Julho de 2014: Sérgio Lucena me pede que o entreviste
Dei à nossa conversa, como título, os versos do FOUR QUARTETS ( Quatro Quartetos ) que o mui católico Eliot fora buscar num lenço bordado pela também mui católica rainha Mary Stuart, da Escócia.
"En ma Fin gît mon Commencement..." IN MY END IS MY BEGINNING – Em meu fim está meu começo.
"En ma Fin gît mon Commencement..." IN MY END IS MY BEGINNING – Em meu fim está meu começo.
Sérgio não disse o motivo do pedido. O fato de ele - pessoense radicado em São Paulo desde 2003 - ter agendada uma mostra na Usina Cultural, aqui em João Pessoa, é plausível, mas... atrevo-me a imaginar outra razão: precisava de alguém pra conversar... consigo mesmo, a respeito de sua arte. Talvez como Dante, que – pra evitar um longo e monótono monólogo – apelou – mais ou menos na mesma idade - pra outro poeta, Virgílio, ao se ver avançando para uma das “crises previsíveis da vida adulta” ( cf. Gail Sheehy ) , per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita, embora a palavra smarrita – perdida - seja demasiado forte para essa via, pois é claro que o artista sempre pode dizer como Picasso: que “Eu não procuro, encontro”.
PERGUNTO:
– Sergio, tive um impacto extraordinário, ao ver pela primeira vez uma tela sua, devido à poderosa densidade dela. Aquele navio a vapor, naquele estranho mar, no quadro com que me deparei na entrada da Funjope ( Fundação Cultural João Pessoa) , atrás da secretária em seu birô, fez com que eu pedisse à moça seu telefone e, ali mesmo, sem conhecê-lo, parabenizei-o. Depois, numa mostra sua no NAC (Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB), foi a vez de me impressionar fortemente com duas outras criações suas: um Van Gogh fumando cachimbo, na agonia, ante o irmão Theo, e um fortíssimo “Vox Clamantis in Deserto”. Em seguida vi um trabalho seu a quatro mãos com o Flávio Tavares – “A Pedra do Reino” , lá na Funesc ( Fundação Espaço Cultural da Paraíba). Você tinha, já, noção do seu potencial enorme?
SÉRGIO LUCENA:
– Quem pode saber de si antes de Ser? Nunca me imaginei artista. Isso até os dezessete anos, quando tive o privilégio de conhecer Flávio Tavares, de entrar em seu ateliê e de ver, pela primeira vez, algo que respondia à falta de significado que me habitava. Naquele momento não me imaginei: eu me soube artista.
PERGUNTO:
– Pode-se dizer que houve uma influência, em você, na fase da ”Pedra do Reino”, de James Ensor?
- Sim, porém dentro de um contexto que coloca a influência num lugar bem mais amplo. Falo da matriz a que se reporta o Ensor e tantos outros, a exemplo do expressionismo do Max Beckmann, do Otto Dix, do Emil Nold, Georg Grosz, Oskar Kokoschka, Ernest Ludwig Kirchner, o surrealismo do Max Ernst, etc.
DIGO:
– Certa vez, conversando com Flávio Tavares, diante de algumas telas da primeira fase, dele, daquelas figuras com olhos grandes como as de Wellington Virgolino... ele me falou, com tristeza, de uma certa sensação de perda. Você sente isso, também?
– Talvez o Flávio Tavares se referisse a algo como a perda da inocência, da pureza, da força original ainda não contaminada pelas influências. Se for isso, te falo que tal sentimento não tenho em absoluto.
DIGO:
– Harold Bloom tem a teoria, famosa, de que existe uma “angústia da influência” em muitos artistas, quando se detecta uma fonte de onde cada um teria bebido seu estilo ou algumas de suas criações, como se com isso fossem acusados de plágio. Vi José Américo de Almeida furioso comigo, no terraço da casa dele, entre outras coisas porque eu publicara um artigo em que dizia que “A Bagaceira” derivava diretamente do “Hamlet”. Mas vejo, nas entrevistas que dá, que você não tem esse problema, pois declara abertamente a influência decisiva, sobre sua fase atual, de Rothko, por exemplo. Por isso comecei falando de Ensor. Poderia me dizer quais são suas outras fontes? Desta fase, por exemplo?
