardo depois de morrer?

Mas o homem disse: por que acabo
e fica entre vós o meu canto?"

"Esta Meditação ante um poema antigo (*) demarca, para a natureza humana, o lugar soberano que ela ocupa no universo. A imensidão, o mais intenso esplendor, nada se sobrepõe, nada se compara ao milagre da consciência; à dignidade de pensar; à transcendência do espírito; à consciência moral que escolhe como ponto de referência a infinitude do céu estrelado; à arquitetura da linguagem que estrutura o significado e a permanência do Ser.”



“Há muito se coloca a impossibilidade do limite entre a realidade e a ficção, sob a forma do questionamento repetido: se é a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida. Constatando-se muitas vezes que a realidade vivida se apresenta bem mais fantástica e surpreendente do que a imaginação.



“No desafio contra o tempo, o limite biológico impõe ao homem a condição de perdedor. Impossível alterar o ciclo estabelecido: nascer, crescer, envelhecer e morrer na certeza da expressão poética que sintetiza, pelo estranhamento da metáfora, essa tragicidade de existir para a morte.”



“O Epitácio Pessoa que está na avenida, no pedestal, no monumento, na escola, no Palácio da Justiça, na Assembleia Legislativa, na memória culta e no imaginário popular, ressurge pelas suas palavras, cada vez mais digno da homenagem infinita.”

(Excertos literários de autoria de Ângela Bezerra de Castro)

(*) Pablo Antonio Cuadra, poeta e ensaísta nicaraguense (1912 - 2002)

(Marília Arnaud) (sobre o romance “Com armas sonolentas") Há alguns anos, eu e uma amiga viajamos ao Peru com um grupo formado por Xamã...


(Marília Arnaud)

(sobre o romance “Com armas sonolentas")

Há alguns anos, eu e uma amiga viajamos ao Peru com um grupo formado por Xamãs baianos e simpatizantes do Xamanismo. Depois de alguns dias na Ilha de Amantani (Lago Titicaca), e antes de iniciarmos a trilha para Macchu Picchu, participei (minha amiga não quis me acompanhar) de um ritual xamânico. Durante toda uma noite, em torno de uma fogueira gigante, numa clareira da floresta ao pé da cordilheira, tive o que acredito ter sido a experiência mais mágica e impressionante da minha vida (e olha que eu já vivi pra caramba!).

Poderia descrever aqui o que vi, ouvi e senti durante aquela longa noite, depois de haver bebido apenas três dedinhos de ayauasca, um chá que altera a consciência psíquica de quem o ingere.

Partindo dessa experiência, foi possível reconhecer, no romance de Carola Saavedra, “Com armas sonolentas”, a presença de muitos signos xamânicos, a começar pelo título, um verso do poema “primero sueno”, da Sor Juan Inés de la Cruz. Sim, através do sono/sonho (induzido ou não), numa viagem pelo rio sem margens do inconsciente, é possível acessar “entendimentos que não passam pela razão”, iluminações do espírito, armas capazes de transformar, curar, fortalecer.

Comprei "Com armas sonolentas" há mais de um ano, mas, como não costumo furar a fila dos livros a serem lidos (e são muitos!!!), somente agora pude me deliciar com a sua leitura. E que leitura! Confesso que comecei a lê-lo no início de uma noite, e tendo sido obrigada a largá-lo por volta de uma da manhã, lamentei ter que ir trabalhar mais tarde ao invés de continuar a leitura, que só pude retomar àquela noite. É um romance instigante e surpreendente, daqueles que nos obrigam a parar para refletir, que nos ensinam sobre a vida e as pessoas, quando achamos que já sabemos tanto, particularmente sobre identidade, maternidade, herança genética e emocional, cultura indígena, estados alterados de consciência, sobre a circularidade e a infinitude do tempo e da vida (fita de Moebius).

Usando simbologias do universo ameríndio (capivara, ritual do charuto, bebida fermentada com a saliva feminina, cânticos etc.), Carola nos conta de Anna, Maiki e Avó, meninas/mulheres que no decorrer da história vão se mostrando intimamente interligadas, e que, em suas buscas e desamparos, nos conduzem por um inquietante passeio entre o mundo físico (lado de fora – primeira parte do romance) e o mundo invisível (parte de dentro – segunda parte), o real e o irreal, a lucidez e a loucura.

Uma história inquietante. Um romance extremamente bem construído.

Parabéns, Carola! Seu romance me desafia e me encoraja a seguir trilhando os caminhos da escritura.


(Chico Viana) Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões...


(Chico Viana)

Os manuais de redação dizem que escrever bem é evitar lugares-comuns. Nada compromete mais o estilo do que o uso de expressões batidas, do arroz de festa linguístico que nada acrescenta à expressão. Mas não é fácil fugir ao clichê. O leitor terá notado que acabei de usar – “arroz de festa”. E por que é tão difícil escapar dessas fórmulas?

Em parte, porque a linguagem tem um estoque limitado de imagens; ninguém pode a todo momento criar uma metáfora e, mais difícil ainda, torná-la cativa do leitor. E aqui chegamos ao outro motivo: não basta criar a expressão inusitada, é preciso fazê-la íntima de quem nos lê. Ninguém gosta do que não conhece, e o público leva tempo para se afeiçoar tanto à semântica quanto à sonoridade de uma imagem nova.

Nélson Rodrigues dizia que seu maior achado era a repetição. Fiel a isso, recheava seus textos com expressões que os leitores já sabiam de cor. Tanto nas crônicas quanto nos romances, deparamo-nos a todo momento com referências à “ricaça das narinas de cadáver”, ao “Palhares, o pulha que beijou a cunhada”, ao “Narciso às avessas, que cospe na própria imagem”, ao “sol de rachar catedrais”. São imagens criadas pelo próprio Nélson, é certo, mas que perderam a novidade de tanto ser repetidas.

Nem por isto a sua prosa é menos sedutora. Pelo contrário, lemos o pernambucano com uma espécie de prazer oposto ao que nos propicia, por exemplo, um Guimarães Rosa. Lemos para nos deparar com o mesmo, o conhecido, o quase-igual. Lemos para gozar daquele “prazer de reencontro” de que nos fala Freud.

