Numa época em que dispunha de mais tempo livre, dediquei-me a viajar pela Península Ibérica. Nessas incursões, colecionei um conjunto de memórias e de experiências que me acrescentaram muito, não somente culturalmente, mas, sobretudo, vivencialmente. Percorri um considerável terrítório da península, o que me permitiu ter uma boa idéia da sua maravilhosa diversidade, embora conhecê-la realmente demandaria muito mais do que viajar por anos contínuos. Na verdade, exigiria o empenho de uma vida inteira ou de várias.
“Dom Quixote e Sancho chegaram ao rio Ebro, e vê-lo foi um grande prazer, porque o contemplou e viu nele a amenidade das suas margens, a clareza de suas águas, a calma do seu curso e a abundância de seus cristais líquidos, cuja visão alegre renovou mil pensamentos de amor em sua memória.”
Do meu apartamento, vizinho ao local de nascimento do escritor Baltazar Gracián, o “Maquiavel espanhol”, eu contemplava a face sul dos Pireneus, cujos picos congelados no inverno contrastavam com o restante da paisagem ensolarada da península.
Vivendo na capital do velho reino de Aragão, tinha um excelente acesso a toda Espanha. Não por acaso Zaragoza é um dos princiais centros logísticos da Europa. Situada entre Madrid e Barcelona, dela emanam artérias que conduzem a diversos outros destinos fascinantes, sendo, ela própria, um lugar apaixonante e admirável.
Para se proteger da volubilidade do rio que a corta e que tantam vezes a vitimou, a cidade de Zaragoza canalizou o Ebro, que agora só pode ser acessado através de uma escadaria. No verão, as suas margens verdes se convertem num grande parque que acompanha toda sua tragetória pela cidade.
O antigo nome de origem ibérica, Salduie, foi atribuído pelo sedetanos, o povo autócone que ali viveu e fundou uma cidade-Estado por volta do século III antes de Cristo. Pouco antes de ser submetida pelos romanos, Salduie chegou a se extender por dez hectares. Com a romanização, a vila foi rebatizada em honra ao imperador Augusto César em 14 a.C., recebendo o nome de Caesaraugusta, assim permanecendo por toda a Idade Média até a chegada dos árabes no ano 714, quando passou a se chamar Saraqusta. Após a reconquista católica, em 1118, o nome Çaragoça passou a ser adotado até que a grafia se modificou chegando a sua versão atual: Zaragoza — escrita em português como Saragoça.
Do período árabe permaneceu o mudéjar aragonês, sendo a Aljafería o principal exemplo desse estilo. Este importante monumento hoje abriga a sede do governo aragonês e é considerado como a maior construção árabe ao norte do mundo. Após a Reconquista, foi escolhido como moradia pelos reis da Coroa de Aragão, que o preservou por sua imponência e esplendor. Trata-se de uma estrutura de grande beleza que lembra a Alhambra, de Córdoba, numa escala menor, mas não menos exuberante.
As sobremesas tradicionais européias, em geral, não são muito adoçadas. Como antigamente o açúcar por lá era algo raro, as pessoas se acostumaram a comer doces menos doces dos que os brasileiros. É o que imagino. Hoje, porém, quando o açúcar é um artigo tão barato e acessível, os europeus se tornaram fits, diets ou veganos. Ninguém por lá consome mais o produto, considerado como um veneno por comerciais e programas de TV. Nas prateleiras dos supermercados há somente alguns quilos de poucas marcas para serem consumidos por seres bizarros e exóticos.
Devido ao traçado urbanístico medieval, as ruas da parte antiga são estreitas e favoráveis a proliferação de doenças respiratórias durante o inverno. Alíás, a gripe sazonal tem até data para chegar. Quando morava lá, um jornal anunciava: “a gripe chega semana que vem”. Acho que durante os anos que ali vivi, devo ter sido vítima de todos os surtos gripais que por lá passaram.
A água que abastece a cidade é muito caucária, o que ocasiona gases. Por causa disso, a maioria das pessoas prefere comprar a água engarrafada que vem dos pirineus.
Considerada uma cidade boêmia por causa da Universidade homônima, Zaragoza tem a maior concentração de bares de toda Espanha. Lá se pode vivenciar, de fato, a cultura da “tapería”. Pode-se caminhar, parar num bar, tomar uma copas, “tapear” um pouco, o que significa comer “tira-gostos” de todos os tipos, sabores, cores, tamanhos e formas imagináveis e inimagináveis e, depois, caminhar um pouco mais e, novamente, debruçar-se num balcão de bar e repetir a façanha. Tem coisa melhor?
Recém chegado a cidade e sem saber das tradições locais, sai de casa ao meio dia para ir ao banco. Quando piso na rua, em pleno dia útil, deparei-me com uma cidade fantasma: estava tudo fechado. Nem um só vivente sequer no passeio público e nem um só veículo transitando. Pensei que havia explodido uma bomba de neutrons ou que a cidade tivesse sido evacuada. Dobrei várias esquinas e não encontrei ninguém para me relatar a catástrofe. Sem saber o que ocorria, voltei para casa e liguei a TV, que tampouco noticiava qualquer calamidade ou abdução alienígena coletiva. Intrigado, dirigi-me novamente a rua e lá estava tudo em perfeita ordem, funcionando normalmente. Pensei, então, ter vivenciado alguma experiência sobrenatural, quiçá uma viajem a uma dimensão paralela, e procurei agir com naturalidade. Tão logo pude, contei o ocorrido a um amigo espanhol que, depois de gargalhar, explicou-me o que era a “siesta”, costume que acabei por achar muito simpático e também adotar.