Todos os anos, no dia 31 de março, ele me dava os parabéns e contava como foi aquele dia complicado que eu resolvi nascer. Deixou mamãe na maternidade Frei Martinho, recomendou cuidados a enfermeira, prometendo um “agrado” e correu de volta pra casa: foi queimar os livros que poderiam ser taxados de “esquerda”. O medo já tinha se instalado no país com informações de um golpe dos militares. De repente, batem na porta. Eu imagino que ele deve ter se assustado. Era meu avô que chegou de surpresa, vindo do Recife, onde morava. Trazia uma “encomenda, para esconder aqui em João Pessoa”. Era meu tio Geraldo Kleber, que veio na mala do carro.
Orlando Brito
Ninguém da nossa família sofreu violência física, talvez porque papai não fosse esquerdista – era um homem culto, que não rechaçava nada por radicalismo. Mas, vai saber? Várias mortes não tinham nenhuma lógica. Ele tinha sido secretário da UNE, no Rio, alguns anos antes do golpe... Existia uma tensão no ar representada nas imagem que dava medo de cinco presidentes militares consecutivos e nas ações de cada ato institucional que rasgava a Constituição.
Memorial da Democracia
Faço 60 anos e a ditadura, também. Durou 21 anos e a vida de muitos. Nem nos meus piores pesadelos poderia imaginar que uma tragédia daquelas ameaçou voltar, recentemente, mostrando como tudo ainda é frágil, no Brasil. “É preciso estar atento e forte”. A conversa com papai, todos os anos no dia do meu aniversário sempre terminava com ele se mostrando culpado. É que quando foi buscar mamãe e eu, na maternidade, não encontrou mais a enfermeira para dar-lhe a gorjeta prometida. “Eu devia ter voltado, outro dia”, dizia.
Wellington e Rosa Aguiar Acervo da autora