Uma boa explicação para o sucesso dos clichês encontro na página 199 do romance “O caçador de pipas”. Vale a pena transcrever a passagem:

“Um professor de redação que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se aos clichês: ‘Tratem de evitá-lo como se evita uma praga.’ E ria da própria piada. A turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça. Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a adequação das expressões-clichês é ofuscada pela natureza da expressão enquanto clichê.”

Kaled Hosseini apresenta bem a questão. O clichê funciona porque é preciso, ou seja, exato. A precisão faz com que muitas vezes o escolhamos a despeito da sua natureza de lugar-comum. Ele ocorre não por preguiça do pensamento, ou carência vocabular, mar por naquele momento não nos ocorrer algo mais expressivo.


(Mia Couto) Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de le...


(Mia Couto)

Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.

Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?

Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.

A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.

Recordo-me de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me levava a passear por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se desmoronava mas ali estava um homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição de poesia. Uma lição de leitura do chão que todos os dias pisava. Meu pai me sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o olhar. E ali estava uma cura para uma ferida que eu não saberei nunca localizar em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.

Pois eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que despromove a prisão em possibilidade de página. Deste modo aprendendo algo que sei que nunca chegarei a saber.

Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o mar. Mas tal não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O imaginário destes povos pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de habitarem o litoral, os seus sonhos moravam longe do oceano.

Aos poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por gente que chegou recentemente à beira-mar. São agricultores-pastores que foram sendo empurrados para o litoral. A sua cultura é a da imensidão da savana interior. Em suas línguas não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno barquinho toma o nome a partir do inglês — bôte. O navio grande é chamado de xitimela xa mati (literalmente, “o comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a água”.

As armadilhas de pesca são construídas à semelhança daquelas usadas na caça. Os territórios de colecta de mariscos na praia são parcelados e sujeitos a pousio, exatamente como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que sucede no centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu assunto continua sendo a semente e
o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam pela chuva.

Nós estamos todos como esses povos que desconheciam a relação com o mar. O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é recente, e olhamos o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar nome às coisas e não sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os nossos deuses dificilmente têm moradia no atual mundo.

Mas é exatamente nesse espaço de fronteira que estamos aprendendo a ser criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de caminhos que atravessam não outras terras mas outras gentes. A poesia de Gullar deu mote a este encontro. O poeta Gullar defende que a poesia tem por missão desafiar o impossível e dizer o indizível. O que o poeta faz é mais do que dar nome às coisas. O que ele faz é converter as coisas em aparência pura. O que o poeta faz é iluminar as coisas. Como nos versos com que encerro:

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

(Bráulio Tavares) Duvido que venha um dia a existir um conceito único para definir uma grande obra literária. Os grandes livros são grandes ...


(Bráulio Tavares)

Duvido que venha um dia a existir um conceito único para definir uma grande obra literária. Os grandes livros são grandes por diferentes razões. Noutro artigo (“Os três tipos de romance”, 24.5.2003) falei que existem romances de idéias, romances de linguagem, e romances de história. São qualidades que às vezes se superpõem, mas mesmo quando isto não acontece, seria injusto negar grandeza a um livro só porque ele não nos satisfaz em uma dessas dimensões.

Escrevendo sobre a obra de Flaubert, Michael Dirda avalia os prós e os contras de cada obra do escritor, e acaba concluindo que Um Coração Singelo e Madame Bovary são seus trabalhos mais bem realizados. Deste último, ele elogia “a rapidez e a economia de narrativas”, e diz uma frase lapidar: “Se você segurar um exemplar de Madame Bovary e sacudir, não cai nada.”

É o ideal clássico da realização artística: uma obra onde tudo tem função, tudo tem propósito, tudo se justifica. Para mim, obras deste tipo correspondem a uma visão religiosa da realidade. Quando você acredita em Deus, está acreditando num princípio fundamental das coisas, que se relaciona com todas elas. Acreditar na existência de Deus é acreditar na intencionalidade do Universo (estamos aqui com uma finalidade qualquer) e em sua integridade – todas as coisas estão diretamente relacionadas com Deus: cada grão de areia, cada folha de relva.

A esta visão do Universo corresponde a visão idealizada de uma literatura que, no dizer de Jorge Luís Borges, é “um objeto artificial, que não sofre nenhuma parte injustificada”. Note-se que Borges ressalta o caráter artificial de obras assim, porque ele (um agnóstico) vê a Realidade como o contrário disto.

A afirmação acima é feita no seu prefácio para La invención de Morel, o romance de ficção científica de Adolfo Bioy Casares. Neste texto (de 1940) Borges critica os chamados romances realistas, ou psicológicos, pelo fato de, tal como a vida real, serem informes, desconjuntados, repletos de elementos gratuitos e sem propósito. Borges, que tinha temperamento classicista, pensa que a literatura poderia eventualmente alçar-se acima deste caos, e realizar o ideal dos grandes clássicos: “Clássico é esse livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos, permitindo interpretações sem fim.”

Que beleza de visão! E que pena. Porque isto, por mais belo que seja, não pode servir como receita universal para a literatura. Basta pensar nas obras que tendem para o Barroco, onde as “partes injustificadas”, as repetições, as frases gratuitas, os episódios desconjuntados, servem ao propósito final da obra. Se sacudirmos um exemplar de Ulisses, do Grande Sertão, do Dom Quixote, páginas e mais páginas irão cair, ou ser levadas pelo vento. O Barroco é excesso, é transbordamento, é um derramamento e uma celebração do intelecto e da energia vital.

Alguns têm cachorrinhos, outros têm gatinhos, eu... sou guardadora do peixinho da Laura. E ela, lá de longe, pergunta se ele continua nadan...


Alguns têm cachorrinhos, outros têm gatinhos, eu... sou guardadora do peixinho da Laura. E ela, lá de longe, pergunta se ele continua nadando.

Está sim, Laura, e a vovó toda cuidadosa, troca a água deste minúsculo balde de gelo onde improvisamos a casa do peixinho, o alimento religiosamente todas as manhãs e já reconheço sinais do seu lindo e fluido agitar quando me aproximo.