SÉRGIO LUCENA:
– Recentemente, vendo uma impressionante exposição do Iberê Camargo, onde o curador teve a sensibilidade e a inteligência de se valer da voz do artista na apresentação da mostra, ouvi o próprio mestre abordar a questão da influência.
- Concordo.
- Creio que a necessidade de ser isento de influência reflete um sentimento de inferioridade tipicamente provinciano. Se o sujeito não se expõe ao que o cerca, não tem parâmetros para o que está realizando. Numa atitude esquizofrênica, começa a achar que está inventando a pólvora, a roda. Imagine sentir-se ofendido por ser relacionado a Shakespeare!
DIGO:
- Entendo que o José Américo de Almeida tenha reagido mal porque “A Bagaceira” foi tido como um rompimento da influência enorme da literatura inglesa no romance brasileiro, na época, e, de repente, eu vinha dizer que seu livro era, nada mais, nada menos, do que uma variação da tragédia de Shakespeare, o mais britânico dos ingleses! Mas sempre o respeitei – com isso ou, mais ainda, por isso – porque sua ruptura foi com a forma.
– O que prova o óbvio. A questão da tragédia não é prerrogativa desta ou daquela cultura, mas da experiência humana por excelência. Este caso, portanto, sugere que influência pode perfeitamente ser de correspondência. A questão é como expressar de voz própria o correspondente cultural e espiritual do que é comum à espécie humana em todas as culturas. É nisto que reside o problema: saber distinguir correspondência temática de influência formal. Não nego, portanto, que o problema existe. O que observo é que a influência é algo benéfico, porque fundamental. Existe para definir as coisas. Diante da influência, define-se a que veio o artista. Isto se dá quando a influência engole, ou não, o influenciado. Ela diz como a Esfinge: “Decifra-me ou te devoro”. Se o artista não tem a resposta, está morto. E dela depende se nele temos ou não um artista, simples assim, como tudo na vida. “Ser ou não Ser, eis a questão!” Se o artista, no seu tempo, é capaz de dar alguma notícia do porvir, isso ocorre porque, lembrando Isaac Newton, está de pé sobre ombros de gigantes. A influência aqui nada mais é que a sua família, seu DNA espiritual. Seria concebível à genética fazer algo surgir do nada? Um DNA alienígena? Assim, porém, como se dá na genética, também na consciência ocorrem mutações, e aí temos uma nova voz, eco do passado, elo com o futuro.
- Bem pensado.
- A fonte de influência da série a que dei o nome de “Deuses” foi a que me fez artista, o chamado inicial.
- No ateliê do Flávio Tavares.
- Armorial.
– Não especificamente, mas, sim, em alguma instância relacionada ao pensamento Armorial. Nesta série busquei chegar à síntese do meu percurso, mas, em tempo: naturalmente essas coisas não são premeditadas. Eu acabara de chegar a uma cidade onde não passava de um ilustre desconhecido, e precisei invocar toda a minha força, tudo de que dispunha para dizer a São Paulo a quê eu vinha. Então duas coisas aconteceram: os animais, que eram coadjuvantes na minha pintura, passaram a ser protagonistas; e a cor, que era uma das marcas fortes da minha pintura, foi abolida, como que para buscar o osso que me sustentava.
- Bastante lúcido.
- O preto e branco: era com o que eu teria de me virar.
- Lembra Sebastião Salgado, quanto a isso. E Picasso, no Guernica.
- Por que “Deuses”?
- Foi o nome que encontrei para essas criaturas, porque é o que elas são. Eu as cobri com a mais preciosa e rebuscada pele que pude conceber.
- Deslumbrante, sim.
- Em troca, eles me deram sua benção e abriram as portas do seu mundo para que eu seguisse meu caminho. Foi quando saí em campo aberto.
- Curioso: você criou suas figuras para povoar a paisagem de Flávio Tavares, em “A Pedra do Reino” e, de repente, deixa seus personagens fantásticos para se dedicar a uma paisagem mais fantástica, ainda, do que eles.
- Acusam Pedro Américo de ter permanecido acadêmico numa Europa impressionista, porque tinha o patrocínio de Pedro II. Outros lamentam que tantos artistas brasileiros, como Portinari, Di Cavalcanti e Ismael Nery tenham voltado de Paris tão ostensivamente marcados por Picasso, o Cícero Dias tão declaradamente Chagall. O que você pensa a respeito?
