Na lírica de Augusto dos Anjos, “Tristezas de um Quarto Minguante” não goza do prestígio de “Monólogo de uma Sombra”, que tem um valor programático. Também não desfruta da popularidade de “Versos Íntimos”, lapidar soneto em que o poeta, um tanto filosoficamente, aborda a ingratidão humana. Tampouco tem a ressonância de “Os Doentes”, alegoria da nossa condição de seres marcados pela pecha da falta original. É, no entanto, devido à simplicidade, ao registro da solidão em que se encontra o eu lírico e ao vigor com que celebra a Natureza, uma das composições mais tocantes e expressivas do poeta do “Eu”.
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Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...
Nos engenhos da várzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
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As elucubrações são acompanhadas de grande desconforto, traduzido em imagens de opressão física e psicológica (“Tenho 300 quilos no epigastro...”, “Vou amarrar um pano na cabeça,/ Molhar a minha fronte com vinagre”). Tais imagens, que traduzem uma angústia intensa, são também associadas à melancolia.
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O mal-estar se reforça com o aparecimento da lua, que a ele se afigura um corpo denso e moldável – sensação expressa na sinestésica associação entre visão e tato:
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos dedos!
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Dividido entre a consciência e o sonho, o eu lírico se compara a um “degenerado psicopata”, o que torna ainda mais pungente o seu delírio. Ele se põe a contar o número das telhas – uma ação magnificamente reproduzida na própria arquitetura da estrofe, que avança e recua, constituindo uma espécie de espelhamento da sua confusão mental. Assonâncias e aliterações concorrem para a concretude expressiva da balbúrdia interior.
– Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: – Uma...
Mas novamente eis-me a perder a conta!
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Em outra passagem, o eu lírico lamenta a ausência da crença religiosa por meio de uma imprecação que se inicia, ironicamente, com um apelo ao... diabo:
Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
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Como é comum nas composições longas de Augusto dos Anjos, à perturbação sucede a calma (por vezes temporária, é verdade). Seja pelo extenuamento das ideias, seja pela beleza com que o eu lírico se depara na visão da Natureza, a mente se aquieta e os temores se abrandam. Essa mudança ocorre quando ele se depara com o amanhecer no engenho, ocasião em que a fantasmagoria promovida pelas sombras que cercam o semicírculo lunar cede ante a revigorante presença do sol:
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
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As estrofes finais, contudo, são marcadas pelo retorno da tristeza e por uma culposa inquietação. O eu lírico chega a se comparar a Hamlet, o príncipe dinamarquês que, em meio a dúvidas e temores, se vê compelido a vingar a morte do pai.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funerais de Hamleto!
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De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
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O poema se fecha com uma nota pessimista, expressa no anseio de ser “a fatia esponjosa e carniça/ que os corvos comem sobre as jurubebas”. A referência a carniça e corvos é própria da escatologia presente em vários poemas de Augusto. Imprime ao texto as marcas baudelairianas da deterioração carnal e de um sombrio mistério. Mas esse pessimismo não lhe tira a contundente beleza, que decorre da maestria com que o poeta mobiliza os estratos da língua para expressar, com singeleza e intensidade, aspectos da sua experiência pessoal.