A alteridade cultural constitui um elemento essencial na formação das identidades individuais e coletivas, uma vez que se configura a ...

Capital, cultura e alteridade

A alteridade cultural constitui um elemento essencial na formação das identidades individuais e coletivas, uma vez que se configura a partir da relação dialógica do sujeito com sistemas simbólicos e expressões culturais que lhe conferem sentido de pertencimento, tanto em relação ao grupo social ao qual integra quanto à sua historicidade e à construção de uma percepção de mundo. Nesse contexto, a música erudita, quando difundida por meio de perspectivas democráticas e inclusivas, pode desempenhar uma função relevante nos processos de integração sociocultural, ao mobilizar narrativas vinculadas à ancestralidade e à memória coletiva, promovendo, assim, políticas afirmativas para a consolidação da dignidade humana.

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A música erudita, desenvolvida em contextos sociais dominados pela aristocracia, pela Igreja e por instituições acadêmicas, consolidou-se no imaginário cultural como um patrimônio de grupos privilegiados. Nesse cenário, os demais indivíduos passaram a ocupar o papel de ouvintes passivos, muitas vezes desprovidos do entendimento de seu significado. Essa distinção foi reforçada por espaços simbólicos — como teatros de ópera, salas de concerto e conservatórios — que frequentemente atuaram como barreiras invisíveis à participação das populações periféricas. Dessa forma, a música erudita passou a ser consumida como um marcador de mérito e distinção social, conforme observo nas análises do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930–2002) em sua obra A distinção: crítica social do julgamento, publicada em 1979, ao discutir a noção de capital cultural.

Pierre Bourdieu conceitua o capital cultural como o conjunto de conhecimentos, habilidades, disposições e bens simbólicos que um indivíduo adquire ao longo de sua trajetória social, os quais podem ser mobilizados para obter vantagens econômicas, educacionais e de prestígio hierárquico. Segundo o autor, a distribuição desigual desse capital entre os indivíduos e grupos sociais contribui diretamente para
Pierre Bourdieu @r/sociology
a reprodução das desigualdades sociais, sobretudo no campo educacional. O sociólogo francês destaca que o capital cultural, especialmente em suas formas incorporada e institucionalizada, desempenha um papel central na manutenção das estruturas de dominação, favorecendo a mobilidade social apenas daqueles que possuem acesso privilegiado a esses recursos. Ele desenvolveu esse conceito com o objetivo de compreender os mecanismos sutis pelos quais se reproduzem o preconceito e a exclusão, mesmo em sociedades que afirmam valorizar a diversidade e a igualdade de oportunidades.

De acordo com a teoria bourdiana, em livro citado, analisa as relações entre estrutura e ação social, buscando compreender como as estruturas sociais influenciam o comportamento individual e como as práticas sociais, por sua vez, reproduzem ou transformam essas estruturas. Por exemplo, as instituições escolares ou culturais tendem a legitimar como universal uma cultura particular — aquela produzida e valorizada pelas classes dominantes — transformando-a em capital simbólico. Esse processo serve para justificar a superioridade de seus detentores e manter as hierarquias sociais. Bourdieu identifica três formas principais desse fenômeno:

▪️ Capital cultural incorporado - Refere-se aos conhecimentos, competências e disposições internalizadas por meio da socialização, como domínio linguístico, preferências estéticas e hábitos culturais, que exigem tempo de aquisição e são indissociáveis do corpo do indivíduo;
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▪️ Capital cultural objetivado - Corresponde aos bens materiais portadores de valor cultural, como livros, obras de arte e instrumentos musicais, cuja apropriação requer, em geral, o capital incorporado para que seu uso simbólico seja efetivamente reconhecido;
▪️ Capital cultural institucionalizado - Diz respeito às credenciais formalmente reconhecidas que podem gerar oportunidades, como diplomas e títulos acadêmicos, que conferem legitimidade e status social, funcionando como forma de conversão do capital cultural em capital econômico e social.

Diversas iniciativas de educação musical pública e projetos sociais vêm incorporando a música erudita como instrumento de inclusão social. Um exemplo notável é o Projeto Guri, gerenciado pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo e executado
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pela organização social Santa Marcelina Cultura. O programa oferece, gratuitamente, mais de 70 mil vagas anuais para crianças e adolescentes, estando presente em cerca de 400 polos de ensino distribuídos pela Grande São Paulo, interior, litoral e nas unidades da Fundação CASA. Desde sua criação, em 1995, o Projeto Guri já beneficiou — e continua beneficiando — mais de 1 milhão de crianças e adolescentes, impactando também suas famílias e comunidades ao promover o acesso à formação musical e ao desenvolvimento humano.

Criado em 2012 e oficialmente institucionalizado em 29 de dezembro de 2018, por meio da Lei nº 11.261, o Programa de Inclusão Através da Música e das Artes (PRIMA), do estado da Paraíba, tem como um de seus principais objetivos promover a inclusão social de crianças e jovens por meio da prática instrumental em orquestras sinfônicas. O programa está
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presente em diversos municípios paraibanos, com a instalação de polos de ensino distribuídos por todo o estado. Para participar, é necessário ser aluno da rede pública de ensino ou estar em situação de vulnerabilidade social, o que reforça o compromisso do PRIMA com a equidade de acesso. As atividades desenvolvidas contribuem para a democratização da música erudita, ao mesmo tempo em que valorizam a diversidade cultural e regional da Paraíba. Nesse contexto, os jovens participantes encontram um espaço de reconhecimento, no qual se tornam visíveis, assumem o protagonismo social e experimentam relações baseadas no respeito mútuo e na valorização de suas trajetórias.

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