O que esperar de uma conversa de cavalheiros, cultos, nível superior, limpos, bem vestidos, todos eficientes nas funções que desempenha...

Conversa de cavalheiros

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O que esperar de uma conversa de cavalheiros, cultos, nível superior, limpos, bem vestidos, todos eficientes nas funções que desempenham, reunidos numa sala de uma mansão de estilo clássico, decorada com motivos clássicos, num ambiente em que imperam a assepsia e a cordialidade, com um mínimo de discórdia que, muito civilizada, jamais chega ao nível da desarmonia destemperada? Trata-se de uma encontro com bolinhos, café, enroladinhos de salmão, conhaque, definida como um segundo café da manhã, reunindo homens que comungam uma mesma ideia, como se pertencessem a uma confraria qualquer.

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Cena do filme A Conferência (Die Wannseekonferenz, 2022), dirigido por Matti Geschonneck ▪ Fonte: Imdb
Nesse clima de civilidade, à beira de um lago, num subúrbio próximo a Berlim, a disciplina é a palavra de ordem. Todos se apresentam bem penteados, sem um único fio de cabelo fora do lugar, e, mais do que barbeados, estão perfeitamente escanhoados; os gestos comedidos e o tom de voz são adequados à cordialidade que a reunião requer, mesmo quando uma ideia mais dura é pronunciada. Os cavalheiros que ali se encontram podem demonstrar apreensão, descontentamento, impassibilidade ou indiferença, mas todos estão de acordo com o assunto central da reunião: estabelecer a solução final para os judeus da Europa.

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Sim, estamos falando da conferência de Wannsee, que aconteceu em 20 de janeiro de 1942, na Villa Marlier, atualmente um memorial e um museu do Holocausto, à beira do grande lago Wannsee. O assunto foi abordado em filme, de que assisti a duas versões, uma de 2001, A Conspiração (Conspiracy, EUA, Franck Pierson), com Kenneth Branagh (Reinhard Heydrich) e Stanley Tucci (Adolf Eichmann); outra de 2022, A Conferência de Wannsee (Die Wannseekonferenz, Alemanha, Matti Geschonneck), com Philipp Hochmair (Reinhard Heydrich) e Johannes Allmayer (Adolf Eichmann). Numa comparação rápida, considero o filme alemão melhor, também pelo fato de que, como não reconheci os atores alemães, foi mais fácil dissociá-los de uma representação e vê-los como personagens plausíveis do fato histórico.

O que faz o filme alemão ser melhor do que o americano, se os dois se resumem ao mesmo espaço – a sala da mansão com locações mínimas do lago –, se não há cenas mirabolantes ou efeitos especiais, restringindo-se ambos a uma reunião com o alto comando do partido nazista? Os diálogos e estrito cumprimento da Necessidade aristotélica. O diretor (Matti Geschonneck) e o roteirista (Magnus Vattrodt) acertaram as mãos. Este na oportunidade e agilidade dos diálogos;
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A Conferência (2022)
aquele no tom de gentileza condescendente ou em algum raro momento de aspereza, tendo em vista a impaciência de alguns, como a do coronel Karl Eberhard Schöngarth, em estar discutindo o que ele achava ser indiscutível. No que diz respeito à Necessidade apregoada por Aristóteles, na Poética, não uma cena ou sequência que não deveria estar ali.

Se o espectador prestar atenção ao que se diz, deixando de lado a compreensão superficial de que cinema é imagem em movimento, ele perceberá que a aparente cordialidade, a educação dos que ali se encontram, inclusive a indiferença impassível de outros membros da reunião, encobrem uma violência desmedida, tratada com a banalidade com que se trata uma carga de bananas a ser trasladada de um lugar para outro, com a diferença de que bananas têm importância e utilidade. É, pode-se dizer, uma megalomania que mistura a supremacia de raça a um cálculo racional e frio, para a obtenção do poder sem oponentes. A isto, eu chamaria de real perversão, sem qualquer pretensão psicanalítica, mas no puro sentido etimológico de verter completamente uma ideia, corrompendo-a para difundir o seu contrário como verdade, tendo como finalidade a opressão.

