Acordou com uma sensação boa. Depois de décadas malhando na repartição, estava enfim aposentado. Até estranhou não ter que pular da cama, engolir rápido o café da manhã e enfrentar o congestionamento do trânsito. Quantas vezes não ficara exasperado ao volante, sentindo o coração bater com força ao ver que a fila de carros não andava e ele corria o risco de perder a hora.
Em visita à antiga capital mineira, Vila Rica, descobri que a história conta suas verdades com sangue e dor, mesmo que o fruto tenha sido dourado. Hoje a cidade se chama Ouro Preto, nome teve origem porque uma camada negra de minério de ferro cobria o ouro brilhante. Ao ser fundido, o ferro deixava à mostra o que tinha mais valor.
De perto, todo mundo é diferente, ou seja, é igual ao que é, realmente. De longe, as aparências costumam enganar, as virtudes e os vícios eventuais se exacerbam ao olhar alheio, talvez menos atento, e aí a imagem formada pode não coincidir com a realidade. Mas de perto a história é outra. A escritora nova-iorquina Sigrid Nunez, aos vinte e poucos anos, teve a oportunidade de conviver com Susan Sontag, inclusive morando em sua casa, por um bom período. Era uma espécie de assistente (inicialmente, datilografava a correspondência) e depois tornou-se namorada do filho da ensaísta; mas logo se estabeleceu entre as duas uma relação de amizade, o que lhe permitiu observar e penetrar
É raro encontrar qualquer obra, científica ou não, escrita no al-andalus que não esteja adornada com poemas. A mais idiossincrásica forma de cultura oriental, no geral, e árabe, em particular, sempre foi a poesia, a arte do verbo que, neste contexto, nasceu para fazer companhia ao beduíno, seguindo a cadência da sua montada, na solidão do deserto. Talvez não seja por acaso que verso em árabe se diga bait, que significa
Não há história completa, mesmo nos limites do seu tempo.
Na reclusão do sanatório, quando li a História da Revolução Francesa de Michelet, sobre a qual se atribui “uma ressurreição integral do passado”, ainda jovem, julguei sobrepor-me ao desânimo da doença e à mediania de outros leitores do meu círculo.
Não demorou muito, eis-me afrontado diante dos cinco ou seis volumes da grande revolução, só que escrita sob a visão hegeliana do socialista Jean Jaurés. Dispersivo como sempre fui, não passei do 2º volume, à espera de ocasião para entrar nos subterrâneos da luta de classe, ponto de vista do militante socialista, eloquente orador, assassinado num café de Paris.
Não se pode falar nas eleições gerais de 1986, que marcaram a redemocratização do país, sem fazer referência ao Plano Cruzado. O Plano Cruzado, o da inflação zero por decreto, lançado bombasticamente em 28 de fevereiro daquele ano pelo presidente Sarney, funcionou, em todos os estados, como uma espécie de anabolizante em favor dos candidatos do PMDB, apelidado na época de “ARENA da Nova República”.
Em seu encontro com a Natureza, a ciência invariavelmente provoca um sentimento de reverência e admiração. O próprio ato de compreender é uma celebração da união, da incorporação, ainda que numa escala muito modesta, à magnificência do Cosmos.Carl Sagan
Ando com saudades de uns bons gibis, estou com receio de terem retirado os mesmos de circulação pelo fato de dizerem que fazem mal à criançada… Alguém sabe por onde andam as histórias em quadrinhos?
Senti-me, diante desta obra de Guarnieri, como alguém do círculo mais próximo de Picasso ao ser um dos primeiros a ver, em 1906, o Les Demoiselles d´Avignon, no qual se saca de imediato que, em meio à criação da tela, sem a mais mínima preocupação com a famosa e sempre exigida unidade, o espanhol mudara duas vezes de estilo.
As senhoritas de Avignon Picasso
A primeira, ao introduzir naquele espaço, algo como uma página do Tratado Elementar sobre a Geometria das Quatro Dimensões, de Esprit Jouffret – em cima das visões de Poincaré que tinham virado a cabeça de Einstein. A segunda, ao transformar as caras das moças nuas d´Avignon em máscaras africanas, atônito com o que acabara de ver numa exposição delas, em Paris.
