Soledade, minha avó paterna, costumava anotar em caderninhos de capa dura acontecimentos de grande importância na vida da família. Car...

Dos Itas e outros barcos

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Soledade, minha avó paterna, costumava anotar em caderninhos de capa dura acontecimentos de grande importância na vida da família. Carminha, a filha mais velha, saiu à mãe, de quem também guardou parte daquelas anotações. Em alguns casos, deu continuidade a episódios interrompidos pela morte dolorosa, inaceitável, da dona dos cadernos.

Da Vó Sole a Tia Carminha também herdou outros bons hábitos. Fazer pirulitos foi um deles. Aquelas porçõezinhas vitrificadas de mel com limão, ou com maracujá, espetadas em palitos,
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Pirulito de mel@lhortencio + @gerusa
nunca me saíram da memória. Sementinhas exibiam-se na transparência daqueles cones duríssimos feitos de açúcar e sumo a fim de demonstrarem a legitimidade do sabor: maracujá puríssimo. Mas isso nem seria preciso, pois a honestidade de mãe e filha, que também punham seus doces à venda, era, por si só, um certificado de qualidade daquilo que ia aos balcões de mercearias, ou aos tabuleiros de meninos para a venda ambulante nas calçadas.

Foi a Tia Carminha – anos atrás, quando os santos já se preparavam para arrebatá-la – que me mostrou, em letra bonita, bem desenhada, o lamento da mãe em razão da partida do filho Juca, meu pai. Nascido em 1914, na pequena Juripiranga, meu velho – aos 20 e poucos anos, naquela oportunidade – apanharia o Ita do Norte, no Porto do Recife, para no Rio morar, tal como na canção de Caymmi. Mas, no seu caso, tudo não passaria de uma escapadela de poucos meses, em busca de trabalho. Logo estaria de volta à barra da saia da mãe e ao aconchego dos seus. Depois disso, ganhou uma grana do meu avô, casou-se com minha mãe e montou padaria em Pilar, cidade vizinha.


É a leitura de um artigo no site “Defesa em Foco” o que me traz essas velhas lembranças. Diz o título: “Navios Ita: a história esquecida da navegação brasileira”.

Não sei em qual daqueles paquetes meu pai subiu com destino ao Rio de Janeiro. Mas sei que pertenciam à Companhia Nacional de Navegação Costeira e eram de três tipos: pequenos, médios e grandes, todos a serviço da cabotagem nacional. O comprimento dos menores não passava de 60 metros, enquanto o dos médios ia de 80 a 90, comportando 140 passageiros. Os maiores podiam chegar a 120 metros da popa à proa e acomodar 280 viajantes. No Brasil carente da aviação e sem estradas decentes, eles eram a melhor opção para médio e longo percursos, embora lentos, pois movidos a vapor.

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Anúncio da Companhia Nacional de Navegação Costeira, destacando a rota de cabotagem (porto Alegre a Belém) e a capacidade dos paquetes Itapé, Itaquicé e Itanagé ▪ Fonte: YT Navegação BR
Todos começando por Ita, uma bela reverência à língua Tupi. Havia nomes como Itaberá, Itagiba, Itaguassu, Itaimbé, Itapagé, Itapé e Itapema, ao que leio. Dois deles – o Itagiba e o Itapagé – foram torpedeados por submarinos alemães da classe U-Boat, o primeiro em 17 de agosto de 1942 e, o segundo, em 26 de setembro de 1943. Perderam-se 36 vidas no primeiro caso. No segundo, dada a proximidade com praias alagoanas, salvaram-se 84 dos 106 ocupantes.

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Primeira página do jornal Diário de Notícia, 02.10.1943. ▪ Fonte: Hemeroteca BR
Minha fonte não esclarece se ambos os afundamentos ocorreram por engano, posto que ambos os navios tinham rotas costeiras, ou seja, não serviam ao transporte de roupas, remédios e alimentos para os palcos da Segunda Grande Guerra, na Europa nem na África.

