A Batalha de Waterloo é um fato incontestável, abundantemente documentado pela História. O dia 18 de junho de 1815, a três dias do solstício de verão europeu, é o símbolo de um momento que teria dado uma feição diferente da atual à Europa e ao mundo, se Napoleão tivesse sido vitorioso.
Após a sua fuga da ilha de Elba, seguida da tentativa de restauração do chamado “Império de 100 dias”, Napoleão é derrotado, na Bélgica, pela coalizão da Inglaterra e da Prússia, representada pelo duque de Wellington (Arthur Colley Wellesley)
Napoleão na Batalha de Waterloo ▪ H. Bellangé, 1890 ▪ Museu de Belas Artes, Buenos Aires
e pelo marechal-de-campo Blücher (Gebhard Leberecht von Blücher). O seu destino é a ilha de Santa Helena, onde morrerá em 1821.
Quando Victor Hugo se debruça sobre esse momento histórico, afirmando ser Waterloo “a dobradiça do século XIX” (II, 1, 13, p. 269), e o põe como parte integrante do seu romance Os miseráveis, já não estamos mais no âmbito da História, mas da Literatura. O fato tornou-se ficção, apesar de a data ser a mesma, 18 de junho de 1815; o local ser o mesmo, Waterloo, Bélgica, e a batalha envolver os mesmos personagens – Napoleão Bonaparte, Wellington e Blücher, e os seus coadjuvantes, como Büllow (Friedrich Wilhelm Freieherr von Büllow), comandante-em-chefe da infantaria prussiana, e Cambronne (Pierre-Jacques-Étienne Cambronne), general de Napoleão. Isto ocorre porque, como sabiamente afirmou Aristóteles, a História, sendo ela particular, refere-se aos eventos que de fato ocorreram; a Poesia (póiesis, ποίησις), aqui no sentido de Literatura, por ser universal, refere-se aos eventos que poderiam ou não ter ocorrido (Poética, 1451 b).
Duque de Wellington na Batalha de Waterloo ▪ J. Pieneman, 1824 ▪ Rijksmuseum , Amsterdã
A recriação da batalha por Victor Hugo é a visão de uma possibilidade, não suscetível de revisão ou de contestação, a não ser por ele mesmo (II, 1, 2, p. 247):
“Bauduin morto, Foy ferido, o incêndio, o massacre, a carnificina, um riacho feito de sangue inglês, de sangue alemão e de sangue francês, furiosamente misturados; um poço abarrotado de cadáveres, o regimento Nassau e o regimento Brunswick destruídos; Duplat morto, Blackmann morto, as guardas inglesas mutiladas, vinte batalhões franceses, dos quarenta corpos de Reille, dizimados, três mil homens, só nessa mansarda de Hougomont,
A manhã após a Batalha de Waterloo ▪ J. Clark, 1816 ▪ Deutsches Historisches Museum, Berlim
passados a sabres, massacrados, esgorjados, fuzilados, queimados; e tudo isso porque, hoje, um habitante da região disse a um viajante: Senhor, dê-me três francos. Se o senhor gostar, eu lhe explicarei a coisa de Waterloo!”
Sem qualquer pretensão de escrever a história de Waterloo, encargo de “toda uma plêiade de historiadores”, considerando-se apenas “uma testemunha a distância” (II, 1, 3, p. 248), mas com sua autonomia de escritor, Victor Hugo escolheu atribuir ao acaso a sua versão ficcional da derrota de Napoleão, entregando ao destino o domínio sobre a batalha (II, 1, 11, p. 266):
“O destino tem dessas reviravoltas; alguém se esperava no trono do mundo; percebe-se em Santa Helena.”
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“A ação, começada duas horas mais cedo, ter-se-ia acabado às quatro horas, e Blücher teria caído sobre a batalha ganha por Napoleão. Tais são os imensos acasos, proporcionados a um infinito que nos escapa.”