É um peixinho betta, que segundo informações, não se relaciona com outros peixes. Estamos fadados, ele e eu, a dividirmos um espaço, sem conversas, sem manifestações de apreço e diferente de outros bichos, este não late, não mia, não canta.

Coloquei no peixinho o nome de Drogo, personagem do livro “O Deserto dos Tártaros”, uma leitura que me marcou profundamente. O personagem, é um oficial italiano designado a viver em um forte no meio do deserto onde espera incansavelmente uma batalha, que nunca vem, e que ele imaginava daria significado à sua vida.

Igual ao peixinho que vive uma verdadeira solidão, onde o tempo se arrasta sem sentido, sem agir por conta própria, sem escolhas sobre os rumos que a sua vida toma, o personagem Drogo igualmente viveu.

Assim também somos nós, que ficamos eternamente presos e parados esperando que a batalha apareça e, com isto, podemos morrer de fome de ação...ou nos tornarmos peixes betta dentro de um aquário.

É irreal ficarmos à espera de que algo fantástico nos aconteça, mas, se não agirmos, tudo permanecerá igual, imóvel.

A terrível e implacável passagem do tempo nos lembra as escolhas que fizemos, se teremos força para desviarmos o destino e encarar a vida que realmente queremos viver.

Estas são circunstâncias e perguntas complexas que bailam em mim, nesta noite, enquanto observo esse peixinho azul.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

(Carlos Azevedo) O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e sua esposa Dina viveram vários anos em São Paulo, na década de trinta do sé...


(Carlos Azevedo)

O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e sua esposa Dina viveram vários anos em São Paulo, na década de trinta do século passado. Ele foi professor de Sociologia da recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Dina Lévi-Strauss trabalhava com Mário de Andrade (1893-1945), então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo.

No Brasil, o casal Lévi-Strauss comeu o pão que o diabo amassou. Suas duas expedições etnográficas (1935 e 1938) foram severamente fiscalizadas (censuradas?) pelo Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, órgão criado pelo Estado Novo. Quando Lévi-Strauss deixa o Brasil rumo à França, foi preso no Porto de Santos, acusaram-no de levar em sua bagagem coleções etnográficas.

Ainda em São Paulo, quando exercia o cargo de professor de Sociologia na USP, teve sérios problemas.

Entre outros, diziam que a etnógrafa Dina estava traindo Lévi-Strauss. Tinha um caso de Mário de Andrade. O ingênuo e bom Lévi-Strauss acreditou naquele disse-me-disse-que. Claro, ele não sabia que o nosso Mário era homossexual.

Lévi-Straus separou-se de Dina por causa de Mário de Andrade. Talvez por conta disso, o antropólogo foi bastante reticente quanto aos trabalhos de Mário. O pai de Macunaíma sentiu muito àquele silêncio crítico. Mas não disse nada, absolutamente nada. Apenas invocou o espírito de Macunaíma: “um dia, algum vanguardista há-de fazer justiça a minha obra. Quero que Lévi-Strauss seja deglutido, ouviu, Macunaíma?

Anos depois, Caetano fez justiça a Mário. “Cantou a mais extraordinária e violenta crítica a Lévi-Strauss - a canção O Estrangeiro”. E conclui Massiano Canevacci, em Sincrétika -Explorações Etnográficas sobre Artes Contemporâneas (2016): “Lévi-Strauss foi deglutido pela música poético-sincrética de Caetano Veloso”.

(Para Jéssica Queiroz e Rupi Kaur)


Volta o Laureano a pedir ajuda. Quanto mais combate mais tem a combater. A luta não tem sido inglória, mas há de ser tenaz, cada vez mais ...



Volta o Laureano a pedir ajuda. Quanto mais combate mais tem a combater. A luta não tem sido inglória, mas há de ser tenaz, cada vez mais exigente em apoio e rigor de gestão. Faz parte ou está na gênese de uma entidade que luta quase contra o impossível, que é lutar, a serviço de uma clientela pobre, contra o câncer.

Por felicidade existe o SUS, que cobre 60 por cento da despesa, ficando o restante à mercê das emendas da representação federal e das doações.

A forma como surgiu o Laureano em procissões por seu mártir e a sua causa já nos predispõe – povo, sociedade e instituições – ao dever da solidariedade. Não tem sido outro o destino do hospital em seus quase sessenta anos. E não vai ser agora, numa Paraíba bem melhor, que Carneiro Arnaud, contemporâneo da fundação, vai entregar as chaves do hospital – a quem, meu Deus? Ao Estado, à União, aos municípios?

O tempo mostrou que o Laureano só pode pertencer ao Laureano. A uma gestão especializada de dedicação exclusiva, acreditada em todas as áreas, livre da inconstância política. Ainda que no esforço e apoio à ideia de criação do hospital conste o registro histórico das lideranças de uma facção, o PSD de Janduhy e Rui Carneiro.

Carneiro Arnaud, sucessor político dos fundadores, soube convocar valores como Batista Ramos, João Batista Simões, Severino Ramos (Raminho), que se tornaram escudeiros da manutenção e crescimento do hospital. Ao lado de Malaquias Batista Filho, editorialista de A União, acompanhei essa verdadeira conquista do povo, clamada por ele, desde a pedra fundamental.

Em 1964, bem de perto, internado no hospital vizinho, não perdi de vista o seu crescimento, desde o primeiro pavilhão. Com a convocação de Simões, bem-sucedido em seu consultório, para a direção do hospital, a gestão hospitalar só fez acreditar-se e crescer. Em leitos, em equipamento, em demanda, creditando-se cada vez mais à solidariedade das instituições e do governo. Ao primeiro grito de socorro para a substituição do acelerador linear primitivo pude ver a pronta e efetiva reação do governador Burity. Um melhoramento atrás do outro, demorando às vezes, mas chegando sempre.

Desta vez não deve ser diferente, mesmo sem mais a devotada dedicação de um Batista Ramos, já falecido, ou de um João Batista Simões, de um Raminho, afastados depois de uma vida inteira dedicada à causa.

