A esquadra inglesa comandada por sir Sidney Smith apareceu no porto de Lisboa no dia 16 de novembro de 1807 com uma força de sete mil home...

O périplo de Dom João

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A esquadra inglesa comandada por sir Sidney Smith apareceu no porto de Lisboa no dia 16 de novembro de 1807 com uma força de sete mil homens. A intenção era levar a Família Real portuguesa ao Brasil, protegendo-a durante esse trajeto de um provável ataque das tropas napoleônicas. Napoleão havia declarado guerra à Inglaterra e pressionara Portugal a se declarar a favor da França.

O governo português ainda não sabia que o órgão oficial do Império Francês – Le Moniteur, havia impresso o Tratado de Fontainebleau, além de tornada público no dia 11 de novembro a decisão de Bonaparte de destronar a Casa de Bragança.

Segundo a historiadora Lilian Moritz Schwarcz, D. João e seus assessores também ignoravam que as tropas de Jean-Adoche Junot (general de Napoleão, 1º duque de Abranches), estacionadas em Alcântara, já tinham atingido as fronteiras de Portugal.

Devido a todos esses acontecimentos e a se confirmar a real intenção de Napoleão Bonaparte, uma Junta de Governo do Reino foi nomeada para reger Portugal na ausência do soberano e preparou-se uma declaração sobre a viagem ao Brasil, a ser publicada por D. João no momento da partida.

Havia chegado a hora de executar o plano que já se conhecia de cor e traçar, rapidamente, o procedimento operacional para dar cabo da gigantesca tarefa de trasladar, da terra para o mar, tudo e todos que significassem sobrevivência e sustentação do governo monárquico, que seria instalado no Rio de Janeiro.

A escritora relata também que somente no dia 27 de novembro D. João embarcou com toda a família, seguindo-se os familiares dos ministros, conselheiros de Estado, oficiais e servidores, fidalgos nobres e amigos mais chegados do príncipe regente, abarrotando os navios da Frota Real. Na manhã de domingo 29 de novembro, levantaram âncoras. Nesse mesmo dia, os soldados de Napoleão entravam em Lisboa.

O capitão Sidney Smith é muito pouco conhecido no Brasil. Segundo Kenneth Light, o marinheiro fez carreira na Inglaterra, iniciada aos 13 anos de idade. Trabalhou inicialmente no navio depósito de víveres "Tortoise" e posteriormente no brigue "Unicorn". Na costa americana, conheceu sua primeira batalha. Sob o comando de Rodney Smith, famoso almirante inglês na época, participou da Batalha de Todos os Santos, perto de Dominica, contra trinta naus de linha francesa. Seu acervo de vitórias e títulos é numeroso.

Muito menos conhecido ainda é o irlandês Thomas O'Neil, tenente e conde da esquadra inglesa que esteve em um dos navios que acompanhou D. João e sua comitiva ao Brasil. Entretanto, O’Neil só partiu para o Brasil em 12 de janeiro de 1808, chegando diretamente ao Rio de Janeiro no dia 29 de fevereiro de 1808, um mês e uma semana depois do desembarque da Família Real em Salvador, no dia 22 de janeiro.

O’Neil foi o responsável pelo relatório detalhado da viagem de D. João ao Brasil, além de destacar os sofrimentos dos fugitivos reais durante a viagem de Lisboa ao Rio de Janeiro e outros fatos interessantes e autênticos desse trajeto. O’Neil constrói seu texto de maneira dramática, sempre com o objetivos de elevar o caráter heroico do feito britânico e a postura dos ingleses, denunciando as atrocidades dos franceses.

O relatório foi publicado em Londres, em 1810, com pormenores da espetacular fuga do governo português para sua principal colônia. Nessa pequena obra, o autor conta uma história que não presenciou, mas descreve uma inusitada aventura histórica envolvendo três nações em litígio — Portugal, França e Inglaterra — e uma colônia que seria elevada a Reino Unido. A narrativa despertou enorme interesse na Inglaterra e foi subscrito por toda a realeza, incluindo Suas Altezas Reais: a princesa de Gales e a princesa de Gloucester, todos duques e duquesas, além da alta sociedade inglesa. É um relato interessantíssimo, com muitos detalhes históricos ainda hoje pouco conhecidos.


Embora muitas vezes ficcional e um tanto exagerado, o texto passa uma ideia do ambiente naqueles dias, quando o pânico e o desespero tomaram conta da população, com muitas senhoras de distinção metendo-se na água, na esperança de alcançar algum bote, pagando algumas com a própria vida e chamando atenção para o sofrimento da população durante a travessia. O'Neil destaca o caos repentino que se instalou no porto de Belém (Portugal) quando acorreram milhares de pessoas, com suas bagagens e caixotes e das riquezas que viajariam junto com o rei. Muitas das mulheres que realmente embarcaram levaram como roupa apenas os vestidos que trajavam no dia, para empreender uma viagem de oito mil quilômetros, aterrorizadas com a expectativa de que os franceses chegassem a qualquer momento e as levassem como prisioneiras.

