A primeira formulação a respeito da origem da inspiração, no mundo ocidental, remonta ao século VIII a. C., com a Teogonia de Hesíodo , po...

A inspiração, esse sopro divino

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A primeira formulação a respeito da origem da inspiração, no mundo ocidental, remonta ao século VIII a. C., com a Teogonia de Hesíodo, poema em que, para poder cantar a saga de Zeus como o primeiro herói, na sua luta contra os Titãs e contra o gigante Tifeu, Hesíodo precisa fazer uma celebração das Musas e do seu poder inspirador de poesia e de conhecimento. São as Musas, filhas de Zeus, o mais sábio dos deuses, e de Mnemosine, a deusa da memória, que guardam o conhecimento, inspirando os poetas, os estudiosos e os reis, estes para, especificamente, a aplicação da Justiça.

Interessa-nos a inspiração poética, pois as Musas transformam os pastores, homens só-ventres (ἀνέρες γαστέρες οἶον, verso 26), soprando-lhes na boca, ação que origina a palavra inspirar (ἐμπνέω, soprar dentro), transformando-os em poeta, com o poder de de saber o passado, o presente e o futuro, e, como um dom a mais, a capacidade de dizer mentiras com aparências de verdade. Cria-se, assim, o conceito de verossimilhança.

Essa transformação do poeta se completa com a dação (assim mesmo: dação) aos pastores de um ramo virente de loureiro, em substituição ao cajado. O ramo viçoso de loureiro é o que os distingue dos homens que só se preocupam com o fisiológico, homens só-ventres, indicando ali a presença inspiradora do deus Apolo, a quem o loureiro é consagrado (quem quiser saber mais sobre isto leia o mito de Apolo e Dafne, no Livro I das Metamorfoses, de Ovídio). Esse dom concedido pelas Musas nos diz que há mais, na vida, do que comer. A comida alimenta o corpo, mas a poesia e o conhecimento alimentam o espírito. Esta é a mensagem de Hesíodo. Como o corpo se acaba e o espírito continua (aqui já entramos em Platão), é preciso cultivar o espírito. A poesia é um dos meios para que esse cultivo se realize.

A comprovação de que o trabalho das Musas foi bem feito está na própria Teogonia. O poema, que parece muito simples se comparado à ilíada, por exemplo, ou mesmo se comparado com Trabalhos e dias, do próprio Hesíodo, é, na realidade, um poema muito complexo.

Aparentemente, a Teogonia trata da origem dos deuses, sendo este o significado do seu nome, em grego. É isto, mas não é só isto. Há ali uma complexa concepção de criação do universo e da vida na terra, além da criação e origem das divindades.

Gaia (Γαῖα), a Terra, é uma das forças primordiais, e a primeira a servir de base e de referência para sempre a todos os imortais olímpicos. Gaia, portanto, é a Mãe primordial. Tudo provém dela. A concepção é clara: não foram os deuses que criaram a Terra, mas a Terra como princípio criador que gerou os deuses e tudo o que é vivo. Sendo epitetada como “Gaia de amplo seio” (Γαῖα εὐρύστερνος, verso 116), é nele que ela abriga os filhos impedidos de vir à luz por Urano, seu filho e marido; é em si mesma que ela abriga a criação de todos os elementos essenciais à vida.

A primeira ação de Gaia é a cissiparidade. Ela pare os primeiros filhos sem a necessidade de um parceiro, “sem o desejoso amor” (verso 132) – as Montanhas, o Mar e o Céu/Urano. Gaia, portanto, se divide criando vida e ao criá-la, sabemos que o Céu, a unir-se, posteriormente, a ela em conúbio, já nasce constelado.

Observe-se que o fato de o Céu/Urano já nascer constelado significa que no momento dessa cissiparidade, a força da energia que sai de Gaia não só cria o Céu, mas também as constelações, dando origem ao universo e tendo-a como referência. As constelações, portanto, são os sóis que ajudarão no processo de criação da vida. Junte-se a isto a criação do elemento mineral, as Montanhas, e do elemento liquido, o Mar, e teremos fogo, terra e água, elementos essenciais para que a vida se plasme, ou para que haja o forjamento da primeira arma. Primeiro, ela cria um material de dureza adamantina e de cor cinzenta, que poderia ser o avô do aço; depois, forja a foice (versos 161-2) com que o filho Cronos decepará os órgãos genitais do pai Urano, para libertar a si mesmo e aos irmãos, presos no amplo seio de Gaia. Nascida para a geração da vida, Gaia engendra os elementos que lhe permitirão expelir essa vida, libertando-se do jugo do Céu. Que metáfora grandiosa! Sendo ela própria uma divindade, Gaia liberta-se do Céu, dela nascem deuses e os seres viventes, que oriundos do Céu, precisam da Terra para fazer o seu próprio caminho.


A castração de Urano por Cronos é um dos episódios mais conhecidos, porém nem tanto estudado na sua complexidade. Cronos corta o pênis do pai com a foice que a mãe forjou e lhe deu, e o joga no mar, até então, vasta planície infecunda (verso 131). Ao cair no mar, o pênis ejacula, surgindo daí Afrodite.

O mar torna-se fecundo, ao produzir com a semente de Céu/Urano, a primeira de todas as divindades responsável pela criação de tudo quanto é vivo — Afrodite, a deusa nascida das espumas. Acompanhando Afrodite, vão Eros e o doce Desejo. Vemos, então, que uma divindade feminina, Gaia, guarda em seu amplo seio a vida, cria os elementos para a vida na terra — fogo, água e terra – e ainda sai dela, a deusa primordial da vida e da procriação, também elemento feminino, Afrodite. Mais moderno e alinhado com o pensamento atual não poderia ser. É Hesíodo, no mundo ocidental, quem nos dá a primeira concepção do poder criador do feminino. E não fica por aí. Quando Afrodite sai do mar e aporta na Ilha de Citera e depois na de Chipre, ambas em pleno Egeu, por onde ela passa a relva vai grassando (versos 192—195). É a vida que vai surgindo do mar ao chegar na terra. Primeiro nas ilhas, depois nos continentes.

