Ontem eu olhava encantada umas folhinhas recém-nascidas. O verde-claro contrastava com um céu cor de chumbo a prenunciar chuva, image...

Pequena história de amor

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Ontem eu olhava encantada umas folhinhas recém-nascidas. O verde-claro contrastava com um céu cor de chumbo a prenunciar chuva, imagem que imediatamente me remeteu ao ciclo de renovação que é associado à Páscoa. As minúsculas folhas resistindo ao vento inclemente pareciam um triunfo do amor mais puro sobre as sombras do mundo. Instintivamente sorri, certa de que esse poema vivo que é a natureza por vezes nos oferece conforto e esperança
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V. Emilia
em meio ao caos e às incertezas desses tempos turbulentos de divisão, conflito e sofrimento.

Uma furtiva lembrança então se esgueirou. Era uma doce manhã de verão e eu estava sozinha na Chiesa della Pietà, em Veneza. Na serenidade da igreja em que Vivaldi compôs algumas das mais belas peças barrocas, eu chorava mansamente. Trazia o coração pesado de dor e me refugiei no local em que nasceram obras de arte que atravessariam os séculos e falam diretamente ao meu coração.

Nos fones de ouvido eu ouvia um trecho de Nisi Dominus, “Inútil comer o pão das dores”, o que me fez pensar que desde o século 14 recém-nascidos eram deixados ali para serem cuidados pelas irmãs da Consorelle di Santa Maria dell’Umiltà. Justamente naquele lugar de abandono floresceram algumas das mais magníficas artistas dos séculos 17 e 18, como Anna Maria della Pietà, virtuose do violino, compositora e aluna de Vivaldi, a quem ele dedicou diversas composições. As performances de música sacra por órfãs cantoras e musicistas atraíram visitantes de toda a Europa. Uma vitória conjunta do amor e da arte.


Histórias assim nos convidam a olhar além da superfície das coisas e a confrontar as sombras que desejam nos manter paralisados pelo sofrimento. São delicadas recordações de que o amor pode transformar a dura realidade e um apelo a acender as luzes da casa interna, adotando a coragem como lema, apontando roteiros de autosocorro e pacificação.

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M. Jong
Naquele instante me dei conta de que às vezes o nosso juízo se confunde e o que consideramos fim talvez seja um novo começo; quem sabe o ponto de partida do reerguimento, os primeiros passos de uma longa jornada de reabilitação impulsionada pelo amor próprio.

Saí do templo e pisquei diante do sol radiante. Eis a brisa vinda do mar, o barulho das ondas nas gôndolas, os turistas ruidosos tagarelando. Nada havia mudado no mundo. Mudei eu. Nesse instante, como numa coreografia, explodiram nos meus ouvidos as notas festivas da Primavera das Quatro Estações. Sim, é a mais conhecida obra de Vivaldi, mas não a subestimo: ela traz escondido na partitura um jeito de fazer brotar inesgotável alegria e plantar esperança no coração de quem a ouve.

Gosto de pensar que a música de Vivaldi – assim como a de Mozart e Bach – são um trunfos escondidos nas dobras do tempo, sussurros risonhos da eternidade nos convidando a olhar para a grandeza que carregamos.

Link para a publicação original >>> soniazaghetto.com
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