Jantei, senti um friozinho, e, bebido o último gole de café, passei a ir e vir entre a sala e o pequeno corredor, de mãos para trás. Nada além de 12 ou 13 metros nesse trajeto pendular, indo e vindo, contando os quadrinhos da cerâmica, tentando fugir do noticiário, do aceleiro da peste, dos efeitos produzidos, na morrinha da tarde, com o rogo do médico Ítalo Kumamoto, de rosto transtornado, a reiterar o confinamento: “Pelo amor de Deus, não saiam!”
E eis-me agora, setenta e cinco anos depois, nos mesmos doze ou treze metros de Seu Bastos, vivendo o temor de uma invasão sem fronteirasUma hora antes eu havia regressado de um telefonema com a neta Lays, há quase três anos na Espanha, de repente confinada no aposento do hotel onde mora e trabalha. Fez aqui seu curso de jornalismo, se iniciou bem na profissão, isto é, cedo se conceituou, e saiu na idade própria para uma lufada de outros ares. Está conseguindo, a custo, o visto de permanência – primeiro e principal entrave - e se mantendo, até agora, como intérprete ou tradutora. Rosto e físico ainda de menina, vem me ensinando que o mundo, vasto ou pequeno, reside em nós mesmos.

E eis-me agora, setenta e cinco anos depois, nos mesmos doze ou treze metros de Seu Bastos, vivendo o temor de uma invasão sem fronteiras, o inimigo no ar, nas mãos que se apertam ou no hálito doce e perene da menina que se aproveitava do descuido de D. Querubina para me soprar seu cochicho.
Fecham os jornais, some a melhor literatura, mas ai de mim se não fossem essas velharias: “...o passado é o nosso único passeio e o único lugar onde possamos escapar a nossos aborrecimentos, a nossas misérias, a nós mesmos. O presente é árido e turvo, o futuro oculto”. É num velho que a França não reedita mais, Anatole France, o de “A Vida em Flor”, que volto a sentir o cochicho de Dorinha. Quede ela? Está aqui Gonzaga, pra que mais?
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL