O que esperar de uma conversa de cavalheiros, cultos, nível superior, limpos, bem vestidos, todos eficientes nas funções que desempenham, reunidos numa sala de uma mansão de estilo clássico, decorada com motivos clássicos, num ambiente em que imperam a assepsia e a cordialidade, com um mínimo de discórdia que, muito civilizada, jamais chega ao nível da desarmonia destemperada? Trata-se de uma encontro com bolinhos, café, enroladinhos de salmão, conhaque, definida como um segundo café da manhã, reunindo homens que comungam uma mesma ideia, como se pertencessem a uma confraria qualquer.
Cena do filme A Conferência (Die Wannseekonferenz, 2022), dirigido por Matti Geschonneck ▪ Fonte: Imdb
O que faz o filme alemão ser melhor do que o americano, se os dois se resumem ao mesmo espaço – a sala da mansão com locações mínimas do lago –, se não há cenas mirabolantes ou efeitos especiais, restringindo-se ambos a uma reunião com o alto comando do partido nazista? Os diálogos e estrito cumprimento da Necessidade aristotélica. O diretor (Matti Geschonneck) e o roteirista (Magnus Vattrodt) acertaram as mãos. Este na oportunidade e agilidade dos diálogos;
A Conferência (2022)
Se o espectador prestar atenção ao que se diz, deixando de lado a compreensão superficial de que cinema é imagem em movimento, ele perceberá que a aparente cordialidade, a educação dos que ali se encontram, inclusive a indiferença impassível de outros membros da reunião, encobrem uma violência desmedida, tratada com a banalidade com que se trata uma carga de bananas a ser trasladada de um lugar para outro, com a diferença de que bananas têm importância e utilidade. É, pode-se dizer, uma megalomania que mistura a supremacia de raça a um cálculo racional e frio, para a obtenção do poder sem oponentes. A isto, eu chamaria de real perversão, sem qualquer pretensão psicanalítica, mas no puro sentido etimológico de verter completamente uma ideia, corrompendo-a para difundir o seu contrário como verdade, tendo como finalidade a opressão.
A Conferência (2022)
Na segunda discordância, o Ministro do Interior, o Brigadeiro-General Wilhelm Stuckart, diz que tudo deveria estar dentro da legalidade, divergindo dos que querem fazer o extermínio fora da lei. Que haja o extermínio, porém, dentro dos princípios legais estabelecidos por ele e por outros juristas, para o fim dos judeus.
A Conferência (2022)
O que impressiona é exatamente isto. Existe um Estado de exceção, mas esse Estado está baseado em leis novas, que devem ser cumpridas, não em suposições ou pontos de vista, de modo que o cidadão tenha a consciência de que existe uma ordem e uma segurança legal. O achismo e as suposições geram instabilidade – este é o discurso de Stuckart – e deve haver um parâmetro para o cidadão se guiar, de modo que ele não tenha receio de que o Estado, atropelando a lei, se volte contra ele, o cidadão. Mesmo num Estado como a Alemanha nazista a lei vigente era uma peça legalmente válida, não constituía, portanto, base para uma discussão. Reavaliar uma lei existente é, diz Stuckert, como remover um papel de parede de cuja cor não gostamos. Por outro lado, expandir a definição do que é judeu, apesar da lei vigente, como pretexto para o extermínio, é sair de um sistema confiável de leis e adentrar o caos. O caos, conclui Stuckart, produz mais caos e resistência. Apesar de causar incômodo constrangedor na conferência, Stuckart é voz isolada, pois até mesmo o ministro da Justiça, Roland Freisler, está ao lado de ir ao arrepio das leis vigentes.
