Hora do almoço no sítio do amigo Manoel e lá nos veio o convite: “Vamos traçar um capitão?”. Não me fiz de rogado: “Que bom! Vamos, sim”. Verdade seja dita, eu não gosto de preparar isso pelo qual sou doido desde criancinha. Eis, então, uma das poucas coisas para cuja elaboração, se eu puder, evito a mão na massa. Mas, para sorte minha, todos os bolinhos já tinham sido bem arrumados numa travessa de cerâmica de bom tamanho. Ali estavam, entre
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alface, tomates frescos e cheiro verde, cinco ou seis fileiras deles em ordem unida, à espera do comando: “Atacaaar!”.
Os atacantes, evidentemente, éramos nós: os donos da casa, seus dois filhos e três convidados, contando comigo. As mãos santas de dona Tereza cuidaram de amassá-los com farinha de mandioca na proporção corretíssima, o que não é façanha para todo mundo. Ao lado de cada prato, um copo de caldo quente com um fio de azeite, um toque de vinagre, cebola picadinha e coentro. Os comensais que se servissem, à parte, das gotas suportáveis – cada um por si e Jesus por todos – de extratos de pimenta do tipo malagueta conservada em cachaça numa garrafa com a rolha perfurada, a fim de dar passagem aos pingos.
Tínhamos, ali, diante de nós o mais simples e, mesmo assim, o melhor dos capitães. O feijão apresentava-se com o verdor e a maciez das ervilhas. A farinha, bem peneirada, não poderia ser mais leve. Confesso que não liguei muito para a galinhada feita a capricho, também, pela dona da casa e disso somente me servi para evitar qualquer desfeita aos meus anfitriões. Já me bastariam o capitão e seu caldo com queimores na medida do
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meu gosto e da minha mediana tolerância: nem pouca nem muita ardência.
Deem-me farinha e não deixo de me lembrar dos mingaus, das farofas, dos beijus e das tapiocas de hotéis, restaurantes e lanchonetes instalados em áreas turísticas, onde começam a nos custar, apesar de nativos, os olhos da cara. Quanto a mim, não troco um beiju com coco da feira livre do Bairro de Jaguaribe, sempre na manhã das quartas, por quaisquer desses pratos gourmetizados.
Estarreço-me. É indecoroso o que se cobra por um bolinho de feijão em restaurantes de luxo. A fim de não passar por mentiroso, deixo a pesquisa por conta dos que me honram com esta leitura. Em tais ambientes, as gerências justificam a sangria com o argumento da experiência gastronômica única. Entrem vocês numa dessas casas e se disponham a pagar, absurdamente, pela harmonização de vinhos, pela técnica culinária, por ingredientes incomuns e sua preparação, pela gravata dos garçons, pelo nome e renome do chef.
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Único mesmo é o capitão da dona Tereza. Feijão verdinho e farinha fabricada, a poucos passos, com mandioca extraída da roça que se interpõe entre coqueiros, mangueiras, goiabeiras, mamoeiros, sapotizeiros. Quase tudo, instantaneamente, ao alcance das mãos. As raízes logo são arrancadas, descascadas, raladas, prensadas e torradas em forno de lenha. A prensagem requer força masculina e o fabrico atravessa a madrugada
com risos, modinhas e enredos nem sempre críveis. As moças descascam e ralam. O fogo, felizmente, evapora o que é nocivo e garante a pureza, a qualidade excelente do produto.
Os rapazes alimentam a fornalha e espremem aquela massa até não mais poderem. Todos, ali, têm cuidado com a manipueira, o líquido amarelado que, rico em ácido cianídrico, pode matar bicho e gente. O fogo, felizmente, Farinha feita desse jeito tem sabores imateriais: o dos namoros declarados, ou furtivos, o do ocaso, o das auroras, o do canto dos galos, o do voo dos passarinhos, o das pilhérias e provocações. “Essa morena rala que é uma beleza!”. E a resposta: “Ô, dona Tereza, venha ver esse enxerimento”. Pronto, forno quente, macho morno. Que chef tem esses encantos e temperos?
O bom capitão, entendo eu, dispensa ervas finas, embutidos e frituras. Não requer feijão preto, branco, mulatinho, carioca nem rajado, se muito secos. Não deve ser feito de sobras de ontem, retemperadas. Basta-lhe as vargens verdes, viçosas e rasteiras. Admite, ainda, o feijão-de-corda que floresce para cima com o auxílio de um suporte, seja uma estaca, seja um pé de milho, em plantio consorciado. O capitão decente é simples, sem afetação. Deem-lhe água, sal e coentro e o milagre acontece. É preciso que tenha a preservação do aroma e sabor ganhos da natureza.
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Mas o sujeito que sou aceita os modos de um País continental, se autênticos. Asseguro, portanto, que sou capaz, em qualquer região, de me sentar muitíssimo satisfeito às mesas genuínas.
Vi, há pouco, numa das emissões do GNT, o canal de tevê por assinatura, os olhos marejados de uma brasileira naturalizada de quem o tempo de Brasil ainda não retirou o sotaque italiano. Percebi
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o respeito com que ela trata os pratos típicos da culinária nacional, a fim de não macular a história, os signos e os costumes de um povo oriundo da mistura de credos e raças.
Chef famosa, com direito a espaço de luxo na televisão, ela repetia com absoluto rigor a receita de capitão que lhe repassava uma integrante do Quilombo de São João, no Piauí. Lacrimejou quando entendeu o significado dos gestos e dos termos. A descendente de escravos explicou-lhe que o bolo de feijão e farinha feito com a força dos tendões tinha o tamanho das mãos que o amassavam. Tinha a resiliência dos oprimidos. Ali estava, simbolicamente, prensado, achatado e consumido o capitão-do-mato e, com ele, os da Casa Grande, os escravagistas. Com as emoções à flor da pele aquelas mãos negras e brancas confraternizaram-se, simultaneamente, com os punhos erguidos e cerrados.
Não é diferente, em outros pontos do sertão nordestino, a inspiração do bolo espalmado, amassado. Seu preparo não tem nem terá o refinamento da alta culinária, assim entendida. Por aqui, os habitantes da seca, os filhos da miséria, quando muito, acrescem ao capitão de água e sal lascas de rapadura. Um quê de doçura em vidas amargas.