A que nos leva a saudade? A tentar, de algum modo, reconstruir memórias agradáveis que dão sentido ao passado e projetam no futuro a ânsia de repetição do prazer. Escondido e disfarçado nos labirintos do inconsciente, um alimento surgia, com recorrência, da infância: o pão... especificamente um determinado tipo de massa servido há muitos anos, no Convento dos Capuchinhos.
“A repetição é uma maneira de recordar e está a serviço do princípio do prazer”. (Freud)
Meina Yin
O gosto inesquecível seguiu adiante, na procura, no desejo do resgate indecifrável. Assim vieram os cursos de culinária e o interesse prático por pães e receitas sucediam à curiosidade regressiva. Variações sobre o mesmo tema: pães de aveia, de cerveja, queijo, beterraba, coco, cenoura, azeite, grãos integrais, rúcula e tomate, batata, jerimum, macaxeira, enfim, explorando a farinha e suas mil promessas... e o mais trabalhoso: o pão francês, que exigia uma pequena forma ao lado, com água fervente, para obter uma casquinha crocante. No entanto, a investigação continuava…
“Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo”. (Fernando Pessoa)
Quem sabe o alvo dessa procura perdera-se e não poderia mais voltar, da mesma forma que o Convento, hoje transformado em Condomínio Residencial, ou que o frade amigo da família e todos os adultos da cena original?
@Artviva
“Tirei da minha bolsa um grande pedaço de pão, uma xícara de couro e frasco de um certo elixir para misturar com água de neve”. (Baudelaire)
A história seguia seu curso entre a esperança e o desânimo, mas ao mesmo tempo uma dúvida se formava: será que realmente encontraria aquele pão?
Padaria Carneiro
A padaria indicada, na esquina, era propriedade de uma fábrica de bolachas e biscoitos, revendidos em toda a Paraíba. Duas filas paralelas de pessoas saíam do estabelecimento e se estendiam até o leito da rua. Tantos fregueses, indício de boa qualidade dos produtos!
“O desejo de um alimento simples é uma redução dos próprios desejos aos naturais e necessários”. (Epicuro)
Duas atendentes corriam com os pedidos, anotando os códigos correspondentes em pedaços de papel. Alguém indagou sobre o horário de funcionamento durante a Semana Santa que se avizinhava.
Um homem idoso, de baixa estatura, cabelos prateados, roupa surrada, chinelos de couro gastos, quase a tocar o chão, estava sendo atendido pelo caixa. Enfiou as mãos nos bolsos e retirou um bolo de dinheiro em notas de dois reais. Separou cuidadosamente poucas cédulas e as guardou no
MS
“Talvez não houvesse mais nada a dizer que nossos olhos não tivessem compreendido”. (Grégoire Bouillier)
A atitude do solidário senhor fez lembrar um certo padre que, em São Paulo, luta e trabalha pelos moradores de rua, os excluídos, os sujos, inconvenientes, abandonados…
Já de posse do pão que motivou a empreitada de recuperação da infância, restavam o sabor e o prazer que, na verdade, estariam em compartilhá-lo com os outros, principalmente com os menos favorecidos, viver a partilha na completa acepção da palavra. A conclusão impôs-se: a cena da infância continha exatamente o que não aparecia em primeiro plano − a cestinha com os pães do desejo foi passando de mão em mão, já que o pão caseiro sempre se destinava a diferentes sorrisos…
Ao retornar pela praça da igreja, uma música ressoava em alto som e remetia à Pascoa e a quem de direito dividiu o próprio Corpo.
“O pão da vida és tu, Jesus, o pão do céu,
O caminho, a verdade, via de amor”.
(canção de Pe. José Weber)