Um dos meus filhos, Gustavo Olímpio, me traz de presente um aspirador com dispositivo para sugar o pó entranhado nos livros. Traz a gener...

Como uma folha solta

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Um dos meus filhos, Gustavo Olímpio, me traz de presente um aspirador com dispositivo para sugar o pó entranhado nos livros. Traz a generosa e oportuníssima vantagem de me dispensar de recorrer ao tamborete. A haste sugadora foi lá em cima e, no primeiro momento, ao inaugurá-la, faz despencar aberto ”Os trabalhadores do mar” na tradução de Machado de Assis, deixando soltar-se um papel dobrado a que dou pouca importância.

“Os trabalhadores do mar” - há quanto tempo! E a edição que despenca, apenas tocada há mais de vinte anos, quando me mudei, é um luxo de joia editorial, feita realmente para Victor Hugo. No que passo as folhas cai o papel dobrado, ainda bem conservado.

Que papel é esse? Não resisto, abro-o com delicadeza e vejo em minhas mãos de hoje, lisas pelo desgaste dos anos, as veias flutuando na pele, uma via que José Ramalho da Costa, presidente fundador do Sindicato dos Jornalistas, levara-me ao hospital onde me achava internado habilitando-me ao auxílio doença do IAPC.

Que vem fazer esse papel, misturando estágios tão contrastantes? O do leitor ainda moço de Victor Hugo, e o de um interno que perdera o emprego, com família para sustentar, aguardando com ânsia o auxílio-doença que Ramalho se propusera conseguir já como ganho do sindicato?

Nesse tempo o jornalista se beneficiava da Previdência como comerciário. Ramalho, aposentado federal, escrevendo de graça e diariamente a sua coluna, não precisava disso, tomava as dores dos que tinham no jornal a subsistência. E o mais estranho: contra a vontade da classe, que não queria nada, confiada no prestígio fátuo da profissão.

Convencera-me a acompanhá-lo nessa empresa, tendo como birô de trabalho uma mesinha do Café Alvear. Era lá que nos reuníamos, que colhíamos as assinaturas estipuladas para o encaminhamento ao Ministério do Trabalho. Os que não apareciam, por descrença, e eram muitos, íamos atrás deles, o livro debaixo do braço. Passamos um ano inteiro nisso, de um lado a burocracia do ministério, do outro a negligência da própria classe.

Seria ele, Ramalho, um sindicalista vinculado ao partido ou à política trabalhista? Um futuro pelego? Um homem de ideias socialistas?

Nada disso. Sobre Ramalho, já tentei um perfil sem vínculo com o papel que amarelecia entre as páginas de Victor Hugo e vem à tona a pretexto desse aspirador sem dúvida providencial.

Bem mais velho que eu, notabilizou-se pelo jornalismo de flashes que introduziu em nossa imprensa. Descobriu antes dos americanos que o leitor comum prefere a notícia curta, o petardo de quatro linhas com o qual montava diariamente a sua “Conversa de Fila”, no jornal O NORTE. Era a mais lida das colunas, fisgada do desvio de verba, da traição na urna, do bode morto na água de beber, do furto no peso, da sujeira no mercado ou ao pacote malcheiroso jogado pela vizinha no quintal da desafeta. E fazia, também, abalo em estruturas partidárias com o anúncio renitente de defecções e mais defecções.

Faz algum tempo, o Sindicato lotou um dos maiores auditórios para comemorar a data de fundação. Entregou medalhas, festejou posse, fez seu grande dia, sem uma menção, uma linha, uma palavra que lembrasse o fundador. E os contemporâneos, testemunhas e beneficiários desse trabalho corroboraram com o silêncio. Eu inclusive.

Agora, sem maiores explicações, alui da estante, como uma folha ao vento, este papel do meu velho amigo. Chama-me ou adverte-me?

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  1. Meu estimado amigo.
    Você não sabe como tocou no meu coração esta sua crônica, notadamente quando olhamos, de um lado o que resta da nossa família mais próxima - muito poucos e de outro aqueles amigos que com ele conviveram, especialmente em episódios como os que você retrata.
    Aqueles foram outros tempos.
    Tempos em que as amizades eram mais sólidas, mais vivenciadas, permitindo gestos como os que você personaliza com a realidade do saber sabido e da vida vivida.

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