A casa era de madeira e a mesa havia sido feita por meu pai, marceneiro amador. Sobre ela, a toalha de motivos natalinos, bordada em ponto...

Nossos cálices sagrados

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A casa era de madeira e a mesa havia sido feita por meu pai, marceneiro amador. Sobre ela, a toalha de motivos natalinos, bordada em ponto-cruz por minha mãe.

No canto da sala estava a árvore de Natal. Um pinheiro artificial, de galhos fininhos, que no dia 1 de dezembro a mãe decorava com flocos de algodão e delicadas bolas de vidro colorido que ela guardava em uma caixa, no alto do guarda-roupa. Os enfeites de vidro eram muito frágeis. Uma distração e eles escorregavam das mãos, espatifando-se em mil pedaços.
Era uma honra subida receber a tarefa de colocar uma das mini jóias no pinheirinho.

No Natal havia refrigerantes, algo raro em nossa vida. As uvas passas, que nunca haviam sido razão de polêmica, eram difíceis de achar no lugar em que vivíamos. Nós, as crianças, as comíamos bem devagarzinho, saboreando o momento. Era uma vez a cada ano. No mesmo pratinho das passas havia figos secos, mas desprezávamos os coitados.

Mamãe fazia bolos decorados para complementar o orçamento. Ficávamos à espreita, o ano todo, esperando as sobras da massa, dos confeitos e do glacê. No dia de Natal era diferente: sobre a mesa estava nosso próprio bolo. Branco, enfeitado de mini-flores e motivos natalinos.

Natal também incluía ceia com um arroz – daqueles com tempero de mãe – e pato ou frango. Um certo luxo numa região rica apenas em peixes. Frango demorava a crescer, dormia no galinheiro do quintal e vivia sob a mira de gambás. Estava destinado a ocasiões especiais ou caso de necessidade: domingos, alguma doença e a festa de Natal.

Próximo a nossos pratos, outra raridade natalina: os preciosos copos que minha mãe guardava no armário, com cuidados semelhantes aos dispensados a recém-nascidos. Eram doze, muito frágeis e traziam estampas de passarinhos, pintadas à mão.
Coloridos, retratavam as aves em detalhes e lembravam as gravuras de livros de ornitologia. Nossos pequenos cálices sagrados só deixavam sua prisão para servir a nós, no Natal, ou a visitas importantes, como o juiz da comarca.

Enquanto nós, os pequenos, nos deliciávamos com o bolo, os biscoitos, as frutas e os refrigerantes, os olhos doces de meu pai encontravam os de minha mãe. Estava afobada, servindo o prato de alguém, enchendo algum copo. Senta aqui, comigo, ele dizia, pousando a mão sobre o braço dela. Os dois sorriam, felizes, e ela se sentava junto dele. O mundo estava girando bem devagar para eles – nós sabíamos.

Tudo encerrado, íamos dormir. A bênção, mamãe e papai.

Durante a madrugada surgiam brinquedos sobre os nossos sapatos. Nada muito caro. Lembro de uma boneca chamada Dorminhoca, cujo rosto e mãos eram feitos de látex perfumado e o corpo era de pelúcia. Também houve uma boneca enorme – maior que eu – que jamais teve nome. Foi Bonecona para sempre.

O melhor de todos foi a melancia com rodinhas, brinquedo que se puxava por um fio e andava como um carrinho, abrindo as fatias como se fossem asas. Parecia uma joaninha, mas era melancia mesmo. Minha mãe, que me ajudava a escrever as cartas para o papai Noel, tentou me dissuadir. Em vão. Eu queria a tal melancia.

Na manhã seguinte ao Natal, saí puxando a cobiçada melancia pela rua e encontrei o pároco local. Padre Tommaso Maisto, italiano e bondoso, vinha distraído. Ao me ver, parou com ar intrigado, olhou para o brinquedo, depois para mim, e novamente para a melancia. Achei o máximo a atenção e disse, com um orgulho enorme: “Olhe, Padre Tommaso, a minha melancia. Ela anda!“.

O padre tornou-se rosa. Depois vermelho. Sem conseguir segurar mais, explodiu numa gargalhada daquelas que só os italianos sabem dar:

— Una melanzia! Ahahahahahaha. Una melanzia!

Não entendi a razão de tanto riso, mas captei que Padre Tommaso avaliava que meu brinquedo não era tão sensacional quanto eu achava.

Ainda rindo, o padre passou a mão na minha cabeça e seguiu, rua abaixo. De costas, notava-se os ombros sacolejando, enquanto repetia o mantra: “Una melanzia”.

As areias do tempo carregaram-me para outras cidades, estudos, carreira. O salário do pai aumentou, as ceias se aprimoraram. Agora havia mesas mais fartas, toalhas mais finas, vinho e receitas que o talento de minha mãe fazia saírem das revistas para os nossos pratos.

Mais areias sopraram. Entraram em minha vida pessoas perigosas: eram miúdas, graciosas e pareciam inofensivas, mas dominavam com perícia a arte de hipnotizar os outros com seus risos banguelas e suas mãozinhas gorduchas. Chamavam-me mamãe. Os brinquedos que lhes dei jamais foram bonecas simples pedidas pelos Correios ou melancias de plástico que batiam as asas-fatia.

Novas areias flutuaram sobre dois túmulos em Brasília. Herdei os copos de passarinho. Apenas três. Guardo-os no armário, protegidos como recém-nascidos.

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Mudou tanto o meu Natal. O brilho de talheres e pratos bonitos ofuscou durante um longo tempo as lembranças de um começo humilde. Mas a memória tem lá seus sortilégios. Assim, num dia frio, em país distante, quando eu estava desarmada, olhando a neve cair, elas finalmente se libertaram de um calabouço de condicionamentos. Olharam para mim com saudade e eu as contemplei como realmente eram: tecidas de amor profundo e constituídas de simplicidade, poesia essencial da vida.

Estavam bem à minha frente sob a forma de toalha, bolo, mesinha, frutas, melancia, Padre Tommaso e o sorriso de cumplicidade entre meus pais.

E as amei como nunca antes. Sorri.

No próximo Natal estarão, sobre a mesa, três copos de passarinho.

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