Que cheguem outros para sucedê-los!

(Sérgio de Castro Pinto) sem fórmula não piso a embreagem, piso a paisagem e a ponho em primeira, segunda, terceira e quarta de segunda a se...


(Sérgio de Castro Pinto)

sem fórmula

não piso a embreagem,
piso a paisagem
e a ponho em primeira,
segunda, terceira e quarta
de segunda a sexta.

(às vezes dou-lhe ré,
mas ela sempre me escapa).

aos sábados e domingos
deixo-me ficar em ponto morto
diante dessas fotos já sem cor:

paisagens vistas de um retrovisor?


os retratos dos avós

as gravatas enforcam
as palavras dos avós
e se mais tento o diálogo
mais se apertam os nós
dos avós que se enforcam
de cabeça para baixo
presos aos seus silêncios
cientes dos seus recatos
de que não podem falar
sobre o que foi viajado
e da distância que há
entre o neto e seus retratos


burocrata

um jeito botânico
de quem cultiva folhas
de papel carbono.

de quem as enxerta
nos gestos e na fala.

de quem arvora
no caule do silêncio
de quem cala,

uma primavera burocrática.


quase em braille

míope, extravio
viagens
em valises

e a cidade tateio
quase em braille.

míope, não sei
em que lentes

deixei esquecidas
as antigas paisagens.

(poemas de "O Cristal dos Verões")

(Dandara Costa - Jornal A União) 1. Em que medida sua trajetória pessoal contribuiu para sua escrita? A trajetória pessoal sempre se reflete...


(Dandara Costa - Jornal A União)

1. Em que medida sua trajetória pessoal contribuiu para sua escrita?

A trajetória pessoal sempre se reflete, decisivamente, nas realizações dos indivíduos. Comigo não deveria ser diferente. Se recomponho minha história de vida, em todas as etapas posso identificar meu modo de escrever em gestação.

Desde a infância, a palavra me conquistou. Primeiro, através dos Folhetos de feira. Neles aprendi a ler. E, muito cedo, recebi Rachel de Queiroz como ídolo, por influência de minha avó. Recitar poemas e colecionar discursos foram atividades preferidas em minha adolescência e juventude. E, até hoje, são formas de expressão que admiro demais. Em minha vida de estudante os mestres sempre se tornaram modelos para mim, com destaque para os escritores. Depois veio a opção pelo magistério e a paixão pelo ensino da língua e da literatura. O fato de eleger o texto como elemento fundamental de minhas aulas foi o passo decisivo que me conduziu ao exercício da crítica literária. Penso que no meu trabalho é possível identificar um compromisso didático que pressupõe a análise e a clareza de uma argumentação lógica, dedutiva.

2 - Como professora, onde você vê o maior erro da educação no Brasil?

O maior é o que origina todos os outros. Um erro intencional. A demagogia com que é tratada a Educação pelos governantes de todos os níveis e de todos os partidos. Citada como prioridade em qualquer palanque, mas sem projeto verdadeiro, o que se tem na prática é a mais absoluta falta de compromisso com os objetivos da Educação. Escolas, que são estruturas administrativas complexas, entregues a dirigentes despreparados para este fim, conforme o apadrinhamento político. O magistério não se configura como uma carreira. Sem quadro permanente e com salários aviltantes é a concretização do descaso com a mais importante política pública a ser desenvolvida pelo Estado.

3 - O atual governo tenta passar a mensagem de que as universidades federais servem apenas para criar militantes da esquerda. O que você acha das universidades públicas?

Toda generalização e todo reducionismo se fundamentam em equívocos e induzem ao erro. Para qualquer povo a Universidade Pública é um patrimônio que tem como lastro o saber. Um bem que quanto mais dividido mais se fortalece. Saber que liberta o homem porque o transforma e faz crescer na medida de suas potencialidades.

É próprio da Universidade ser plural, integrar em convivência os saberes. Pois é no diálogo que se qualifica a aprendizagem. Somente assim a Universidade propicia o desenvolvimento do nível crítico, que pressupõe a análise e a avaliação. Um patamar que se faz busca permanente na construção do saber. Com esse perfil, a Universidade não se permite engessar por qualquer ideologia.

Limitar-se a formar militantes de esquerda, de direita ou de centro seria a negação de sua natureza, de sua razão de ser. Inserindo-se no contexto de uma realidade social mais ampla, ela sempre viverá as mesmas crises desse contexto. Mas sem perder de vista seu compromisso ético com a Educação e com os valores daí decorrentes. Somente assim, poderá favorecer o desenvolvimento de pessoas livres, sábias e conscientes, capazes de contribuir, positivamente, na construção de um mundo melhor.

4 - Na sua opinião, qual tendência literária vai ser predominante no século XXI? Por quê?

Não tenho competência para fazer essa previsão. Faltam mais de oito décadas para o término deste século. Imagine essa pergunta feita em 1919. Nem os modernistas de 22 ou os regionalistas de 30 teriam como antever os desdobramentos da literatura no século passado. Poderiam imaginar que estaria sendo gestada a genialidade de Guimarães Rosa? A resistência convicta de Ariano Suassuna? Arrisco dizer que não haverá uma tendência predominante. Mas movimentos diferenciados que, complementando-se, irão delinear e caracterizar o perfil deste século.


Há quarenta anos, quando Nathanael Aves abriu as portas de sua biblioteca ao meu acolhimento, ali conheci Gonzaga Rodrigues. Este mesmo Go...



Há quarenta anos, quando Nathanael Aves abriu as portas de sua biblioteca ao meu acolhimento, ali conheci Gonzaga Rodrigues. Este mesmo Gonzaga que não me deixou órfão quando Nathanael teve a porteira de sua vida fechada.

As quatro décadas têm sido um período de aprendizado e confidências, pessoais e literárias. Desde a aproximação aos livros, na alvorada da vida, somente escutando e aprendendo, recolhi o que o espírito permitia como iluminativo e trato afetuoso.