Marechal Blücher ▪ E. Hünten, 1863 ▪ Galeria de Arte de Kiel, Alemanha
Levando ao limite a sua versão dos fatos, Victor Hugo vê a batalha sob a perspectiva da tragédia, afirmando que “o aspecto monumental nasce frequentemente da ruína” (II, 1, 2, p. 242). Assim como o herói grego, cujo erro transcendental leva-o à queda e o coloca no mesmo patamar da desgraça dos outros homens, Waterloo, sonho de conquista da Europa por Napoleão, se converte no exílio em Santa Helena. E o escritor, ciente da
Napoleão a bordo do HMS Bellerophon, a caminho da Ilha de Santa Helena ▪ W. Orchardson, c.1880 ▪ Tate Gallery, Londres
similaridade com a tragédia grega, não só se encarrega de nos narrar a “peripécia desse drama gigante” (II, 1, 10, p. 266), utilizando-se de um conceito caro à tragédia – peripécia (περιπέτεια), momento em que o resultado esperado pelo herói é frustrado –, como arremata com um capítulo que se chama “A catástrofe” (II, 1, 13, p. 268-270). Nesse dia, “os leões se tornam cabras” (II, 1, 13, p. 269), “Na batalha de Waterloo, há mais do que nuvem, há um meteoro. Deus passou” e Napoleão não passa de um “imenso sonâmbulo desse sonho desabado” (p. 270). A peripécia é o prenúncio da catástrofe, por ser a transformação que inverte todo o prognóstico e determina a queda do herói. Victor Hugo não passou em branco pelas lições de Aristóteles, na Poética, para quem a melhor das tramas é a complexa, que se dá através da reviravolta com peripécia (1452 a).
Arthur Wellesley, Duque de Wellington (1769–1852) ▪ T. Lawrence ▪ Apsley House, Londres
Para embasar a sua versão, ele apresenta os fios do destino tecendo o fracasso de Napoleão – a chuva, que atrasa o início da guerra, dificultando o avanço de uma artilharia de 240 “bocas de fogo”, contra 159 de Wellington (II, 1, 3, p. 247); o erro do guia de Napoleão, não vendo a vala no terreno, que solapa boa parte da cavalaria; o pastor que guia Büllow corretamente e o faz chegar um pouco antes de Wellington, acuado, se render... (II, 1, 16, p. 275):
“O que nós admiramos, acima de tudo, em um encontro do gênero desse de Waterloo, é a prodigiosa habilidade do acaso. Chuva noturna, muro de Hugomont, a vala de Ohain, Grouchy surdo ao canhão, guia de Napoleão que o engana, guia de Büllow que o esclarece; todo esse cataclismo é maravilhosamente conduzido.”
Além de uma versão não necessariamente corroborada pela História, acrescentemos os ingredientes ficcionais que se constroem sem a necessidade de documentação: o intimismo que vê Napoleão de bom humor, na madrugada, antes da batalha (“Ele não tinha tido um minuto de sono, todos os instantes daquela noite foram marcados por uma alegria para ele”, II, 1, 7, p. 255) e que o vê, ao final da batalha, como “um homem estupefato, pensativo, sinistro [...] e de olhar perdido, voltava-se sozinho em direção a Waterloo” (II, 1, 13, p. 270); as particularidades dos saqueadores dos soldados mortos, que servem
NapoleãoE. Crofts, 1888 ▪ Col. Particular
a reintroduzir Thénardier e uni-lo a Marius. Mas, sobretudo, momento que fixa, como um fato, o famoso “Mot de Cambronne”.