O que temos nesta maravilhosa imagem poética de Hesíodo? O que nos legou o antigo pastor só preocupado com a barriga e com a sobrevivência, após o sopro divino das Musas, que o faz perceber a necessidade de outro alimento? Vamos juntar as peças, embora eu saiba que muitos acharão ser um delírio meu, mas é um delírio provocado pelos deuses, o bom delírio platônico, de que nós falaremos adiante.

Há algo da autorreplicação das bactérias iniciais que dão origem à vida no nosso planeta, na cissiparidade de Gaia, criando o Céu, as Montanhas e o Mar. Do mesmo modo, como não pensar em uma grande explosão de energia concentrada, o Big-Bang, no momento em que a cissiparidade cria o Céu e as constelações? É possível ignorar que, o Mar, antes planície infecunda (ἀτρύγετον πέλαγος, verso 131), torna-se fecundo com as chuvas que vêm do Céu, metáfora para o esperma de Uranos, ali ejaculado quando nele cai? Se Urano deixa de semear o ventre de Gaia, separado que fora dela, não deixa de semear a sua superfície.

Devemos fechar os olhos para o fato de que a semente (σπέρμα, em grego) cria a vida na água, formas primitivas que se autorreplicam e impulsionadas pela energia vão adiante, criando mais vida e repassando o seu código genético? É lícito não saber, no estágio em que nos encontramos, que a vida sai da água e vai para a terra, ganhando assim outras formas, na adaptação aos novos ambientes? Como não ver na relva que cresce aos passos de Afrodite a criação do alimento, para permitir a continuidade e a multiplicação da vida? Como não associar Afrodite à natureza, à primavera, à vida, à procriação cíclica e contínua, a partir de Hesíodo?

Deixando de lado o entusiasmo (é sempre bom lembrar que a palavra significa “um deus se encontra dentro”), podemos raciocinar que o poema de Hesíodo nos lega uma concepção magnífica da criação do universo e da vida na Terra, que tem seus pontos de contato evidentes com a Teoria do Big Bang e a Teoria da Evolução. É hora de falarmos disso. A Musa nos autoriza. Também é hora de falarmos um pouco desse delírio — sim, é um delírio! —, à maneira de Platão, para fecharmos este ensaio.

No "Fedro", Platão nos dá um magistral diálogo sobre o Amor e sobre a natureza imortal da Alma. Para fazer a sua palinódia ao Amor (trecho 243b e ss), Platão coloca na boca de Sócrates todo um discurso sobre o delírio (μανία). Para Sócrates, há duas espécies de delírio, a que vem das afecções, das doenças e pertencendo, portanto, ao corpo físico, e o delírio que vem dos deuses. O que vem dos deuses se divide em quatro tipos: o delírio da inspiração divinatória, provocado por Apolo; o místico, provocado por Dionisos; o poético, provocado pelas Musas, e o de amor, provocado por Afrodite e Eros (244b-245b).

De todos os tipos de delírio, incluindo o físico, o terceiro tipo — o delírio das Musas — é o melhor provocado pelos deuses. O delírio das Musas, depois de pegar uma alma tenra (ἁπαλὴν) e inviolada (ἄβατον), despertando-a como poeta e transportando-a em cantos (ῳδὰς) e nas outras criações poéticas (κατὰ τὴν ἄλλην ποίησιν), pondo ordem em milhares de feitos antigos (μυρία τῶν παλαιῶν ἔργα κοσμοῶσα), educa os que vêm depois, os epígonos (ἐπιγιγνομένους παιδεύει); enquanto aquele que, sem o delírio das Musas (ἄνευ μανίας μουςῶν), chega à porta da poesia (ἐπὶ ποιητικὰς θύρας) persuadido de que pela técnica (πεισθεὶς τέχνης) será um poeta perfeito (ἱκανός ποιητὴς), é um imperfeito ele próprio (ἀτελὴς αὺτος) e sua poesia (ποίησις), que tem a soberba de quem está em são juízo (σωφρονοῦντος), é pela dos que deliram (μαινομένων) encoberta (ἠφανίσυη, 245ab).

Eis aí o nosso Hesíodo, a alma tenra e inviolada, sendo agraciado pelas Musas com o delírio poético, capaz de saber o passado, o presente e o futuro, apresentando-nos mentiras com aparência de verdade, que se constituirão verdades, pois visões privilegiadas do futuro. Pensemos a Inspiração com “I” maiúsculo, pensemos nela sempre como algo grande, não como algo banal, que deve ser dispensada em favor da técnica. Técnica sempre discutível, quando se trata de criação, pois os alegados 90% de transpiração não seriam nada sem os 10% de inspiração. Entendamos a inspiração como a entende Íon, quando arguido por Sócrates, no diálogo platônico homônimo: Íon prefere saber-se agraciado por um privilégio divino (θείᾳ μοίρᾳ, 542a) a ser chamado de mentiroso, por dizer que detém um saber que não possui.

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  1. Brilhante texto Milton Marques Junior!!!apresentas-te uma "Gênese" da VIDA ...Seja em formato "delírio" ou que lá seja!! que é uma primoroso desenrolar!!
    Parabéns
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Anônimo7/1/21 10:42

    Obrigado, mais uma vez, meu caro Paulo Roberto Rocha!

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