Peço ao leitor saído de um curso universitário de Ciências Humanas, como o de Arte, que foque e concentre suas lentes na maré de dejeto...

Lixão sem máscara

sociologia sociedade pobreza miseria
Peço ao leitor saído de um curso universitário de Ciências Humanas, como o de Arte, que foque e concentre suas lentes na maré de dejetos tecnológicos conhecida por lixeira urbana. E por que isso? Pelo fato de terem recentemente os lixões – em São Paulo, maior centro urbano do país – se constituído em atrativo, ou mais que isto, em imperativo, para o número se não expressivo pelo menos considerável de artistas que ali se entregam a um tipo de garimpo adesivado pelo meio acadêmico com a tarja Pesquisa de Campo.

Alguns desses artistas são já premiadíssimos em mostras de grande porte, dadas temporariamente em santuários da Arte — como o MASP de São Paulo, por exemplo —, e se constituem socialmente no otherside dos habituais catadores de lixo — situados estes alguns marcos abaixo da linha de pobreza –, quando ali comparecem em uma propositura "artística" com objetivos completamente avessos àqueles dos mais necessitados, ou seja,
sociologia sociedade pobreza miseria
J. Quaynor
catam no lixo migalhas de objetos em decomposição funcional para com eles trançar arranjos que, uma vez esterilizados e acantonados em alguma forma vaga mas esteticamente capaz de receber um título, estarão à mostra em bienais e exposições ditas "contemporâneas". Esses compósitos revestidos de algum verniz conceitual, cada dia mais distantes do entendimento do homem comum, parecem assumir o hermetismo de linguagem como forma eficaz de fugir à própria dicotomia interna e suas contradições inerentes ao argumento –, como se fora este um portador em larga escala dos, signos atomizados e/ou destrambelhados de uma imensa parte da chamada civilização ocidental, a que uma elite acadêmica e midiática, ostentatória de títulos e prebendas tenta ainda ressignificar em textos cada dia mais caídos em obsolescência literária.

Esse tipo de Arte reflete fielmente a civilização que lhe deu origem, e que hoje se encontra em processo de ruína sistêmica, decadente moral, econômica e tecnologicamente, que na primeira oportunidade que teve (final da Guerra Fria, depois da queda do Muro de Berlim em 1989) readotou um sistema econômico morto já nos finais do século XIX, o liberalismo econômico, e que portanto não dispunha de nenhuma justificativa racional para se impor novamente no mundo ocidental, uma vez que o maior dos desastres civilizacionais ocorridos no Ocidente – as guerras de 1914 e 1939 – foram produtos desse mesmo liberalismo marchetado por um imperialismo sem o menor cerimonial em adotar formas nazifascistas de convivência social.

Enquanto isso, no lado desesperado do lixão, ocupado pela pobreza famélica, a catação prossegue, e os trapos recolhidos voltarão a ser costurados e postos de volta a funcionar segundo novas atribuiçãos de objetos, numa espécie de reinvenção exdrúxula, anacrônica e cruamente non sense que o pobre povo brasileiro se vê continuamente na opção de reinventar, seja na adaptação de novos utensílios para dentro de seus “lares” pingentes e tremebundos, em situação topográfica tão imprópria como leitos de rios sufocados por tralha de toda espécie, terrenos escarpados de morros,
sociologia sociedade pobreza miseria
J. Quaynor
espaços públicos esquecidos etc., para isto tentando utilizar aquilo que buscaram arrancar da montanha de vômitos e diarreia consumista de uma elite abastada, absurdamente cevada na perversidade social.

Nem falemos na oclusão midiática de tanta miséria a que seus irmãos de espécie (melhor nomeá-los assim, pois é ridículo a esta altura da luta de classes no Brasil usar expressões completamente alijadas da realidade, como, por exemplo: compatriotas) estão condenados. O salão de exposição desses desventurados serão, por compensação, as ruas, onde essas verdadeiras obras de Arte desfilarão sua corte de assombros ao passarem espremidos e bem pertinho dos automóveis e carrões ostentados pela elite social indiferente.

O nosso pais pode e DEVE ser visto, infelizmente, pela ótica da verdade histórica de seus 500 anos, como A Fossa Mariana da desigualdade social e geopolítica; o grande buraco de uma Mina tida por inextirpável com sua extração faminta e diuturna de recursos a preço mínimo para sustentação do capitalismo ocidental. Seria cansativo listar aqui os marcos alcançados pela população brasileira nessa corrida célere para a tragédia social e ambiental. Citemos apenas uns poucos dados de natureza macro-econômica:

1
É de longe o país com a maior lacuna salarial entre trabalhadores e agentes públicos do mundo. Somente pra se ter uma ideia, o ganho máximo de um Militar, Juiz, deputado, etc., na Alemanha é 18 mil e algum coisa (em Reais, e em valores de hoje, 4/6/22), enquanto seus congêneres no brasil chegam a ganhar às vezes muito acima do permitido por lei, com seu teto prefixado constitucionalmente pelo salário do Presidente da República. Há casos desses privilegiados recebendo acima de 300.000,00 reais/mês. Nem vamos falar no salário básico dos trabalhadores, em que a diferença em benefício do trabalhador alemão é de 200% a 300%.

2
Um vereador de qualquer minúscula cidade dos rincões brasileiros recebe uma quantia que o torna um marajá diante da grande maioria de seus conterrâneos, quando não há mais o que ocultar: esses endinheirados representam para o Brasil a versão atualizada e multiplicada por mil daquela triste figura do Capitão do Mato, encarregados de manter a senzala em ordem. Ainda por cima, regiamente pagos com a riqueza gerada pelo oprimido trabalhador brasileiro.

3
É o país que sofreu em menos tempo o maior retrocesso de PIB em época de paz que se conhece: de 6ª Economia Mundial caiu para 14ª em apenas 8 anos.

Com os cortes recentes em programas sociais como o Bolsa-Família, o Brasil voltou a ser um dos campeões mundiais da desigualdade de renda, e desde os anos 90 vem crescendo no quesito desigualdade de patrimônio, que se abrandara um pouco através de programas sociais como Minha Casa, Minha Vida, já suspenso.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também