O Livro I da segunda parte (Cosette), intitulado Waterloo (19 capítulos), é um daqueles instantes em que Victor Hugo interrompe a narrativa, para alicerçar, no que parece uma digressão, os caminhos futuros da trama, de modo que nada fique solto, que nenhuma ação surja sem um lastreamento anterior, como poderemos ver, por exemplo, ainda nesta segunda parte, nos Livros VI, Le Petit-Picpus (O Pequeno-Picpus, 11 capítulos), e VII, Parenthèse (Parêntesis, 8 capítulos), preparando a entrada legal de Jean Valjean e Cosette, no convento; ele como jardineiro, ela como interna. A técnica digressiva, portanto, é para garantir consistência à narrativa. Técnica que ele deixa, em certos momentos, explícita, dando a certeza ao leitor de que ele é o narrador de um livro escrito por ele (II, 1, 3, p. 247):
“Retornemos para trás, é um dos direitos do narrador, e recoloquemo-nos no ano de 1815, e mesmo um pouco antes da época em que começa a ação contada na primeira parte deste livro.
Se não houvesse chovido na noite de 17 para o 18 de junho, o futuro da Europa estaria mudado. Algumas gotas d’água a mais ou a menos fizeram Napoleão pender. Para que Waterloo fosse o fim de Austerlitz, a providência não teve necessidade senão de um pouco de chuva, e uma nuvem atravessando o céu em direção contrária à estação foi suficiente para o desmoronamento do mundo.
A batalha de Waterloo, e isso deu a Blücher o tempo de chegar, não pôde começar senão às onze e meia. Por quê? Porque a terra estava molhada. Foi necessário esperar um pouco de firmeza, para que a artilharia pudesse manobrar.”
A Batalha de Waterloo ▪ W. Allan, 1843 ▪ Victoria and Albert Museum, Londres
Trata-se da recriação de uma possibilidade, através do imprescindível processo mimético da verossimilhança e da necessidade (Poética, 1454 a), que resulta na ficção. As ações ali narradas são semelhantes à verdade, mas não são necessariamente a verdade. Revelam uma das muitas possibilidades, intervalo em que trabalha a ação e criar, produzindo algo que poderia ou não ter acontecido.
Na visão da História, a derrota de Napoleão para Wellington mostrará uma face múltipla, com uma variedade de versões, ocasionadas pelos documentos e pelas revisões feitas do episódio histórico.
Napoleão deixa o campo de Waterloo, após a derrota decisiva de 18 de junho de 1815 ▪ G. Jones, 1816 ▪ National Trust, Reino Unido
A reconstituição dos fatos atém-se ao acontecido e, a partir da documentação existente, procura interpretar aquele instante. Quando se descobrem novos documentos, a História é sujeita a revisões e contestações. O “mot de Cambronne” é, portanto, para a História, uma possibilidade, dependendo de uma atestação para virar um fato. Já para a Literatura é mais do que um fato, é um grande achado.
O tratamento dado por Hugo ao que se teria passado com o general Cambronne é excepcional, é uma das páginas antológicas do romance. Página a não perder. Cambronne, referido como “um oficial obscuro” (II, 1, 14, p. 270), conquista a sua glória na resistência ao exército inglês, nos instantes finais da batalha, quando pressionado e instado a se render, profere como resposta um sonoro “Merde!” (p. 271), que se difundiu como uma verdade, à revelia de documentos. Assumindo os riscos, por ter infringido a lei do sublime, imposta pela História, Victor Hugo é taxativo, em alçar Cambronne da oficialidade obscura à condição de um titã (II, 1, 15, p. 271):
“Portanto, entre os gigantes, houve um titã, Cambronne.”
A frase contém mais do que aquilo que está escrito e expresso a seu leitor. Hugo compara a resposta e a resistência de Cambronne a dois episódios mitológicos: a Gigantomaquia e a Titanomaquia, sendo este
Cambronne em Waterloo ▪ C. Armand-Dumaresq, 1867 ▪ Col. Particular
mais importante do que aquele, pelo fato de ter instaurado a ordem no universo (v. Teogonia, versos 617-721). Com sua palavra, Cambronne se torna um vitorioso, nada menos do que “o homem que ganhou a batalha de Waterloo”. Na sua condição de titã, Cambronne fulmina o raio que está prestes a fulminá-lo (“Fulminar com um tal termo o trovão que te mata, é vencer”). Ele é, antes de tudo, “o insulto ao raio” (p. 271).
