Vi o soldado paraguaio avançar em minha direção em passo de ganso, baioneta em riste, eu imóvel, as mãos pra trás, segurando o boné, ...

Eu vi

Vi o soldado paraguaio avançar em minha direção em passo de ganso, baioneta em riste, eu imóvel, as mãos pra trás, segurando o boné, o infeliz se aproximando como um robô, até o comandante gritar uma ordem em guarani, o que o fez estacar recolhendo a arma pra vertical junto ao peito, os calcanhares das botas batendo com eco no salão em que estava o túmulo de Solano López, no panteão que fica no centro de Assunção. Aí, nova ordem, giro do soldado, calcanhares batendo de novo, ele se foi, voltei pra continuar a ler a placa de bronze, o boné sempre nas mãos que mantive o tempo todo para trás, eu imaginando que aquilo tudo se devera ao fato de eu usar barba, o que era proibido, lá, naqueles sombrios anos 70.

Waldemar José Solha, no filme A Canga, direção de Marcus Vilar, (2001)
Vi o Babalorixá de Fortaleza dizer que eu era Exu, já que, como o “Pai de Santo”, apagara as velas na boca e deixara as mãos e os braços queimarem na cachaça que me pedira pra comprar, dançara descalço, com ele, nas labaredas no chão. Quando repeti a cena no ensaio de minha peça A Canga, em Pombal, fiz questão de que todo o elenco fizesse o mesmo, pois “aquilo era um truque pra impressionar, só isso!”

Vi Antonio Barreto Neto – Barretinho – dizer que havia um concurso novo, nacional, no Rio, que não só dava prêmio em dinheiro, como – pela primeira vez - garantia a edição do romance vencedor por uma grande editora. “Mande o Israel Rêmora pra lá. Se não pegar o prêmio, não acredito, mais, em concurso literário neste país”. Quando eu soube que ganhara a coisa, fui à redação de A União, onde ele trabalhava, parabenizá-lo.

Mas vi a poeta Stella Leonardos me dizer, no Rio, que na verdade meu outro livro concorrente, A Canga, ganhara por unanimidade, mas como havia a obrigação do lançamento do romance vencedor, acharam melhor transferir o “Fernando Chinaglia” para o Israel Rêmora, ... por causa da Ditadura.

Vi a Vitória de Samotrácia, no Louvre, deslumbrado pela genial ilusão de transparência do peplo – o vestido da deusa – obtida no mármore, o umbigo e os bicos dos seios daquela bela mulher alada e poderosa, visíveis no que ela dava impulso pra decolar da proa de um navio.

Vitória de Samotrácia, Museu do Louvre (Paris) Alexandra Lande
Toca o telefone, é Flávio Tavares me parabenizando pelo ensaio ilustrado, que publicara no Correio das Artes, mostrando como o impressionista Monet – ao contrário de Cézanne, que seguira o exemplo de Hokusai em suas 36 vistas dos monte Fuji, fazendo o mesmo com o Sainte-Victoire – repetira a série com enorme sutileza, ao também produzir suas dezenas de telas, mas pintando o movimento de trens e vapores na gare Saint-Lazare, sempre dominada pelo cone do Fuji ... repetido no vão sob o teto da estação.

Vi meu irmão de 80 anos morrer. Sorocaba, 2015. Eu de pé, de um lado do seu leito no hospital, a mulher de um dos filhos dele, médica, sentada, do outro, os dois acompanhando os últimos momentos do Ney, ela murmurando, bem junto dele, “Vá em paz, vá em paz...”. Vi quando a latejante carótida do agonizante em coma de repente parou e, do outro lado do mano, a lágrima descer no rosto de sua nora.

Waldemar José Solha, com seu neto Israel
Vi meu sogro, oitenta e tantos anos, já sem memória, me surpreender com uma resposta genial, quando lhe perguntei como estava: “Uma mercedes, mas o motorista não presta”.

Vi meu neto Israel, muito pequeno, me perguntar, quando me viu assistindo a mais um velho filme em preto e branco: “No seu tempo o mundo não tinha cor?”

De meu gabinete, em Pombal, ouvi Ione me chamar da cozinha: “Venha ver isto!” Fui e vivi um momento sagrado: um ovo quebrado num prato, um pequeno coração latejando em meio às líquidas gema e clara. “Como pode?!”

