Na lírica de Augusto dos Anjos, “Tristezas de um Quarto Minguante” não goza do prestígio de “Monólogo d...

Tristezas no engenho

augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
Na lírica de Augusto dos Anjos, “Tristezas de um Quarto Minguante” não goza do prestígio de “Monólogo de uma Sombra”, que tem um valor programático. Também não desfruta da popularidade de “Versos Íntimos”, lapidar soneto em que o poeta, um tanto filosoficamente, aborda a ingratidão humana. Tampouco tem a ressonância de “Os Doentes”, alegoria da nossa condição de seres marcados pela pecha da falta original. É, no entanto, devido à simplicidade, ao registro da solidão em que se encontra o eu lírico e ao vigor com que celebra a Natureza, uma das composições mais tocantes e expressivas do poeta do “Eu”.

augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
Poucos poemas ilustram como esse uma característica básica da lírica do paraibano – a proximidade com o real concreto, que vincula a manifestação da dor tanto ao domínio do corpo, quanto à configuração do ambiente. O poema se inicia com uma sumária indicação de onde o eu lírico se encontra, solitário, numa postura que o leva a desfiar suas elucubrações:

Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare, Este Engenho Pau d'Arco é muito triste... Nos engenhos da várzea não existe Talvez um outro que se lhe equipare! Do observatório em que eu estou situado A lua magra, quando a noite cresce, Vista, através do vidro azul, parece Um paralelepípedo quebrado!
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
O engenho, com a sua incomparável tristeza, demarca o espaço no qual ele observa o clarão de uma lua que se espatifa contra a vidraça do quarto. O sono “esmaga o encéfalo do povo”, mas não o dele, que na vigília se mantém como observador não apenas do que está em volta, como também, ou sobretudo, do que se passa consigo mesmo. Essa postura de observador, por sinal, é uma marca dos espíritos melancólicas.

As elucubrações são acompanhadas de grande desconforto, traduzido em imagens de opressão física e psicológica (“Tenho 300 quilos no epigastro...”, “Vou amarrar um pano na cabeça,/ Molhar a minha fronte com vinagre”). Tais imagens, que traduzem uma angústia intensa, são também associadas à melancolia.

augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
Percebe-se no poema uma perturbadora alternância entre lucidez e pesadelo. O eu lírico tem a consciência de estar submetido a um peso que o esmaga e refere um remorso que o corrói de dentro. Apesar do esforço para raciocinar e compreender a própria dor, ele é assombrado por temores que lhe parecem sem explicação. Está num ambiente que, sendo-lhe familiar, torna-se um cenário de isolamento. A solidão, nesse contexto, é não apenas a ausência de outras pessoas, mas a separação do mundo e de si mesmo.

O mal-estar se reforça com o aparecimento da lua, que a ele se afigura um corpo denso e moldável – sensação expressa na sinestésica associação entre visão e tato:

Aumentam-se-me então os grandes medos. O hemisfério lunar se ergue e se abaixa Num desenvolvimento de borracha, Variando à ação mecânica dos dedos!
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
A partir daí seu delírio evolui num crescendo que culmina com o desejo de se fundir com o astro – metonimicamente, com a Natureza – numa nirvânica aspiração que evoca a freudiana pulsão de morte.

Dividido entre a consciência e o sonho, o eu lírico se compara a um “degenerado psicopata”, o que torna ainda mais pungente o seu delírio. Ele se põe a contar o número das telhas – uma ação magnificamente reproduzida na própria arquitetura da estrofe, que avança e recua, constituindo uma espécie de espelhamento da sua confusão mental. Assonâncias e aliterações concorrem para a concretude expressiva da balbúrdia interior.

– Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma, A conta recomeço, em ânsias: – Uma... Mas novamente eis-me a perder a conta!
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
Adiante, a visão de cenas apocalípticas e de lençóis que balançam numa corda, como se fossem fantasmas, reforça a atmosfera lúgubre em que o personagem está imerso e lhe aumenta os temores. Há nisso um reflexo das crendices próprias da vivência no engenho. O poema não apenas descreve o tumulto interior, como também o encena, ou reduplica, por meio da linguagem.