Alçado a uma condição tão importante quanto Rouget de l’Isle, Cambronne se torna uma glória nacional, por encontrar “a palavra de Waterloo”, como o poeta “encontra a Marselhesa” (p. 272). Cambronne é, por fim, a resistência insolente que une Leônidas e Rabelais, no momento em que a sua resposta ao pedido de rendição (“Merde!”), equivale à resposta de Leônidas, quando os persas pedem que os espartanos entreguem suas armas – “Venham buscá-las!”. Eis a síntese desse momento (p. 271):
“Fechar insolentemente Waterloo pela terça-feira gorda, completar Leônidas por Rabelais, resumir essa vitória em uma palavra suprema, impossível de pronunciar, perder o terreno e guardar a história, após essa carnificina ter a aprovação dos que riem, é imenso.”
A diferença entre a realidade e a ficção, utilizando uma metáfora e seguindo o raciocínio de Victor Hugo, está na palavra “merda”, naquilo que Cambronne teria pronunciado e que se difundiu como uma verdade. Victor Hugo, em Os miseráveis, de modo a ajudar na tensão do romance, afirma que Cambronne proferiu a palavra, exaltando o ato, ainda que com uma ponta de ironia. A História, por sua vez, diz que Cambronne teria dito o termo escatológico, que se cristalizaria como uma expressão na língua francesa – le mot de Cambronne, a palavra de Cambronne.
O último esquadrão de resistência da Guarda Imperial de Napoleão em Waterloo ▪ R. Hillingford, S.XIX ▪ National Army Museum, Londres
Observe-se que na recriação do fato pela ficção houve uma inversão do processo. A Literatura, por não precisar de prova documental, nos dá uma possibilidade do acontecido, como certeza de ter acontecido, em obediência à verossimilhança interna. A História nos traz o fato como uma possibilidade, não como uma certeza, em obediência à necessidade de uma prova documental.
Inverter os propósitos documentais e objetivos da História, criar nos espaços subjetivos deixados à reflexão, equiparar a batalha de Waterloo a uma tragédia grega, cujos personagens têm o seu destino traçado pelo acaso,
Napoleão ▪ J.L. David, 1800 ▪ Château de Malmaison, França
eis o processo da criação literária. Dar à batalha a dimensão de uma luta titânica que promove a queda e o sofrimento aos que se achavam em altura divina, fazendo de Napoleão um derrotado que se agiganta (“A derrota engrandecera o vencido. Bonaparte caído parecia mais alto que Napoleão de pé. Os que haviam triunfado tiveram medo”, II, 1, 19, 278-279), pintando Wellington como um vencedor apequenado (“Waterloo é uma batalha de primeira classe ganha por um capitão de segunda”, II, 1, 16, p. 274) e tornando Cambronne o seu herói, tudo é motivo suficiente para fazer desse episódio histórico um grandioso texto ficcional, com lugar garantido em Os miseráveis.
Victor Hugo, no entanto, vai sempre além, revelando nesse episódio a peripécia grega, porque, como diz Aristóteles, “na tragédia é preciso criar o espanto” (1460 a). E Taumas (Θαύμας), o Espanto, está tanto na atitude de um Napoleão estupefato, diante da derrota, quanto na ignomínia, na abjeção, na vileza que se cristaliza na figura de Thénardier saqueando os mortos, ao final da batalha, e fazendo da infâmia uma glória fixada na insígnia de seu albergue – Le Sergent de Waterloo. Magnífico Hugo que, num esplêndido romance, perscruta a alma humana e revela que a vileza perpetrada na escuridão, sob os holofotes, torna-se honra.