O lançamento do livro “Notas do meu lugar”, em 1978, foi canto mavioso que ele entoou por mim, filho do mesmo barro e habitante das paisagens onde o orvalho da aurora com dourados raios nos asperge todos os dias do ano.

Igual contentamento foi quando publicou em 2003 o “Café Alvear”, agora relançado em segunda edição, prêmio e consolo aos leitores que ainda não desfrutaram do passeio exótico pela cidade que proporciona, desde o tempo quando ainda o melão de são caetano que infestava os quintais, com a paisagem bucólica onde repousavam os olhares de antigos índios e senhores das terras.

Desde sua estreia como cronista, em maio de 1954, se constituiu no maior representante deste gênero literário na Paraíba, sendo apenas daqui porque não quis ser do Brasil.

Suas crônicas atiçam o prazer da leitura, seja na pressa do jornal ou em livro, como estas de agora, também nos comovem.

Nestes anos de leitura e aprendizado, percebi que os caminhos da crônica são muitos, que às vezes nem sabemos para onde nos levam.

A crônica brota instantânea dentro de nós. Jorra de qualquer coisa em nosso redor. Pode surgir de uma palavra que se escutou ou de algo que germina silenciosamente enquanto nos deixamos flutuar o pensamento.

Muitas vezes pode sair de uma leitura, algo observado na rua, uma flor que desabrocha no jardim de casa. A cidade e a terra sendo seu espaço simbólico para os sonhos.

A professora Ângela Bezerra de Castro, cuja amizade eu ganhei como prêmio, entende que a crônica é uma forma sublime de literatura, que poucos conseguem atingir o grau maior. “A crônica é a poesia em prosa”, disse-nos, ao que aplicamos a Gonzaga.

Gonzaga segue o rastro de Rubens Braga quando capta a sutilidade das coisas em seu derredor, nos gestos das pessoas, tudo escrito num texto primoroso que dá um enorme prazer sua leitura.

Escrever crônica é como perfurar um poço numa terra árida com água salgado. Vai se cavando até se tornar num oásis.

O artista da palavra deve expressar o sentimento da humanidade, emprestar seu conhecer para mostrar o que não conseguimos com a escrita ou com o pincel.

A expressão maior deste cronista que tomou conta da cidade vem de Machado de Assis, talvez o modelo de cronista, a quem devota admiração. Acho que Gonzaga vai mais além porque tem o olhar para o social, exprimindo com fervor posições em favor do homem e da vida, ao contrário de Machado. Posições mantidas desde os tempos quando se entendeu como gente. No “Café Alvear” este olhar está apregoado, num olhar conciso que lembra Flaubert e Graciliano Ramos, que perdiam uma noite de sono a cata de uma palavra que justificasse o pensamento.

(Milton Marques Júnior) Sempre abro os meus cursos na Pós-Graduação em Letras, para ouvintes. Dentre aqueles que os acompanham, encontra-se ...


(Milton Marques Júnior)

Sempre abro os meus cursos na Pós-Graduação em Letras, para ouvintes. Dentre aqueles que os acompanham, encontra-se o juiz Hermance Pereira, de quem recebi o livro Magistrados & Arte Musical, organização de Sandra Moura (Ideia, 2019). Em primeiro lugar direi que é uma satisfação ter Hermance como ouvinte. Ele já havia seguido o curso sobre a Ilíada e, agora, faz o da Odisseia.

Em segundo lugar fico grato de ter recebido o livro, pela oportunidade de saber que há um grupo considerável de magistrados, aqui na Paraíba, que se dedicam à música. Não que o fato em si me admire, mas é que todos sabemos a carga de trabalho que envolve os juízes, numa faina parecida com a de Sísifo, sempre recomeçando o rolar da pedra em direção ao cume da montanha. Esta metáfora se aplica, quando sabemos que julgar processos e prolatar sentenças é tarefa longe de acabar. Mas entre uma pedra e outra, a reflexão sempre ajuda a empurrá-la para mais longe...

Mais do que surpreso, afirmo que fiquei entusiasmado, sobretudo com o projeto de Hermance Pereira, para além de sua paixão pessoal, de inclusão de apenados do sistema judicial, procurando mudar vidas pela música.

Como paixão pessoal, podemos sentir na leitura do livro como este juiz respira música. Multi-instrumentista, Hermance Pereira vai das cordas ao sopro, com o sax sendo uma extensão de seu perfil, passando pelo teclado e pela percussão. Com a música entranhada, Hermance só alimenta cada vez mais a sua necessidade de conhecimento.

Chamou-me, particularmente a atenção a maneira como são feitos os relatos referentes a cada juiz – dezessete ao todo. Nada de apresentação burocrática ou de entrevistas com perguntas feitas a priori e respondidas pelo entrevistado. Trata-se de narrativa viva, em muitos momentos com estilo literário; crônica, cuja leitura torna-se saborosa ao leitor, ofertando-lhe uma espécie de biografia pela música, sem esquecer por trás do amante da arte de Apolo, o juiz. Li toda a parte de Hermance, cujo perfil é muito bem traçado por Marcella Machado, folheei as demais, mas a constatação é a mesma.

A maior surpresa para mim, foi encontrar no livro o juiz Marcos William, companheiro de aulas no antigo Colégio 2001, e ex-alunos meus como os juízes Onaldo Queiroga e Gustavo Urquiza. Quanto a Hermance, não tive a satisfação de tê-lo como aluno, mas tenho-o como um ouvinte para lá de qualificado, o que é, a um só tempo, um prazer e um desafio.

Grato pelo presente, ouso parafrasear a música famosa da Jovem Guarda, enviando ao meu querido Hermance Pereira a seguinte mensagem: – Senhor Juiz, não pare agora!


(Chico Viana) Esse é o título do livro em que James Geary (foto), editor na Europa da revista Time, faz um estudo sobre os aforismos ao long...


(Chico Viana)

Esse é o título do livro em que James Geary (foto), editor na Europa da revista Time, faz um estudo sobre os aforismos ao longo do tempo. Ele mostra a evolução desse gênero desde quando era praticado por sábios e profetas até os dias de hoje.