– Sinceramente, não sou conhecedor o bastante do Pedro Américo para tecer qualquer opinião sobre suas escolhas como artista. Na verdade, considero um milagre o acontecimento Pedro Américo. Um sujeito saído de Areia no interior da Paraíba do século 19, que chegou aonde chegou, realizando uma obra de tal ordem e estatura. Quem sou eu para questionar suas escolhas? Agora: com os modernos, temos uma situação clara. Há uma escolha: romper com o passado clássico, resquício do Império, uma vontade de tirar o país da roça e implantar a modernidade. Mesmo com o imenso talento de todos os artistas que você lembrou, este empenho tem uma característica comprometedora que permeia quase toda a produção do modernismo, o uso da forma moderna sem que houvesse uma resignificação da linguagem a partir de valores próprios.
- Sergio, há uma afirmação contundente de Rodrigo Naves, em “A Forma Difícil”: a de que há uma “timidez formal na arte brasileira, uma relutância em estruturar fortemente os trabalhos, e com isso entregá-los a uma convivência mais positiva e conflituada com o mundo, o que a leva a um movimento íntimo e retraído, distante do caráter prospectivo de parcela considerável da arte moderna”. Essa avaliação me choca imensamente, pois é o que sinto ao imaginar que é a razão pela qual Ismael Nery ou o Cícero Dias jamais seriam respeitados na Europa, de onde trouxeram tais fases em suas obras. Penso em Mondrian e Kandinski impondo, não se submetendo a inovações, indo também de tão longe a Paris.
SÉRGIO LUCENA:
– Mondrian, Kandinski, Constatin Brancusi, vindos da periferia cultural, se colocaram com propriedade na cena, estabeleceram paradigmas. Nada parecido ocorreu com algum artista brasileiro naquele momento. Voltando ao Rodrigo Naves, sim, ele está certo, mas não sei se por relutância.
– Avaliemos tudo isso ante sua fase atual, de que temos, suponho, dois flagrantes de uma transição. No primeiro, como você diz, há o toque Rothko. No segundo, Turner. É como se você tivesse feito o tempo – numa trucagem cinematográfica – voltar, pois Rothko, que viveu um século depois de Turner, foi - segundo muitos historiadores de Arte - inspirado pelos planos horizontais de cores das paisagens dele. Sua inversão cronológica, você a fez conscientemente ou a coisa “fluiu”?
CONCLUSÃO:
- Numa retrospectiva geral, fica-me patente – em suas últimas fases - o absoluto domínio técnico. Visto que está em plena e intensa atividade, e que tem como uma de suas características a busca permanente, pergunto-me se um dia voltará às fases anteriores, tendo hoje muito mais poder de fogo, baseando-me nos versos de T. S. Eliot, segundo o qual “In my beginning is my end/ in my end is my beginning”.
– Esta pergunta é sincrônica a pensamentos e intuições que me vêm ocorrendo... Antes de te responder, agradeço por teres trazido T. S. Eliot a este momento. Esses versos dizem com precisão tudo o que, de forma canhestra, busquei dizer na resposta anterior. É preciso agradecer ao poeta por isto. Certa feita, um crítico de arte me falou de uma conversa com o Iberê Camargo, onde o mestre lhe dissera que não há diferença entre pintura figurativa e pintura abstrata, conquanto que seja pintura. Entendo claramente isto, de tal forma que, para mim, a figura humana é também paisagem, a paisagem numa complexidade muito particular. Vide Rembrandt em seus autorretratos da fase final, e o Monet maduro das pinturas de Giverny, cujo tema era um lago com ninfeias. Aqui temos dois mestres cuja busca, em condições distintas, os conduziu a um final de qualidade igualmente epifânica. De sorte que, quando penso nisso, estremeço. Eis um desafio digno de uma vida! Voltando a tua pergunta, sim, já de algum tempo esta questão vem se pronunciando: a figura humana como assunto. Interessante você me perguntar isto. Penso na figura, penso em como seria pintá-la novamente, não sei hoje como seria, ainda não me sinto pronto, isto tem ainda muito, muito que ser decantado. Seja lá o que for que me espera, torço para dar conta do recado, pois, afinal, busco algo que me justifique. Se isso acontecerá, se estarei à altura do momento, só o futuro dirá. Só o futuro dirá se poderei voltar ao lugar de onde vim e, retornando, chegar ao meu fim tão sonhado, tão buscado.