Domenico Di Masi se despediu da vida na semana passada. O sociólogo italiano que se tornou famoso também pelo conceito de "ócio c...

''O Ócio Criativo''

Domenico Di Masi se despediu da vida na semana passada. O sociólogo italiano que se tornou famoso também pelo conceito de "ócio criativo", segundo o qual o ócio, longe de ser negativo, é um fator que estimula a criatividade pessoal. Conceito esse que foi contra tudo o que aprendemos desde a sociedade vitoriana com o seu senso de dever, ao capitalismo selvagem, em que tempo é dinheiro e você vale pelo que produz. O irônico é que, em mais de 40 obras, Di Mais escreveu sobre o trabalho. A atividade intelectual sempre foi renegada a um lugar às margens, como também a atividade artística. A de professora igualmente, pois pensa-se que o conhecimento cai feito um facho de luz nas nossas cabeças. E que os livros são objetos diletantes. Também.

Vermeer
No caso das mulheres, esse conceito do ócio era algo sempre inimaginável e inalcançável. No século XIX, sem geladeira nem artefatos domésticos, com muitos filhos, rotina extenuante, morte cedo e o marido fora para buscar o sustento, as mulheres nunca souberam o que era ócio. Ainda hoje somos mal vistas se temos tempo para isso. Ainda faziam doce, costuravam, cortavam lenha, salgavam, remendavam, ordenhavam, plantavam e tricotavam. Só para citar alguns verbos/tarefas do cotidiano das mulheres, ainda muito menos do que faziam. E fazem!

Foi a escritora inglesa, Virginia Woolf, no seu livro ensaio — Um teto todo seu — que criou o conceito de que para a mulher poder escrever ficção (e aqui ela se refere somente à literatura), ela tinha que ter dinheiro (independência), lazer, e um teto todo seu (um espaço físico e subjetivo) para que algo fosse capaz de florescer. Um título que representava o espaço de privacidade e intimidade para a criação; um espaço físico e metafórico para as mulheres ocuparem a esfera da criação literária, dinheiro, lazer e um ócio todo seu. Um teto, como espaço libertador, em oposição ao quarto de confinamento da mulher do século XIX e um passeio na história da literatura inglesa apontando o silêncio e as diferenças encontradas pelas mulheres para exercerem seus talentos enquanto escritoras.

Virginia Woolf DGArt
Woolf, desde o início do século XX, pensava em questões como: "os homens bebiam vinho, as mulheres bebiam água; porque um sexo tão próspero e outro tão pobre; quais as condições para a criação da obra de arte? O dinheiro sim, seria um céu de possibilidades, abrindo caminhos para a liberdade de pensar as coisas. Um quadro é belo ou não?" Por muito menos, eu, uma mulher do século XX, aos meus 25 anos, me fazia essas perguntas: o que quero? O que acho? Como reajo? Como era difícil pensar por mim mesma!

As mulheres nunca dispuseram de meia hora para chamar de sua, sempre foram interrompidas. Seja pelo trabalho, carga mental, seja pelo machismo, autoritarismo, opressão e/ou violência de todas as formas. Ainda hoje temos esse modelo perpetuado. E no caso da ficção, Woolf observava que escrever ficção exigia menos concentração; um gênero literário baseado na observação, na análise do caráter e da emoção. E para as mulheres, que lugar seria mais indicado para esse exercício do que a sala de jantar? Cuidando das crianças, dos idosos e das batatas no fogo, a mulher poderia interromper seu mergulho na ficção para atender essas demandas, sem amargura e sem medo. Ao contrário de outras formas de literatura, como o ensaio ou, e principalmente a poesia, formas que exigiriam o foco, a disciplina, a concentração na linguagem, coisa que, por entre os cuidados com a casa, seriam impossíveis.

Celyn Kang
Woolf também foi autora da célebre frase, o que só corroborava com o conceito de De Masi: “It is in our idleness, in our dreams, that the submerged truth sometimes comes to the top” (É através do nosso ócio, dos nossos sonhos, que a verdade submersa, algumas vezes, pode vir à tona. Tradução minha).

Outro ensaio sobre o estado de criação das mulheres e o espaço do lazer é o canônico — “In Search of Our Mother's Garden” —, título de um ensaio autobiográfico da escritora americana Alice Walker, mais famosa por seu romance A Cor Púrpura, que traduzindo ao pé da letra seria: “Em Busca dos Jardins das Nossas Mães”. Ensaio esse através do qual Walker explora as dinâmicas do empoderamento que a própria autora percorreu, por meio de seu próprio matrilineage, ou seja da herança/linhagem materna, em que ela pensa e mergulha no tema. “Eu notava que somente quando minha mãe estava trabalhando com suas flores é que ela era radiante, quase ao ponto de se tornar invisível – exceto como Criadora: mão e olho. Ela se envolvia no trabalho também com sua alma; por ordem no universo, numa imagem da sua concepção pessoal da beleza. Sua face, enquanto preparava a Arte que era seu dom, é um legado de respeito, por tudo que ilumina e exala da vida...Para ela..., ser uma artista ainda era uma parte diária da sua vida. (Tradução livre)”

Viva o “Ócio Criativo" de Domenico Di Masi, viva as escritoras mulheres que pensaram e defenderam o ócio das mulheres, coisa difícil até os dias de hoje.

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