A Conferência (2022)
O filme choca pela impassibilidade, como a demonstrada por Heinrich Müller, o major-general cujo rosto não se modifica ao longo da reunião; choca pela atitude do tenente-general Reinhard Heydrich, que conduz a reunião sempre com um meio sorriso no rosto, algo entre gentileza, desprezo e indiferença, pelas decisões que estão sendo ratificadas, não tomadas, pois a reunião foi convocada apenas para dar a impressão de que os componentes do alto escalão nazista foram consultados. Choca pela paixão e impaciência educada com que alguns defendem o argumento do extermínio, já entediados por estarem discutindo o que não merece discussão; pela eficiência fria de Adolf Eichmann, encarregado da logística do extermínio, sempre pronto a explicar e resolver as questões protocolares: campos longe de cidades, salões para abrigar 1000 judeus por vez, podendo o trabalho ser feito várias vezes durante o dia, limpeza dos salões e descarte dos corpos
A Conferência (2022)
Tudo se passa como uma reunião de pura burocracia, em que alguns se enfastiam se entendiam, olham o relógio, para remover um entulho que atrapalha o avanço da máquina opressora que se apropriou do Estado. Ao mesmo tempo, o filme é didático, revelando que o mal não é produto da ignorância, o mal é engendrado, sobretudo, pelos iluminados que se acreditam superiores aos demais e, uma vez galgados ao poder, propagam a plenos pulmões que tudo o que está acontecendo é para o bem maior do Estado. O mal, na realidade, como dizia Sócrates, se faz pela ignorância do que é o bem.
Para Stuckert e Kritzinger, pasmem, o extermínio deve acontecer, mas de modo humanitário... para os soldados alemães. É nesse momento que entra a referência explícita ao gás Zyclon B, utilizado para desinfecção e controle de pragas, visto como solução “elegante”, porque pode ser utilizado anonimamente, e “apropriado” ao caso, o extermínio da praga objeto da conferência...
Para outros, como o coronel Schöngarth, a solução deve ser rápida, a mais simples possível, se preciso for sem atender aos requisitos da legalidade e da humanidade, pois para ser considerado judeu,
A Conferência (2022)
A naturalidade com que o assunto é tratado nos faz ver a força da propaganda, palavra de acepção negativa, na Europa, desde o final da Segunda Guerra, vinculada, na sua origem, à doutrinação nazista ou soviética. Afinal, como desconfiar e duvidar das certezas tantas vezes apregoadas por senhores cultos, bem vestidos, bem afeiçoados, asseados e superiores? O filme vai nos mostrando, de modo sutil, ainda que o Secretário Kritzinger demonstre algum escrúpulo com relação ao uso do gás Zyclon B, o quanto se mina o entendimento das massas, quando a livre informação é proibida, e o rádio, como instrumento, só pode aceitar as estações que veiculem a propagando oficial do governo alemão, como determinara Joseph Goebbels. Se a verdade é o que o governo estabelece; o que o governo diz, então, é a verdade. É a circularidade paradoxal, porque pobre, mas aceita como argumento inequívoco, porque não permite o raciocínio. E estamos falando de um país onde não havia analfabetos e que, àquela altura já produzira grandes cientistas, grandes filósofos, grandes filólogos e grandes músicos, cujos habitantes são conhecidos por sua invejável força de trabalho...
Engana-se quem pensa que a violência se faz apenas com palavras e atos agressivos, ou com Stallone desempenhado o papel de Rambo. Rambo é a violência catártica. A violência de A Conferência de Wannsee é
A Conferência (2022)
Apesar de todo o incômodo que o filme gerou em mim, ele nos traz uma lição, baseada na História. Se ao fim e ao cabo, todos os presentes na conferência procuram uma maneira de exterminar os judeus, não mais apenas da Alemanha, mas de toda a Europa, por tratar-se de uma razão para salvar o mundo, ele mostra como a megalomania só cresce e como o mal vai-se tornando uma banalidade; mostra como os cidadãos que o defendem só tomarão consciência do fato, quando por ele forem atingidos, deixando implícito que as mentiras da prepotência – nenhum dos presentes quer comentar os dissabores da frente russa, por exemplo –, ainda que sustentada pela violência, um dia serão descobertas, e ela, a prepotência, por acreditar-se intocável, desmoronará ruidosamente.
É a ficção dizendo as verdades que a realidade já expressou, mas ninguém quis ouvir ou se fez de desentendido.