Desenho do "Tratado elementar sobre geometria quadridimensional" / Esprit Joufret B. Tourniaire
Assim,
Guarnieri faz a abertura de seu livro com cores mórbidas, meticuloso estilo tipo realismo fantástico, em que cada detalhe tem enorme destaque, como quem quer que se veja tudo ao mesmo tempo, do macro ao micro e, de um fôlego, num curto período, vemos, com poesia de alta voltagem:
“um engenho de espelhos”,
“câmaras do horizonte, iluminadas”,
“minério aberto, puro, casto: flor de cálcio”,
“lágrimas na zona fronteiriça entre os alumínios do azul e a amarelidão molhada da areia fina”,
“navalhas da erosão”,
etc.
Mas eis que na página 16
“o clima declina em crise física (toda altura é esta estranha úlcera convulsa como se fosse ininterrupta a pintura de William Turner)”.
Pois bem:
Turner.
E aí se dá que na página seguinte, damos com outro Guarnieri. Que se pergunta:
“... e agora, Vasco, Pero Vaz de Caminha? a quantas anda nosso Caminho das Índias?”
É a questão que também me faço, ante esse Guarnieri, que tem a força daquele sermão de Orson Welles no Moby Dick de John Huston.
O léxico de Euclides da Cunha, em “A Terra”, primeira parte de Os sertões, nos mostra uma diversidade interessante, variando do termo habitual ao erudito, passando por um específico léxico técnico-científico, misturando-se ao latim e a uma discussão da etimologia do léxico indígena, além de introduzir um neologismo interessante, o verbo ganglionar, com o sentido de pequenos poços de água, isolados, após o período da chuva, que sustentam, até certo ponto, o gado e o homem, quando do período de estio. (Capítulo I, p. 31, todas as referências provêm
“Tentei expressar a alegria,
mas também a solidão e a melancolia
que se sente no alto das montanhas,
de onde se avistam grandes distâncias”Delius
No romance A Sinfonia Pastoral, de André Gide, as belezas da Natureza são contadas à menina cega na tentativa de descrever com palavras o mundo e a vida que ela não enxerga. Como a audição se depura nos desprovidos da visão, seus ouvidos passaram a perceber tudo o que lhe era dito como se olhos fossem.
Na lateral do edifício revestido de pastilhas verdes, umas plantas ornamentais na calçada lateral. Bonitas: esparramadas, em forma de flechas pontiagudas. Traziam problemas, posto crescerem rapidamente, e serem abrigo de ratos vadios e cobras. Foi encontrada uma coral perigosa. Um dos moradores sugeriu substituí-las por outra: “comigo-ninguém-pode”. Logo se opuseram; ninguém evitou o desmaio de uma das moradoras. Perdeu o filho caçula, menino ainda, que mastigou pedaço da folha assassina. Passado o alvoroço, os demais condôminos concordaram em desistir da pretendida e molesta substituição. Ficaram silenciosos por falta de descobrir a sucessora herbácea decorativa.
Tenho acompanhado, eventualmente, uma ou outra repercussão noticiosa da morte de astros, ou estrelas globais, com o pesar, somente, de quem lamenta algo penoso, mas plausível. Isto é, sem o sentimento de grande perda expresso por todos os que deles e delas se fizeram mais próximos e mais íntimos em razão de tê-los a poucos passos do sofá doméstico, no transcurso habitual das novelas de agora.
Quando o Banco Noroeste foi vendido ao Santander descobriu-se uma fraude de quase 250 milhões de dólares, que correspondiam à metade do capital daquela casa bancária. A maioria das pessoas pararia por aqui no que diz respeito a esse fato. Não é o meu caso. Como não tenho absolutamente nada para fazer na vida, fui pesquisar o assunto porque vivo à caça de histórias boas de contar.
VIDA
Meu poema é liberdade,
é cheio de inspiração.
Colhido no coração,
me tira a passividade.
Expressa a minha saudade,
faz o peito latejar,
não é fácil epigrafar.
Meu poema é sem medida,
eu vou chamá-lo de vida,
para Aninha se encantar.
Há duas formas para reviver-se um mesmo passado. Uma é individual e memorialista, a outra, além de coletiva, é histórica. Em qualquer dos 2 casos, o indivíduo encontrará – acaso pretenda – sinais inequívocos de seu percurso existencial. A primeira pode ser bloqueada e atirada na lixeira do esquecimento por uma eventual capitulação de funções cerebrais nos períodos finais do curto tempo de vida dos indivíduos, uma perda que não será sentida por ninguém mais além de familiares próximos.