Vi, no ensaio geral do Oratório Via-Sacra, semana santa de 2005, igreja de São Francisco, os versos de cordel que a Professora Ilza Nogueira me havia pedido, sendo preparados pelo maestro Carlos Anísio frente a uma sinfônica, corpo de dança, coral, Zezita Matos e Osvaldo Travassos Sarinho como narradores e – surpresa: tudo com músicas de Stravinsky, Manuel de Falla, Alban Berg, meu relato da ressurreição - que é a dos seres humanos em seus filhos e netos – incorporados à deslumbrante Ressurreição, de Mahler.

Vi a coreógrafa Stella Paula me deter quando eu ia acionar a trilha sonora de Eli-Eri Moura para um trecho de meu espetáculo A Verdadeira Estória de Jesus, Teatro Santa Roza, 1988, perguntar-me o que eu pretendia com a cena, e mobilizar o elenco – Jorge, Dema,Sebastião e Melânia – segundo ela , “Jorgeiev, Demarof, Sebarichnikov e Ana BotaTerra”- e , cena armada, dizer-me: “Agora solte a música”. E vi, incrédulo, que tudo estava exatamente como deveria estar. “Como isso foi possível?!”

Cena de A verdadeira estória de Jesus, peça teatral de Waldemar José Solha (1988-1990)
Vi meu chefe chegar – agência centro do Banco do Brasil, Praça 1817, João Pessoa, 1988 ou 89, e me dizer que eu deveria refazer o estudo de financiamento para uma de nossas grandes usinas de açúcar e álcool, a que eu indicara indeferimento. “Mude os cálculos e dê o parecer favorável”. “Mas chefe, isso seria uma operação suicida: a empresa está devendo às tulhas e vai quebrar!” “É ordem de Brasília”. “Pois que Brasília assuma!” “O gerente quer o parecer favorável”. “Desculpe, mestre, mas não vou fazer isso”. Estupefato eu o vi me pedir o formulário, eu lhe dei, ele foi à própria máquina de escrever e fez o que “deveria ser feito”. Meses depois eu o vi levando literais gritos de um inspetor.

Ouvi os gritos de dor de um dos figurantes de minha peça ”O Vermelho e o Branco”, 1968, que morava quase em frente à minha casa, em Pombal. Dormira ao lado da fogueira, numa festa junina, jogaram combustível nela, ele foi atingido, o médico me disse que era caso perdido. No dia seguinte, vi o movimento em frente à agência do BB, de que eu era o subgerente: como não havia interurbanos lá, na época, pedia-se que o rádio da coletoria, que ficava ao lado, fosse acionado para chamar parentes do agonizante, que moravam fora.

O autor como Chefe da Carteira Agrícola do Banco do Brasil, em Pombal (PB), e equipe de colegas da de agência, em 1967
Terrivelmente angustiado, voltei a meu birô, mas, sem suportar – sem fé a que apelar – levantei-me, fui ao banheiro, tranquei-me nele por dentro e, de repente, fui jogado contra a parede, ... “vi” algo como um vórtice de energia descer do céu sobre a casa do rapaz, entrar no corpo dele, foi um momento terrível, de que logo voltei ao normal, olhei para o espelho sobre a pia, vi que estava muito pálido, lavei o rosto, voltei ao trabalho, e foi quando me disseram que a mensagem pelo rádio fora suspensa: o meu figurante se restabelecia a olhos vistos. Isso me deu a ilusão de que tinha feito algo sobrenatural. E se repetiu, em seguida, com o caso do juiz, Dr. Nelson, e com o caso do colega do BB, Marco Antonio e seu derrame de pleurisia.

O autor e sua filha Andreia
E, já em João Pessoa, com minha filha Andréia, que tivera um desmaio, inexplicável, depois do almoço, e isso já durava na madruga quando, na calçada do Amip, repeti a operação, com mais um aparente sucesso. A coisa toda me lembra, hoje, uma sequência do filme Rosencrantz e Guidenstern estão Mortos, quando o personagem do excelente Gary Oldman, andando a cavalo, joga uma moeda pro ar, vê-a cair no pulso, diz “Cara”. De novo: “Cara”. De novo: “Cara”. Meu primeiro insucesso foi com a irmã do guitarrista Alex Madureira. Eu trabalhava ao lado do pai dele, na agência Varadouro, do BB, quando o vi chorando. Era a filha, morrendo com um tumor no cérebro. Fiz a coisa toda, a moça morreu. Depois foi minha mãe. Câncer no útero. Perdi-a. Nem tentei com meu irmão. Nem como meu filho – ex-parceiro do Alex – e que também se foi. Tudo muito esquisito. Que fazer? Transferi essa experiência para o protagonista de meu romance Relato de Prócula, sabendo que – realmente – neste mundo nada se cria, ... nada se perde.

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