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A Conferência (2022)
Nenhum dos participantes dessa conferência, que, no tempo histórico, durou cerca de 90 minutos, se opôs ao cerne da discussão: os judeus, como inimigos do Estado, deveriam ser levados ao extermínio, o mais depressa possível. As duas discordâncias, expressas no filme, não se opunham ao fim discutido, mas aos meios de execução do que foi discutido. Na primeira delas, o Secretário Permanente da Chancelaria do Reich, Friedrich Wilhelm Kritzinger, concorda que a morte deveria ser rápida e econômica, para evitar os traumas aos soldados alemães de fuzilar milhões de judeus, sendo secundado por outro que invoca a economia de munição em tempo de guerra, vez que o extermínio, pelos documentos apresentados chegava a um número de 11 milhões de judeus... Em resposta ao incômodo de Kritzinger pela morte de crianças, um dos presentes argumenta que matar crianças era um ato de piedade, pois com os pais mortos não haveria quem delas cuidasse. Desse modo, como se estivesse anunciando que nevava e o tempo estava muito frio...

Na segunda discordância, o Ministro do Interior, o Brigadeiro-General Wilhelm Stuckart, diz que tudo deveria estar dentro da legalidade, divergindo dos que querem fazer o extermínio fora da lei. Que haja o extermínio, porém, dentro dos princípios legais estabelecidos por ele e por outros juristas, para o fim dos judeus.
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Daí a sua proposta de esterilização, pura e simples.

O que impressiona é exatamente isto. Existe um Estado de exceção, mas esse Estado está baseado em leis novas, que devem ser cumpridas, não em suposições ou pontos de vista, de modo que o cidadão tenha a consciência de que existe uma ordem e uma segurança legal. O achismo e as suposições geram instabilidade – este é o discurso de Stuckart – e deve haver um parâmetro para o cidadão se guiar, de modo que ele não tenha receio de que o Estado, atropelando a lei, se volte contra ele, o cidadão. Mesmo num Estado como a Alemanha nazista a lei vigente era uma peça legalmente válida, não constituía, portanto, base para uma discussão. Reavaliar uma lei existente é, diz Stuckert, como remover um papel de parede de cuja cor não gostamos. Por outro lado, expandir a definição do que é judeu, apesar da lei vigente, como pretexto para o extermínio, é sair de um sistema confiável de leis e adentrar o caos. O caos, conclui Stuckart, produz mais caos e resistência. Apesar de causar incômodo constrangedor na conferência, Stuckart é voz isolada, pois até mesmo o ministro da Justiça, Roland Freisler, está ao lado de ir ao arrepio das leis vigentes.

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A Conferência (2022)
Verifica-se, então, o grande problema de um estado de exceção, que inicia por definir um inimigo, tipifica-o e, só depois, busca um crime para enquadrá-lo. O enquadramento do inimigo, como criminoso, deve estar atrelado à mudança. Como as leis nunca são suficientes a um estado de exceção, passa-se ao estágio subsequente, em que se difunde uma informação única, a governamental, necessária para que o atropelo da lei, em nome das razões de Estado e da sua segurança, seja não só aceito, mas aplaudido.

O filme choca pela impassibilidade, como a demonstrada por Heinrich Müller, o major-general cujo rosto não se modifica ao longo da reunião; choca pela atitude do tenente-general Reinhard Heydrich, que conduz a reunião sempre com um meio sorriso no rosto, algo entre gentileza, desprezo e indiferença, pelas decisões que estão sendo ratificadas, não tomadas, pois a reunião foi convocada apenas para dar a impressão de que os componentes do alto escalão nazista foram consultados. Choca pela paixão e impaciência educada com que alguns defendem o argumento do extermínio, já entediados por estarem discutindo o que não merece discussão; pela eficiência fria de Adolf Eichmann, encarregado da logística do extermínio, sempre pronto a explicar e resolver as questões protocolares: campos longe de cidades, salões para abrigar 1000 judeus por vez, podendo o trabalho ser feito várias vezes durante o dia, limpeza dos salões e descarte dos corpos
A Conferência (2022)
em fornos crematórios, construídos de maneira que o vento leve para longe das cidades, o odor dos corpos incinerados. Choca ainda mais pelos planos idealizados por Stuckart, amigo de Heydrich, que lhe pergunta se ele irá morar na mansão, terminada a guerra. Se isso acontecer, como ele, Stuckart, mora perto, os seus filhos poderão nadar juntos no lago Wannsee...

