No Evangelho de Mateus (6, 34), Jesus, em continuidade ao “Sermão da Montanha”, diz em alto e bom som: “Não vos preocupeis com o dia de a...

Jesus leu Horácio

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No Evangelho de Mateus (6, 34), Jesus, em continuidade ao “Sermão da Montanha”, diz em alto e bom som: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã preocupar-se-á consigo mesmo. Basta ao dia o mal que lhe pertence”.

Jesus fala aos que vivem preocupados em demasia com os bens materiais, deixando em segundo plano os bens do espírito. O comer, o beber e o vestir, citados na sua prédica, não devem ser tomados ao pé da letra, mas como advertência de que não são os bens materiais que nos fazem melhores. Somos tornados melhores pelas nossas ações espirituais e pela justiça que delas emana, por isso a necessidade de que devemos procurar primeiro o reino de Deus e a sua Justiça, o mais virá por acréscimo.

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Se nos apegarmos à letra do que diz Jesus, podemos pensar que o isolamento do convívio social e a dedicação 24 horas por dia a Deus, em preces e orações, serão suficientes para que possamos nos manter. A dedicação a Deus e à Sua Justiça podem muito bem ser realizados em nosso trabalho cotidiano. O que Jesus deseja nos dizer talvez seja que não precisamos separar de nossa religiosidade e de nossa dedicação espiritual aquilo que fazemos como trabalho.

Essas ações devem caminhar juntas. Não trabalhamos para comer, beber ou vestir, trabalhamos para nos manter vivos e com dignidade, porque o trabalho foi dado por Deus ao homem, como uma maneira de ele apreciar, valorizar o que vem do seu esforço e de agradecer por isto torná-lo melhor. Quem trabalha só pensando em comer, beber e vestir não vive. E Jesus não está, certamente, se referindo a pessoas pobres que, mesmo em estado de muita necessidade, não deixam de agradecer o pouco que têm. Reiteramos Jesus estar falando, em tom de advertência, àqueles, cujas únicas preocupações são a materialidade.

A advertência talvez seja o ponto crucial a unir Jesus e Horácio. O poeta latino viveu antes da vinda de Cristo, entre os anos 65 e 8. Dentre tantos versos que escreveu, nenhum é mais famoso do que o que contém a expressão “carpe diem”. Citada a torto e a direito, a expressão é, comumente, usada fora de seu contexto, servindo para dar suporte a muitos absurdos. O maior deles é usá-la com o sentido hedonista de busca ininterrupta do prazer. Nada mais errôneo.

Assim, como Jesus, no “Sermão da Montanha”, Horácio (na verdade, o eu-lírico do poema) tem interlocutor. Ele está falando para alguém, no caso, uma mulher chamada Leucônoe. A sua fala a Leucônoe tem, igualmente à de Jesus, um tom de advertência. Leucônoe está preocupada com o futuro, procurando saber o que a aguarda e descurando do seu presente. O poeta, então, lhe diz que o futuro pertence aos deuses e que qualquer ação para antecipar os fatos a ocorrer, através, por exemplo, dos números babilônicos – uma forma latina, para falar dos cálculos para as previsões astrológicas –, seria uma ofensa aos deuses, um “nefas”, ação não permitida pelas divindades.
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Não nos cabe questionar o futuro, mas viver o dia de hoje e suportar o que há de vir, diz Horácio. A preocupação com o amanhã faz o tempo fugir, esvair-se, sem qualquer proveito. Assim, não percebemos que, ao perder o dia de hoje, preocupados como será o amanhã, não teremos construído nada. A preocupação excessiva com o amanhã, nos faz perdê-lo. É aí que entra a parte final da advertência a Leucônoe: “Carpe diem”, colhe o fruto de cada dia, “quam minimum credula postero”, acreditando o mínimo possível no amanhã.