Seu interesse é estabelecer a trilha de uma jornada do espírito em que se revela algo de comum a todos os homens. Segundo ele, “os aforismos nos reafirmam que alguém passou por ali antes”. Como animais filosóficos que somos, de um modo ou de outro sempre participamos dessa viagem – alguns com refinamento, lendo os grandes autores; outros com o que é possível aproveitar na literatura miúda que atualmente recheia as estantes das livrarias.

Aforismos, como lembra Geary, não se confundem com provérbios. Enquanto estes são genéricos, “batidos”, os aforismos preservam a nota pessoal. Neles se deposita não apenas um saber, mas também um estilo, que traz as marcas de um temperamento e de um caráter. Para mostrar isso, o autor acrescenta à abordagem sobre cada autor um breve comentário biográfico. E procura mostrar o quanto as características físicas, a condição social, o sucesso ou sobretudo o fracasso na vida determinam a visão de cada um.

O livro é erudito e ao mesmo tempo leve, graças ao bom humor com que os tópicos são apresentados. A leveza também se deve ao que há nele de autobiográfico, pois de tão “viciado” em aforismos o autor começou, ainda jovem, a produzir os seus. Foi em encontros improvisados na universidade, quando então escrevia frases do tipo: “Não confie em um animal – não importa quantas pernas ele tenha.” Ou: “Há certos erros que apreciamos tanto que estamos sempre desejando repeti-los.” Graças a uma dessas frases ele conheceu aquela que seria sua esposa.

Em alguns aforistas o forte é o estilo; noutros o que conta é mesmo a engenhosidade dos conceitos. O exagero de uma ou outra tendência, como observa o autor, pode ter efeitos negativos. Joubert, por exemplo, se esmera em “produzir, da grande de verbosidade no mundo, algumas sentenças simples e cintilantes” e talvez por isso nunca tenha publicado um livro; obcecado pela forma ideal, jamais se dava por satisfeito. Já Nietzsche “pula de pensamento em pensamento, mas cai e pega fogo sempre que chega ao outro lado”.

Apreciações breves e certeiras como essas não nos deixam largar o livro. Nele aprendemos muito sobre esse gênero de “todas as épocas” e sobre alguns dos autores que nas mais variadas circunstâncias o cultivaram. Se o homem se define pelo saber que produz ao longo do tempo, os aforismos são trilhas privilegiadas para entender esse percurso. São instrumentos pelos quais o ser humano procura, com o farol da razão, desfazer as brumas da ilusão e da ignorância.

(Renata Simões) Ele se definia como um missionário, defensor da educação e da cultura. Mas esse paraibano de Itaporanga, nascido em 13 de ag...



(Renata Simões)

Ele se definia como um missionário, defensor da educação e da cultura. Mas esse paraibano de Itaporanga, nascido em 13 de agosto de 1962 e que se tornou o primeiro Doutor em trombone do Brasil, ia muito mais além: defendia a construção do ser humano, a capacidade de superação que cada um de nós pode ter; exemplificava a disciplina, o respeito por sua profissão, a responsabilidade de tornar importante cada música que tocava, fosse nos grandes palcos internacionais ou na simplicidade das festividades pelo nosso sertão afora.

Radegundis Feitosa era assim: um virtuose na arte e na vida, um artista cuja precisão técnica se unia à ternura da sonoridade e à extrema sensibilidade do fraseado musical; um homem trabalhador, de alegria e energia contagiantes, cuja generosidade revelava um olhar profundo sobre as dificuldades da vida; um professor cuja dedicação ultrapassava a sala de aula, defendendo que sua vitória era fruto de esforço e disciplina e que, portanto, qualquer pessoa poderia alcançar os mesmos patamares atingidos por ele.

Tendo iniciado sua vida musical em uma banda de música em sua cidade natal, Radegundis rodou o mundo, mas escolheu a Paraíba para viver e fazer sua música. Aqui, defendeu e divulgou a música brasileira, lutou pelo ensino de música nas escolas de formação básica e pelo desenvolvimento da própria universidade, defendendo a ampliação do universo acadêmico com a criação de novos cursos de graduação em música e também de pós-graduação.

O doutorado em Washington não lhe tirou a simplicidade, o reconhecimento mundial não lhe tirou o amor pela sua pátria e por sua origem, e ele nos deixou seu exemplo de grande alegria na possibilidade diária de realização e crescimento. O som de seu trombone e de sua risada ecoarão para sempre na mente daqueles que o conheceram.

(excerto do projeto "Memórias Concertantes", acervo do Mestrado em Música da violinista paraibana Renata Simões, ora em curso: https://www.facebook.com/memoriasconcertantes/)


O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas,...


O centenário é da morte de Augusto dos Anjos, mas o tema é a vida. O tema é "o Futuro em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, / Na multiplicidade" da poesia, semente da árvore arrancada, antes que sua primeira safra pudesse ser colhida. Poesia-semente em que se cumpre a antevisão do eu, na certeza com que se irmana ao Tamarindo: "Depois da morte, inda teremos filhos!".

Fugindo à tradição editorial, que se fixou no Eu e outras poesias, a Biblioteca Mário de Andrade e a Edições Narval preferiram o Eu original, seleção e edição do autor, lançado no Rio de Janeiro em 1912. Essa escolha confere um significado bem particular à publicação e à homenagem que representa. Fixando-se na primeira e única edição contemporânea do poeta, traz Augusto por ele mesmo. Redivivo.

Numa apropriação e livre tradução dos versos de Walt Whitman, pode-se repetir que "este não é apenas um livro. Quem toca nele, toca no homem". Pois a configuração do Eu condensa o sentido maior da existência de Augusto, sendo de toda propriedade afirmar que o poeta se impôs o sacrifício extremo para salvar do estreito horizonte provinciano sua criação original e antecipadora de concepções modernas. Tinha a exata consciência de que, sem chegar ao eixo onde se concentrava o prestígio da visibilidade cultural do país, seus poemas dificilmente conquistariam a repercussão a que estavam predestinados.