Em outra passagem, o eu lírico lamenta a ausência da crença religiosa por meio de uma imprecação que se inicia, ironicamente, com um apelo ao... diabo:

Diabo! não ser mais tempo de milagre! Para que esta opressão desapareça Vou amarrar um pano na cabeça, Molhar a minha fronte com vinagre.
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
Essa interjeição, em que ao desespero se associa um ingênuo pedido de socorro, é obviamente retórica; mas não deixa de evocar as dolorosas contradições que lhe perturbam o espírito. A estrofe, por sinal, se conclui com a alusão a um expediente da medicina popular – o de envolver a cabeça dolorida com um pano embebido em vinagre. Passagens como essa confirmam a tendência do poeta a tirar a força das suas imagens de aspectos prosaicos da realidade.

Como é comum nas composições longas de Augusto dos Anjos, à perturbação sucede a calma (por vezes temporária, é verdade). Seja pelo extenuamento das ideias, seja pela beleza com que o eu lírico se depara na visão da Natureza, a mente se aquieta e os temores se abrandam. Essa mudança ocorre quando ele se depara com o amanhecer no engenho, ocasião em que a fantasmagoria promovida pelas sombras que cercam o semicírculo lunar cede ante a revigorante presença do sol:

Abro a janela. Elevam-se fumaças Do engenho enorme. A luz fulge abundante E em vez do sepulcral Quarto-Minguante Vi que era o sol batendo nas vidraças.
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
A partir daí há descrições de intensa celebração vital. O resfolegar da terra “estrumada, feliz, cheia de adubos” é como um reflexo do céu radiante, ambos se unindo para celebrar a universal criação. A Natureza é festejada por dar ao homem os seus frutos, nutrindo-o e assegurando a continuidade da vida. Nesse concerto convivem o feio e o bonito, o rasteiro e o elevado, como se vê pela antítese que opõe os “reptis broncos e feios” à árvore que ostenta a sua monárquica opulência.

As estrofes finais, contudo, são marcadas pelo retorno da tristeza e por uma culposa inquietação. O eu lírico chega a se comparar a Hamlet, o príncipe dinamarquês que, em meio a dúvidas e temores, se vê compelido a vingar a morte do pai.

Entretanto, passei o dia inquieto, A ouvir, nestes bucólicos retiros, Toda a salva fatal de 21 tiros Que festejou os funerais de Hamleto!
augusto anjos nostalgia angustia tristeza engenhos
GD'Art
A comparação com o personagem de Shakespeare confirma a melancolia que lhe ensombra a alma e o faz desejar a morte. No padecimento de "Hamlet", esse sentimento convive com a dúvida existencial e metafísica – mais um dado que o aproxima da angústia do eu lírico. Ao mesmo tempo que deseja se fundir com a Natureza, ele se reconhece dela apartado, conforme se depreende da alusão que faz ao caramujo:

De mim diverso, rígido e de rastos Com a solidez do tegumento sujo Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo Naturalmente pelos mata-pastos.
GD'Art
Essa imagem do gastrópode, que sulca rígida e naturalmente o mata-pastos, contrasta com as incertezas quanto à fonte e ao sentido de seus temores. De certo modo reitera a diferença entre o homem e a Natureza, a qual, segundo Kierkegaard, é o ponto de partida para a angústia.

O poema se fecha com uma nota pessimista, expressa no anseio de ser “a fatia esponjosa e carniça/ que os corvos comem sobre as jurubebas”. A referência a carniça e corvos é própria da escatologia presente em vários poemas de Augusto. Imprime ao texto as marcas baudelairianas da deterioração carnal e de um sombrio mistério. Mas esse pessimismo não lhe tira a contundente beleza, que decorre da maestria com que o poeta mobiliza os estratos da língua para expressar, com singeleza e intensidade, aspectos da sua experiência pessoal.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. O mestre volta a um de seus temas preferidos e nos encanta com seu saber e sua sensibilidade. Parabéns, Chico. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Texto maravilhoso, professor Chico Viana.

    ResponderExcluir
  3. É o esperar de uma Lua cheia

    ResponderExcluir

leia também