Tudo se passa como uma reunião de pura burocracia, em que alguns se enfastiam se entendiam, olham o relógio, para remover um entulho que atrapalha o avanço da máquina opressora que se apropriou do Estado. Ao mesmo tempo, o filme é didático, revelando que o mal não é produto da ignorância, o mal é engendrado, sobretudo, pelos iluminados que se acreditam superiores aos demais e, uma vez galgados ao poder, propagam a plenos pulmões que tudo o que está acontecendo é para o bem maior do Estado. O mal, na realidade, como dizia Sócrates, se faz pela ignorância do que é o bem.


Para Stuckert e Kritzinger, pasmem, o extermínio deve acontecer, mas de modo humanitário... para os soldados alemães. É nesse momento que entra a referência explícita ao gás Zyclon B, utilizado para desinfecção e controle de pragas, visto como solução “elegante”, porque pode ser utilizado anonimamente, e “apropriado” ao caso, o extermínio da praga objeto da conferência...

Para outros, como o coronel Schöngarth, a solução deve ser rápida, a mais simples possível, se preciso for sem atender aos requisitos da legalidade e da humanidade, pois para ser considerado judeu,
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A Conferência (2022)
ele nem precisa de qualquer confirmação ou prova, basta-lhe não gostar da cara.

A naturalidade com que o assunto é tratado nos faz ver a força da propaganda, palavra de acepção negativa, na Europa, desde o final da Segunda Guerra, vinculada, na sua origem, à doutrinação nazista ou soviética. Afinal, como desconfiar e duvidar das certezas tantas vezes apregoadas por senhores cultos, bem vestidos, bem afeiçoados, asseados e superiores? O filme vai nos mostrando, de modo sutil, ainda que o Secretário Kritzinger demonstre algum escrúpulo com relação ao uso do gás Zyclon B, o quanto se mina o entendimento das massas, quando a livre informação é proibida, e o rádio, como instrumento, só pode aceitar as estações que veiculem a propagando oficial do governo alemão, como determinara Joseph Goebbels. Se a verdade é o que o governo estabelece; o que o governo diz, então, é a verdade. É a circularidade paradoxal, porque pobre, mas aceita como argumento inequívoco, porque não permite o raciocínio. E estamos falando de um país onde não havia analfabetos e que, àquela altura já produzira grandes cientistas, grandes filósofos, grandes filólogos e grandes músicos, cujos habitantes são conhecidos por sua invejável força de trabalho...

Engana-se quem pensa que a violência se faz apenas com palavras e atos agressivos, ou com Stallone desempenhado o papel de Rambo. Rambo é a violência catártica. A violência de A Conferência de Wannsee é
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a que nos deixa incomodados, por se originar, de maneira implícita, sub-reptícia, com palavras melífluas e cordialidade estudada. Só para aqueles que ousam raciocinar, é que a violência pelo medo e pela agressão será utilizada, e funcionará até gerar um descontentamento insuportável.

Apesar de todo o incômodo que o filme gerou em mim, ele nos traz uma lição, baseada na História. Se ao fim e ao cabo, todos os presentes na conferência procuram uma maneira de exterminar os judeus, não mais apenas da Alemanha, mas de toda a Europa, por tratar-se de uma razão para salvar o mundo, ele mostra como a megalomania só cresce e como o mal vai-se tornando uma banalidade; mostra como os cidadãos que o defendem só tomarão consciência do fato, quando por ele forem atingidos, deixando implícito que as mentiras da prepotência – nenhum dos presentes quer comentar os dissabores da frente russa, por exemplo –, ainda que sustentada pela violência, um dia serão descobertas, e ela, a prepotência, por acreditar-se intocável, desmoronará ruidosamente.

É a ficção dizendo as verdades que a realidade já expressou, mas ninguém quis ouvir ou se fez de desentendido.

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  1. Excelente leitura do filme, Milton. Os totalitarismos, sejam quais forem, são sempre odiosos, maléficos, desumanos. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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