Sem condições financeiras favoráveis, sem renda certa que lhe garantisse a subsistência, lançou-se ao desconhecido para uma luta obstinada. Deixou a Paraíba e foi morar no Rio de Janeiro, determinado a sobreviver com a precária remuneração obtida pelas aulas particulares que ministrava. Em "Notas biográficas" para a trigésima edição do Eu, Francisco de Assis Barbosa registra que o poeta "residiu em dez casas de diferentes bairros, quase sempre em quartos de pensão", durante os anos de permanência no Rio, entre outubro de 1910 e julho de 1914.

O escritor José Oiticica, vindo de Minas, compartilhou com Augusto dos Anjos essa fase que classificou de "horrível", de "penúria". E revela: "o que mais o amargurava era a injustiça social em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados, iludir os honestos, os sonhadores, os retos de entendimento e de coração. Essa revolta íntima o levava a descrer do mundo, a ver em tudo podridão física e moral".

Parece natural a presunção de que o organismo frágil se debilitou nesse processo de desgaste físico e emocional. De tal forma que Augusto, já instalado em Leopoldina como diretor do grupo escolar Ribeiro Junqueira, não resistiu a uma pneumonia, deixando a vida com apenas trinta anos, em 12 de novembro de 1914.

Nunca mais voltou à Paraíba. Nem mesmo os seus restos mortais. E um documento firmado em cartório pelos filhos Guilherme e Glória "Proíbe que isso possa acontecer". Os filhos ratificam a decisão altiva do poeta ante a mediocridade burocrática que negou ao erudito professor Augusto dos Anjos, uma licença para viajar ao Rio, onde trataria da publicação do Eu.

A morte do poeta paraibano teve pouca repercussão na imprensa. Destaque para o artigo de José Américo de Almeida, no trigésimo dia, e para o ensaio de Antônio Torres, no qual se insere o tocante perfil que define Augusto como um idealista "na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo".

A crítica, desorientada pelo choque, pelo desconhecido que a poesia do Eu representava, oscilou inicialmente entre a aceitação e a recusa dos recursos de expressão que caracterizavam a criação lírica sem precedentes. De modo que o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo, incompreendido.

Nem os modernistas ensimesmados alcançaram a poesia predeterminada "Para cantar de preferência o horrível". Do observatório em que estavam situados, não perceberam que, em 1912, comparada a "um paralelepípedo quebrado":

a lua de augusto
é uma lua nova

uma lua cheia
de modernidade

a lua de augusto
é uma pedrada

em olavo brás martins dos guimarães bilac

Em 1920, o jornalista paraibano Órris Soares, contemporâneo e amigo de Augusto, toma a iniciativa de organizar e prefaciar a segunda edição do Eu. Acrescentou novos poemas, selecionados, sobretudo, entre os escritos após a primeira edição, e colocou o subtítulo (poesias completas). Sem dúvida, o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto. A iniciativa do publicá-la, quando o poeta já não existia e parecia tão esquecido quanto seu livro único. Implícita, nesse gesto, a capacidade de compreender, antecipadamente, que, sem se filiar a nenhuma escola, o Eu, em "seu individualíssimo sentir", representava a "riqueza e glória das letras brasileiras". É o que se lê no prefácio histórico, entre outras assertivas acolhidas pela crítica contemporânea.

A ética da "obrigação intelectual da verdade" motivou essa publição póstuma, "como uma sagrada dívida" que Órris se impôs. Ele era motivado por valores dessa ordem, segundo o testemunho de Carlos Drummond de Andrade que considerava o amigo Órris um dos homens mais livres, mais conscientes e mais fiéis à inteligência. Numa perspectiva semelhante, o grande Houaiss também reconheceu a suma importância da segunda edição feita por amor e devoção, como um instante decisivo na história do Eu.

Essa publicação paraibana despertou o interesse da Livraria Castilho, responsável pela terceira edição, em 1928, com o titulo Eu e outras poesias, que se tornou definitivo. Foi tal o fenômeno da recepção que os jornais da época chegaram a registrar três mil volumes escoados cm quinze dias e 5.500 vendidos em menos de dois meses. A partir de então o sucesso de público não abandonaria jamais a poesia de Augusto dos Anjos. Equiparando-se o poeta aos mais populares do Brasil, recitado de cor pelos admiradores dos mais diferentes níveis culturais. Assim, as edições se sucederam através de selos consagrados: Livraria Castilho, Bedeschi, Livraria São José, Companhia Editora Nacional, José Olympio, Ática, Paz e Terra, Civilização Brasileira, Nova Aguilar, Bertrand Brasil, Martins Fontes, etc.

O grande número de publicações e a pluralidade de editoras que as representam corresponderam no crescente interesse do público pela poesia de Augusto dos Anjos. Mas esse fenômeno, que tem na recepção um dado positivo, também deu margem a que muitas gralhas ou alterações gráficas passassem a interferir nos originais do poeta. Somente a partir da 29ª edição, comemorativa do cinquentenário de lançamento, o texto do Eu começa a receber a atenção especializada. O filósofo Antonio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa foram os pioneiros que se dedicaram à correção dos erros acumulados em meio século de publicações. No entanto, foi a trigésima edição, com a nota editorial de Houaiss, que atingiu a confiabilidade reclamada para o texto poético de Augusto dos Anjos.

Em 1977, Zeni Campos Reis acrescenta, com absoluta segurança, novo cuidado ao estabelecimento do texto. Publica Augusto dos Anjos: poesia e prosa, ampliando, com sua pesquisa exaustiva e competente, informações sobre a obra do poeta do Eu, tornando-se fonte de consulta indispensável para os estudiosos.

Enfim, em 1994, com a publicação da Obra completa de Augusto dos Anjos, pela Nova Aguilar, temos a mais ampliada edição, depurada dos antigos e persistentes erros. Organização, fixação do texto e notas, sob o critério de Alexei Bueno, impõem às próximas iniciativas uma responsabilidade maior em relação à fidedignidade do texto de Augusto e à coerência das leituras críticas.