Este ensinamento de Horácio se encontra na “Ode 11”, do Livro I das Odes, que transcrevo abaixo, junto com uma tradução nossa:

Ode XI Tū nē quǣsĭĕrīs (scīrĕ nĕfās) quēm mĭhĭ, quēm tĭbī fīnēm dī dĕdĕrīnt, Leūcŏnŏē, nēc BăbЎlōnĭōs tēmptārīs nŭmĕrōs. Ūt mĕlĭūs quīcquĭd ĕrīt pătī! Sēu plūrīs hĭĕmēs sēu trĭbŭīt Iūppĭtĕr ūltĭmăm, quǣ nūnc ōppŏsĭtīs dēbĭlĭtāt pūmĭcĭbūs mărĕ
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TῩrrhēnūm, săpĭās, uīnă lĭquēs ēt spătĭō brĕuī spēm lōngām rĕsĕcēs. Dūm lŏquĭmūr, fūgĕrĭt īnuĭdă ǣtās: cārpĕ dĭēm, quām mĭnĭmūm crēdŭlă pōstĕrō.

Ode XI Não procures saber (é ímpio conhecer) que fim os deuses terão concedido para mim ou para ti, Leucônoe; nem examines os números Babilônios. Melhor é suportar o porvir! Se Júpiter nos concedeu muitos invernos, ou se este é o último que, agora, o Mar Tirreno quebra nas rochas diante dele,
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Sê sábia, filtra os vinhos e no breve espaço da vida restringe a longa esperança. Enquanto conversamos, foge invejoso o tempo: colhe o dia de hoje, crédula o mínimo possível no amanhã.

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O “carpe diem” horaciano supõe uma reflexão sobre o dia e o que de aproveitável existe nele para permanecer, daí o tom de advertência e aconselhamento para Leucônoe ser sábia e filtrar os vinhos. Note-se que o nome da moça, apropriadamente, significa “a de mente branca”. Não procurar viver o dia com sapiência é próprio das mentes brancas e esvaziadas de reflexão.

Para um melhor entendimento do que diz o eu-lírico, verificamos que o poema se sustenta na oposição de duas estruturas, uma com o verbo “conhecer” (scire nefas), no primeiro verso – conhecer o amanhã é uma impiedade diante dos deuses – , dito em tom confessional, como se para afastar uma punição dos deuses, e outra com o verbo “saber”, no verso 6 (sapias, do verbo sapĭo, sapĕre), que tem também o significado de “sentir o gosto”.

Assim, a sapiência reside em procurar viver o dia de hoje, colhendo de cada dia o seu fruto. Só filtrando os acontecimentos é que poderemos colher deles o saber e o sabor de cada dia que há de permanecer. O amanhã não existe. O ontem já se foi. Só há o hoje. O ontem só terá algum significado, se houver o hoje. É o que fazemos a cada dia que nos dará a certeza do ontem, se não vivermos o dia de hoje, o ontem não existirá e perderemos toda a vida a esperar uma incerteza que é o amanhã.

A vida se constrói com o filtro de cada dia. É o acúmulo dos “ontens”, feito a cada hoje, que nos dará o amanhã. Viver o hoje sem ter vivido o ontem é viver atrasado, tão ruim quanto adiar o viver para o amanhã. É preciso viver e para viver, temos de colher o fruto de cada dia, o fruto do que vivemos. Este é o sentido do verbo carpo, carpĕre.

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O título do texto, claro, é provocativo. É irrelevante saber se Jesus leu ou não Horácio, nem essa era a sua missão. Relevante é saber que um poeta, dito pagão, dá lições de advertência sobre o modo de viver e de construir a vida, com moderação e sapiência, procurando ensinar que há mais sabedoria em refletir sobre o que podemos controlar do que em toda a preocupação com o que está absolutamente fora de nosso controle. Mais ainda: a cada dia basta o seu cuidado; a cada dia, os seus males, que devemos evitar, refletindo sobre a justiça que nos compete fazer.

Se vivemos o bem, colheremos o bem; se vivemos o mal, colheremos o mal. Somos nós e ninguém mais que colheremos o fruto cuja semente plantamos diariamente. O “carpe diem”, portanto, depende de nós. Não pensemos, no entanto, em nada mirabolante. Pensemos apenas em como podemos nos melhorar e construir um mundo melhor para nós próprios e, por extensão, para os outros. Carpe diem!


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

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