Na interpretação do autor, o evento tratava-se de uma fuga e não de um traslado. Aproveita para dar todas as honras aos ingleses reservando aos portugueses o lugar de quem aceita se deixar levar. A viagem não foi fácil, embora não se tenha notícia de graves acidentes ou de algum óbito.
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Racionamento de comida e água, bagagens desviadas ou abandonadas no cais, famílias desmembradas, excesso de passageiros e falta de higiene, obrigando as mulheres a cortar os cabelos para evitar a ação dos piolhos (muitas esposas dos nobres desembarcaram em Salvador usando panos amarrados em suas cabeças para que ninguém soubesse o que realmente ocorreu, dando origem à moda das mulheres baianas de hoje usarem turbantes, para imitá-las).

Depois de 54 dias no mar, o Príncipe Real atracou em Salvador em 22 de janeiro de 1808, onde estaria ancorado por um mês. Os ares dos trópicos fizeram muito bem aos marinheiros ingleses, encantados com o clima, as árvores, as frutas tropicais e a população local. Em um dos trechos, Thomas O’Neil divulga informações recebidas de seus companheiros sobre a capital da Bahia:

[...] É uma cidade grande, bem construída, populosa e fica na encosta de uma colina; a parte baixa não é muito limpa, mas tem excelentes joalherias; a parte alta é muito agradável, e de lá se vê o belo panorama. Todo lugar tem frutas deliciosas em abundância; vi bosques de laranjeiras de mais de três quilômetros de extensão, onde pude passear resguardado do calor do sol. A cidade tem o clima intensamente quente por estar muito próxima à linha do equador. O porto, que se chama São Salvador, é muito espaçoso, mas não foi calculado para a residência real, sendo a costa muito aberta e a cidade muito desprotegida [...].


A comitiva deslocou-se depois para o Rio de Janeiro recebendo as boas vindas do Pão de Açúcar no dia 8 de março de 1808, o primeiro símbolo que chamou a atenção de O'Neil. Passou 16 meses no Brasil e segundo seu informe efetuou excursões de mais de 240 quilômetros por lugares lindos e agrestes de seu interior. Em outro trecho de seu relatório descreve:

[...] Os habitantes, em suas maneiras e costumes, são extremamente liberais, hospitaleiros e bondosos para com os estrangeiros. Um caso em particular chamou minha atenção: passei por uma casa onde uma banda de música estava tocando e, como aqui a curiosidade de um estrangeiro é geralmente desculpada com uma liberalidade quase desconhecida em outros países, aventurei-me como intruso para averiguar as razões da folgança; e, como meu passaporte é a minha farda, tive oportunidade de observar uma reunião de numerosas pessoas de ambos os sexos sentadas a uma mesa, onde se servia vinho em profusão e doces em compota; na cabeceira da mesa havia uma imagem numa redoma de vidro. Fui convidado a partilhar sua hospitalidade, inclusive um bom vinho, que passavam em volta livremente, e fui informado que estavam celebrando a festa de Santa Ana e que a imagem na cabeceira da mesa a representava. Impressionado com a consideração do bom anfitrião, eu me despedi. Assim foi o tratamento hospitaleiro que encontrei durante minha estada neste país [...].

Durante as comemorações dos duzentos anos da chegada de D. João ao Brasil, funcionários da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro obtiveram acesso ao relatório de O'Neil. O industrial José Ephim Mindlin, um dos mais importantes bibliófilos brasileiros, cedeu do seu acervo particular um exemplar original para fotografia, de modo a facilitar a tradução do livro para o português, publicado pela José Olympio Editora em 2008 com o título: “A vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil”.

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  1. Bravo 🙌🙌🙌🙌
    Sérgio Rolim Macedo..pelo relato da chegada da Familia Real no Brasil...
    Paulo Roberto Rocha

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  2. É comum que leitores se dividam entre aqueles que prezam revelações históricas e aqueles que se "chateiam" com elas. Por pertencer ao primeiro time, venho lembrar que, na sequéncia dessa generosa medida protetiva inglêsa à fuga da corte portuguesa, o pagamento pelo serviço coube em grande parte a nós, pobres brasileiros. Para sempre ferrados pelo Tratado de Methuen, assinado entre portugueses e ingleses, e extensivo às colônias.

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  3. Obrigado, Sérgio, pelo relato de um fato histórico que eu desconhecia e que foi tão bem descrito com seu talento de escritor

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  4. Excelente e esclarecedor trabalho sobre a nossa história. Na sua fuga D. João VI não esqueceu a sua corte. E trouxe para o Brasil o que havia de pior de parasitismo em Portugal.
    Aí está a origem de boa parte da elite deletéria que domina o Brasil ao longo desses 5 séculos.
    Parabens, Sérgio Rolim Mendonça, por mais essa pesquisa com que nos brinda!

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  5. Obrigado a todos os amigos pelos incentivos.

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