Domingo, comecei pelo meu cronista e terminei com o meu poeta, distintos no estro, nos modos e no tempo. Dando as cartas, comecei pela crôn...

Linha cruzada

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Domingo, comecei pelo meu cronista e terminei com o meu poeta, distintos no estro, nos modos e no tempo. Dando as cartas, comecei pela crônica de Martinho Moreira Franco e cheguei à linha final sob o clarão da memória na nevrose de Augusto dos Anjos face à “ultrajante invenção do telefone”.

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Na crônica, Martinho extravasa a queixa de quem é invadido em seu tugúrio pela chamada cortante, perturbadora. Augusto, que não teve a abstração usurpada pela novidade de privilegiados do seu meio, erigiu-o, qual Internet na globalização de hoje, como simbolização da dependência ou achincalhamento do mazombo e do morubixaba ao jugo do colonizador. No seu tempo era o inglês, de onde vinham todas as máquinas com seu preço e para onde iam todo o algodão e todo açúcar ao preço deles.

O telefone não entra no poema (Os doentes) a pretexto da rima. Augusto não era disso. A Paraíba, com a sua capital, estava ainda muito longe de se perturbar com a vibração ruidosa da invenção do dr. Graham Bell. A julgar pelos anúncios no Almanach de 2010 (que ganhei de Fernando Moura), era rara a casa do alto comércio de João Pessoa com telefone. Mesmo as importadoras de nomes estrangeiros ou indústrias como a Tibiry. O irmão de Augusto, Arthur de C. R dos Anjos, com escritório na Maciel Pinheiro e morando num palacete de Tambiá, não insere telefone em seu anúncio de advogado.

Seguramente, o que acontece com Martinho, confrades e afins, aqui e ali obrigados a largar o texto ou a meditação, perder o fio da meada para atender à chamada invasora, estava longe, muito longe de perturbar física e mentalmente o poeta do Pau d’Arco.

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Sem nenhuma dúvida, o telefone, que simbolizava, ao lado do automóvel, mais um império a nos impor a língua, os negócios, a moral e a religião, fazia-nos sentir “pior que um vagabundo (...) desterrado na sua própria terra, diminuído na crônica do mundo”.

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"A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em diante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!”

Poeta da morte e da melancolia? Poeta do hediondo? Lorota. Dispensemos o receio de transcrever:

“Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem”.

E vem o remate:

“A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo
Cuspiu na cova do morubixaba.

E o índio, por fim, adstrito à étnica escória,
Recebeu (...) esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História”.

Em crônica no Correio da Manhã, Drummond, já na idade das poucas ilusões, e sem pretensões maiores, atribui ao leitor “descobrir e usar suas razões de viver. Suas razões e não as que lhe sejam inculcadas como exemplares”. Nesse sentido, mais adiante, ele confessa o soco recebido no estômago ao primeiro contato com a poesia de Augusto. Não o da terminologia cientifica a bater forte nas teclas musicais. Mas a do visionário de “Numa Forja” ou da aguda consciência social de “O lázaro da pátria” e “Os doentes”, vindo por tabela, agora, pelo telefone de Martinho.


Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL

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