Navio para o transporte de cargas ao teatro da guerra foi, por exemplo, o Buarque, afundado em fevereiro de 1942 pelo submarino U-432, a 60 milhas do Cabo Hatteras, na Carolina do Norte. Em razão disso, José, oficial da Marinha Mercante e meu primo em
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Jornal A Noite, Rio de Janeiro, 18.02.1942 ▪ Fonte: Live Journal
segundo grau, ficou boiando um tempão em água fria até ser resgatado por um barco americano. Então morador do bairro de Jaguaribe, em João Pessoa, ele me contou, nos idos de 1970, essa história que terminei publicando no Segundo Caderno, da velha “A União”. Título que dei à matéria: “Eu vi o Buarque afundar”.

Por algum tempo, supôs-se que tais afundamentos – em número de 32 e com o total de 1.734 almas a bordo, entre tripulantes e passageiros – fossem coisa dos americanos para, culpando o inimigo, forçar a entrada do Brasil na guerra ante um Getúlio Vargas ainda relutante: o homem não sabia para que lado pender, se para o Eixo, ou para os Aliados. Mas, os estudiosos do tema não têm a menor dúvida quanto aos mergulhos furtivos da alcateia alemã com seus torpedos, na beirada das Américas, com o objetivo de interromper o suprimento de víveres para as tropas que enfrentavam as de Hitler e Mussolini.

“Mesmo esquecidos por muitos, os navios Ita foram ícones da navegação brasileira e deixaram uma marca indelével na cultura popular do país.
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Rotas de operação da Companhia Brasileira de Navegação Costeira, de Belém a Porto Alegre, com passagem pelo Porto de Cabedelo, na Paraíba. ▪ Fonte: Novo Milênio
Sua história serve como um lembrete da riqueza e diversidade da nossa história marítima”, diz o artigo do Defesa em Foco, assinado por Marcelo Barros.

Outras leituras dão-me conta de que, atualmente, o transporte de cabotagem no País não vai além de 30% de toda a navegação brasileira. O petróleo bruto e os derivados de petróleo são os produtos mais embarcados. As cargas em contêineres, a bauxita, o ferro e o aço vêm, em seguida, em ordem decrescente. Quem fizer tal uso de navios em rotas costeiras pode ter o custo do frete reduzido em até 62%, a acreditar-se no que informam os encarregados do Plano Nacional de Logística.

No País onde o frete rodoviário (caríssimo) recebe quase 70% das cargas, o que explicaria a pouca utilização do transporte aquaviário? Dois repórteres da Agência iNFRA, Bernardo Gonzaga e Dimmi Amora, têm a resposta: inércia do Poder Público, burocracia, o não fomento à competição, cartel e falta de planejamento.

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T. Fisk
É deles o lamento: “O Brasil tem uma estrada de nove mil quilômetros, onde não há engarrafamentos nem bloqueio de grevistas e quase nenhuma restrição de velocidade, ou peso. Essa estrada passa perto de onde vivem mais de 70% da população e foi deixada pronta bilhões de anos atrás. Se usada com regras racionais, poderia resultar numa economia superior a 80% em cada tonelada de produto transportado em relação ao custo desse mesmo item no transporte por caminhão, veículo usado para levar 65% de toda a produção nacional”.

Comungo das suas queixas e a elas acresço o desprezo histórico a uma malha ferroviária equivalente em comprimento à do Segundo Império, apesar dos acréscimos, nos corredores de minérios e grãos, da Transnordestina, Norte/Sul e outras ferrovias modernas. É preciso, agora, alertar que vivemos num País de dimensões continentais onde uma greve de caminhoneiros pode, de uma hora para outra, ser questão de segurança nacional. Até quando?

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  1. Pois, é, Frutuoso, até quando? Seu tema vai do passado ao futuro, passando pelo presente pouco estimulante do país. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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    1. - Grato, sempre, Gil, - Frutuoso Chaves.

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