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A cidade de Moema

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rios, cidades, poetas
à moema selma d’andrea o paraíba, o mamanguape, o tigre, o eufrates, o tejo, o sena, não desviam o curso do poema. o poema, nenhum rio ou cidade o fazem. só os poetas, à margem do lápis: caniço pensante na maré vazante da linguagem.


Por outro lado, ai de alguns poetas se não fossem os rios e as cidades. Mas rios e cidades não só como núcleos temáticos, mas também como veios seminais de sua própria poesia. Cito apenas dois, mas poderia citar dezenas. Lembro Charles Baudelaire e Joaquim Cardozo, testemunhas das reformas arquitetônicas por que passaram as cidades de Paris e do Recife. Quero dizer: essas duas cidades deram a régua e o compasso (lembrar que Cardozo foi engenheiro-calculista) com os quais os dois conseguiram emprestar foros universais à sua poesia. E mais universais ainda porque não se alumbraram diante do novo, pois novo, novo mesmo, moderno, e na medida em que questionava o progresso que “constrói e destrói coisas belas”, foi e continua sendo a poesia de ambos.

Pois bem. Se “Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto”, a poesia do primeiro Joaquim Cardoso tentou reconstituir, através do poder transfigurador da linguagem, o rosto de parte do antigo Recife convertido em ruínas em nome de um propalado progresso. (Claro que, por refazer o tecido esgarçado do tempo pretérito, a poesia de Cardoso pode soar saudosista, embora o saudosismo esteja longe de ser a pedra fundamental dos seus poemas).

Todas essas considerações vêm a propósito do livro “A cidade poética de Joaquim Cardozo”, cujo subtítulo –“elegia de uma modernidade” –, embora possa parecer paradoxal, apreende, de forma lapidar, o clima dos poemas nele insertos. Deixemos que nos fale a própria Moema Selma D’Andrea: “No caso d’As Alvarengas”, o conflito das transformações urbanas amplia a ambiguidade do tratamento lírico que envolve atributos caracterizadores do espaço rural: campos saqueados, solos vencidos, florestas despedaçadas. É visível o queixume do poeta em favor da natureza saqueada”.

Ou seja, o canto triste, próprio da elegia, substitui a ode, o canto de louvor, o discurso encomiástico, laudatório, com que um poeta ingênuo, certamente, enalteceria as ruas de um Recife cujas transformações copiavam, de forma servil e febril, o estilo belle époque da então capital internacional, espécie de umbigo do mundo, que era a Paris de Baudelaire.

Mas o título “A Cidade poética de Joaquim Cardozo” é também outro achado de Moema. Diria mais: um achado poético. E poético porque diz bem do quanto a poesia lírica, diferentemente do que muitos pensam, pode se converter numa espécie de trincheira de luta, de resistência, na medida em que não engrossa o coro uníssono da unanimidade. Consiste, então, numa voz subterrânea, que, às vezes, convoca outras vozes a se agruparem com ela, a concordarem com ela e, sobretudo, a subverterem valores tidos como irreversíveis, pétreos, imutáveis.

Daí a cidade poética de Joaquim Cardozo, longe de representar uma cidade invisível, se constituir numa cidade concreta, toda ela erigida a partir de um tipo de linguagem que questiona, desde os seus alicerces, as transformações de uma parte do Recife que se converteu numa espécie de Paris periférico.

Às reformas arquitetônicas operadas no Recife, a população denominou de “bota abaixo”. Expressão que, mais do que significar endosso, aprovação, a mim me parece soar como uma sujeição do populacho diante de um fato já consumado desde a sua origem. Quer dizer, no “bota abaixo” está implícito a prepotência dos donos do poder de todos os tempos e lugares, restando-nos, apenas, o consolo de que, à política de terra arrasada, correspondeu a cidade poética de Joaquim Cardozo, esta indestrutível, consolidada para todo sempre, porque construída através da linguagem, a verdadeira “morada do ser”.

O livro de Moema, a cidade de Moema, reivindicou da exegeta que ela o é um verdadeiro aparato teórico que recobriu várias formas do conhecimento humano, desde o da literatura, passando pela sociologia, pela antropologia, até o da história e o da arquitetura. Isto tudo aliado à intuição, à sensibilidade de uma leitora atenta aos meandros dos poemas de um poeta que só tardiamente teve a publicação de sua obra completa pela editora Nova Aguilar. Moema Selma D’Andrea, então, torna-se responsável pela perenidade de um poeta cuja vocação póstuma – e lembro aqui Dante de Milano – somente não se efetivou porque, entre os oficiais do mesmo ofício, e entre os leitores verazes e vorazes de sua poesia, sempre houve quem reunisse e cuidasse dos muitos poemas dispersos, alguns temporariamente extraviados, que deixou ao longo da vida.

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REGISTRO
De princípio, eu pensei em escrever que Márcio Catunda passa em revista os muitos poetas visionários da França. No entanto, mais do que passar em revista, ele se aprofunda não só nos aspectos biográficos de cada um deles, como também na obra e nos mecanismos de criação de Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Breton, Aragon e muitos outros que compõem a galeria ilustre desse “Paris e seus poetas visionários” (Imprece, Fortaleza, Ceará, 2021), em cuja orelha Anderson Braga Horta, poeta e ensaísta, observa: “O resultado são estes retratos incisivos e sensíveis, reunidos num mesmo ‘salão’ pela pena hábil e sensível do nosso poeta”.

Lembrar também que Márcio Catunda, além de ensaísta, é poeta da melhor cepa. Obrigado, amigo, pela remessa do livro.

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  1. Parabéns pelo texto. Joaquim Cardozo é, também, autor da destacada peça teatral "O Coronel de Macambira". Cardozo é um escritor pouco lembrado. Morreu angustiado pela tragédia da Gameleira, em que morreram mais de 60 operários e outros 100 ficaram feridos. Ele era o engenheiro calculista da obra, que tinha o projeto de Niemeyer.

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    1. verdade, flávio, cardoso é meio esquecido. gosto muito de um ensaio de josé guilherme merquior no livro "razão do poema". e obrigado.

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  2. Sempre Parabéns Sérgio! Pela poesia, por trazer Moema, e as cidades citadas. Aprendo sempre. abraços

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