Diante do Eu ,a morte se desfigura, perde sua força dominante. Resume-se a um episódio, um traço biográfico, uma data. Nada mais. E já não sabemos dizer se é homem ou mito este singularíssimo poeta que, tendo testemunhado menos de duas décadas do século XX, foi por ele consagrado como criador de uma linguagem, de um ritmo, de uma concepção poética que surpreendeu a Literatura Brasileira e a ela se acrescentou como renovação e sinalização de outras formas de sentir, compreender e dizer.

Se, do ponto de vista do processo mimético, é verdade, como entende Eduardo Portella, que o poeta "só é poeta quando converte imaginariamente o horizonte, quanto morre na vida da obra'', também não é menos verdadeiro que, do ponto de vista da continuidade histórica, o poeta se perpetua na obra, como o criador na criatura, como o homem particular no universal. O poeta continua na obra, não no equivocado entendimento de que esta seja a sua biografia em versos, ou a mera confissão de particularidades sentimentais. Continua porque na obra está a sua compreensão do mundo, a sua forma escolhida de participação no projeto humano, a complexidade do seu tempo transubstanciada na linguagem que corporifica o gesto inaugural da expressão lírica.

A presente edição ergue um monumento ao poeta, tornando acessível o livro de Augusto no formato que se fez uma preciosidade bibliográfica. Um monumento vivo, o Eu, na plenitude do reconhecimento. Constituindo um fenômeno editorial sem termos de comparação. Mantendo uma popularidade que levou o autor a ser eleito o paraibano do século XX, por uma diversidade de admiradores que é "transcendentalíssimo mistério". Acumulando em sua trajetória uma elevada compreensão crítica que destaca a obra de Augusto dos Anjos "como a mais patética indagação já feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana". Com a ressalva de que "jamais, antes dele, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão estética''. É a conclusão do poeta Ferreira Gullar, em sua leitura plena de descobertas e elucidações.

"Salvo pelo povo" e consagrado pela crítica, há muito o lugar do poeta do Eu está definido com propriedade no quadro da Literatura Brasileira. O mestre Eduardo Portella explicita que:

"[Augusto] se localiza numa peculiar encruzilhada do pós e do pré, entre elaborações retardatariamente românticas, parnasianas, simbolistas, a essa altura debilitadas, e esboços ou manifestações discursivos, prenúncios do modernismo. O Eu se projeta como avatar de radicalização da modernidade. Ele desidealizou o conceito do gosto para dessacralizar a linguagem e, com isto, verbalizar despreconceituosamente a experiência humana. A precoce, e não raro prematura, desestetização corresponde ao programa de descarte do sublime".

O ensaio do professor João Adolfo Hansen, escrito especialmente para esta edição do Eu, integra-se à tradição da crítica que ilumina o texto do poeta. Retoma importantes aspectos sobre os quais fixa precisos fundamentos. Chega a elencar as múltiplos razões dos estudiosos que o antecederam e reconheceram a poesia ou "a boa poesia", no realismo mágico da linguagem criada por Augusto.

Um estudo erudito e atual que valoriza de modo superlativo da homenagem ao poeta do Eu. A Leitura do "Monólogo de uma sombra", como "a profissão de fé poético-científica do autor", é original e prepara o leitor para absorver a tradução da teoria do conhecimento implícita na obra de Augusto dos Anjos, integrada poeticamente pela representação metafórica.

A marca de conciliar o gosto popular e o erudito não se apagará da poesia de Augusto. Ela continuará encantando o povo e desafiando os críticos. O poeta já é febre entre os internautas, com milhares de vídeos e páginas de acesso. Enquanto a crítica universitária, à luz de diversos postulados teóricos, projeta cada vez mais a sombra incandescente do Eu. Vale registrar a tese O evangelho da podridão, em que o professor Chico Viana analisa a tematização da culpa como elemento estruturante da poesia de Augusto. E mais uma hipótese se acrescenta como justificativa para a popularidade do Eu. Além do estranhamento e da estrepitosa musicalidade da linguagem, a possibilidade da catarse para a civilização da culpa.

A construção fantástica de palavras misteriosas, estranhas ou íntimas demais, que transita sem limite entre a realidade, a fantasia, o sonho, a loucura e os tempos imemoriais, expandindo-se em ásperos sons, agônicos e dissonantes fascina e haverá de atrair sempre um público de características culturais extremamente diversificadas.

É o homem universal vencendo o homem particular, cumprindo-se o credo existencial do poeta.



(O Blog Carlos Cronista tem a honra de publicar o texto, inédito na Paraíba: "Augusto para todos os séculos", que prefaciou a homenagem da Biblioteca Mário de Andrade (foto da ilustração) no Centenário da morte do poeta Augusto dos Anjos, de autoria da Professora Ângela Bezerra de Castro)


(Milton Marques) Ao pegar uma cueca com a braguilha costurada, me pergunto de quem foi essa ideia tresloucada. Que razão é que existe pra fe...


(Milton Marques)

Ao pegar uma cueca com a braguilha costurada,
me pergunto de quem foi essa ideia tresloucada.
Que razão é que existe pra fechar o bom caminho,
pra deixar aprisionado nosso amigo passarinho?
Eu não sei o que ocorre com quem o tecido fia,
será contra a natureza? Desconhece anatomia?

Eu pensava que Lutero acabara, sem temor,
com a ideia de o Papa ser meu Dono e Senhor.
Dono do meu pensamento, ser Senhor de minha Fé,
com palavra infalível do alto da Santa Sé.
Mas agora, preocupado, vejo que qualquer asneira
dita pela santidade e os acólitos de algibeira,
se ela for bem repetida por um frade ou cardeal,
por um bispo ou monsenhor, seja oblato ou clerical,
é um dogma inquebrantável que o estulto vai comprando,
pois um asno sempre está outro asno emulando.

Por que gosto do epigrama? Pela sua concisão,
Se o poema é muito longo, perde a sátira a razão.
Incisivo, o epigrama, tendo ironia fina,
É o raio fulminante que o baobá fulmina.
Duas vezes três por sete, com o ritmo da fala,
Quando o epigrama diz, o silêncio se propala.
O epigrama, já se afirma, é igual Roma locuta:
Tudo é causa finita, a ninguém não mais se escuta.